Aécio Gomes de Matos

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

Para mim, desde criança, o 1º de abril sempre foi o dia da mentira. Mas naquele 1º de abril de 1964, ninguém duvidou das notícias aterrorizantes sobre o golpe militar que já vinha sendo urdido pelas forças de direita há muito tempo com o apoio dos militares e da CIA, que via na política nacionalista brasileira um risco de repetição da experiência revolucionária de Cuba.

Nós, da política estudantil, estávamos entusiasmados com as reformas de base do Governo João Goulart, reestabelecendo o presidencialismo, limitando os subsídios das multinacionais, nacionalizando o petróleo, iniciando uma reforma agrária, estendendo aos trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos. O comício da Central do Brasil, realizado em 13 de março de 1964, reunindo mais de 150 mil pessoas, foi o marco do apoio popular às reformas e, ao mesmo tempo, estopim da resistência conservadora que se refletiu simbolicamente na “marcha de família com Deus pela liberdade”.

Todos sabiam dos riscos de uma democracia comprometida com os anseios populares, mas não havia clareza que os militares tomariam a iniciativa de implantar um regime de exceção, depondo o presidente da República e prendendo os principais líderes identificados com o Governo deposto, inclusive o nosso governador Miguel Arraes.

Na noite do dia 31 de março o golpe foi deflagrado e o dia amanheceu com as capitais dos estados ocupadas pelos militares, com a tropa armada, inclusive tomando de assalto as sedes das organizações populares. A sede da UNE (União Nacional dos Estudantes) foi invadida e incendiada para inibir na base a resistência estudantil.

Cedo da manhã, em Recife, estávamos no pátio da Escola de Engenharia da Rua do Hospício, quando começou a chegar estudantes das faculdades de Direito, de Química, de Economia e Administração; depois gente de todo canto. O movimento crescia e se mobilizava com a notícia de que o Governador Miguel Arraes estava resistindo ao cerco militar e precisava do apoio popular para se fortalecer. De repente, cresce a ideia de que deveríamos ir todos para o Palácio do Campo das Princesas para criar uma força de resistência junto ao Governador.

Saímos um grupo já bem grande, que ia crescendo a cada passo, para tomar a conde da Boa Vista, depois a Guararapes e entrar na Av. Dantas Barreto. Não sabíamos exatamente o que íamos fazer; não havia cultura política, nem estratégia de ação que permitisse racionalizar o processo. Erámos um grupo de jovens, envolvidos com as causas cívicas, guiados pelo idealismo democrático, mas mobilizados por atitudes ingênuas; puras, mas desprovidas de expertise em ações de massa. Historicamente, esta experiência não era nova, pois desde a revolução francesa as massas têm tido um papel importante na resistência à opressão.

Entramos na Dantas Barreto em direção ao Palácio, certos do que iríamos nos juntar ao Governador Arraes para resistirmos pacificamente ao golpe e à sua anunciada prisão. Éramos muitos. Nunca tive uma estimativa clara de quantos, mas fechávamos a rua com algumas colunas, todos gritando palavras de ordem contra o golpe e a favor das liberdades democráticas e das reformas de base. Ao avistarmos o palácio, todos de braços entrançados, formando cordões humanos em todo o largo da rua, avistamos no outro extremo os militares em formação de ataque, movendo-se em passo de ganso, os fuzis em posição de ataque.

Sentimos um sobressalto, pois não esperávamos aquilo. Mas continuamos marchando sem acreditar que os soldados, que considerávamos gente do povo, fossem atirar contra estudantes. “Eles não vão atirar … eles não vão atirar”. Continuamos marchando. De repente, o som dos tiros. “é festim … é festim”. Mais alguns passos e vimos as balas ricocheteando nas paredes, nos carros. Fiquei apavorado, nunca tive tanto medo. Corri para a direita entrando no beco do edifício JK para voltar para a pracinha dos Diários, com as costas contra a parede das lojas. De repente, vi um garoto cair atingido por uma bala a poucos passos de mim, ainda na linha de tiro.

Alguma coisa mudou na minha atitude de fuga. Nunca analisei este episódio, nem nas muitas sessões de psicanálise que tive na vida que se seguiu. Foi como essas coisas que se vêm hoje como efeitos especiais. Mudou a luz, mudou o enquadramento, os tiros deixaram de existir, o perigo sumiu. Sai tranquilamente do meu abrigo e fui tentar ajudar o companheiro atingido por um tiro que lhe arrancou o queixo. Mais duas pessoas estavam comigo, mas nunca soube seus nomes. Pela narrativa de Cristovam, um deles deveria ser o professor Brotas, que eu conhecia, mas não identifiquei nem procurei identificar na hora. Só muito tempo depois soube que o nosso companheiro ferido era Jonas. Passado aquele momento, tínhamos que sair do foco dos acontecimentos. Não sermos identificados, nem identificar ninguém.

Ao chegarmos à pracinha dos Diários carregando o companheiro ferido, surge um problema: como levá-lo para o Pronto Socorro. Na cena surreal, o espírito de combate havia sido assumido por todos nós. Pulei na frente de um jipe e gritei com a mão para o alto. O motorista parou espantado e lembro que lhe disse “este carro está sendo requisitado em nome da revolução; precisamos levar um ferido para o Pronto Socorro”. Mais surreal foi o motorista concordar em nos levar. Colocamos Jonas no banco de trás no colo de um colega e nos acomodamos como podíamos para cumprir a tarefa de salvar uma vida.

A rua estava cheia de carros e de gente, com guardas de trânsito impedindo a subida na ponte. Uma das pessoas que estava no jipe desceu e foi abrindo caminho até atravessar a ponte Duarte Coelho, a partir de onde pudemos desenvolver mais velocidade. Ao chegarmos ao Pronto Socorro vimos que ele tinha morrido. Lembro que, sentado no banco da frente, olhei para o rosto dele e vi uma cena que ainda hoje não esqueci os detalhes. Seu queixo havia sido arrancado pela bala, deixando um corte transversal no rosto jovem, bonito, com a barba de alguns dias; uma barba adolescente ferida pelo terror naquele 1º de abril. Um sentimento de horror e de frustração que foi definitivo para consolidar minha identidade política e meu compromisso com a luta revolucionária que carrego até os dias de hoje.

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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