José Artur Padilha >

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

No 1 de abril de 1964, amanheci em Escada, Mata Sul de PE, que era então um ativo foco camponês de luta por condições dignas de trabalho, remuneração e vida. Fato ainda hoje, em vexatório débito. Às 5h00, sem café, tomei o ônibus para o Recife. De Escada ao Recife, nada sabendo, notei já bem cedinho uma movimentação anormal de tropas e veículos militares, em diferentes pontos. A cada nova visão, a indagação: por quê? Era já a atuação repressora desfechada face ao foco camponês. O golpe nasceu com longas ramificações. Cheguei à Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP), na Rua do Hospício, onde cursava o terceiro ano de mecânica, pelas 7h30 da manhã, para assistir aulas e tomar café no bandejão do Diretório Acadêmico (DA).

Tanto pelas tropas que eu vira, como pela inserção pessoal, caiu rápido a ficha da dura e nova realidade. Eu a senti mais cedo e mais que outros. Nas primeiras notícias, a razão das tropas. Diziam informes contraditórios: parte das forças armadas, ajudada por civis cúmplices, dava um golpe militar iniciado na noite anterior; ia em pleno curso; facção militar golpista entre MG e RJ (depois rotulados de broncos e postos para trás por oportunistas), desfechara ação armada, na madrugada; o golpe evoluía livre ou talvez não, em diversos pontos do país. Era fato? Era!. A democracia em vigor, muito precária, como hoje, começava ali a padecer. Anos de chumbo se iniciavam. A EEP naquela manhã, pelo seu então papel de vanguarda por reformas de base e afins, se tornou, na militância acadêmico-política, ponto de especial convergência de pessoas engajadas de várias facções. Para a EEP dirigiu-se um número expressivo de seus estudantes e outros, acadêmicos ou não. Nos mil informes que chegavam moravam os perigos. Horas depois, esses perigos se consumariam dramaticamente.

A cada hora, a EEP ficava mais elétrica, face aos informes conflitantes. Ora afirmavam avanços do golpe: ‘doce’ realidade para os da direita e dura para os da esquerda; ora, invertendo os sentimentos, afirmavam seu controle por tropas legalistas. Cada um, no íntimo, confundia ou não, desejos com realidades. Da nossa militância aliada, dos muitos que fomos, cito alfabeticamente 15 colegas de turma ou contemporâneos, como exemplo. Salvo falha, estávamos lá: Aécio Matos, Airton Araújo, Bruno Maranhão, Cândido Pinto, Cristovam Buarque, Drumond Xavier, Ednaldo Miranda, Geraldo Kleber, Joel Teodósio, José C. Melo, Renato Ribeiro, Ronaldo G. Dantas, Ruy Frazão, Sérgio Buarque, Telmo Araújo.

Na EEP da época, sob a liderança do DA, corriqueiramente discutíamos temas candentes em assembleias e seminários. Debatíamos nossos cursos, o ensino em geral, apoio às reformas nacionais de base, à reforma agrária etc. Idealistas no frescor ingênuo (?) dos nossos, algo como 22 anos, queríamos melhorar o mundo, éramos esportistas, víamos os melhores filmes, namorávamos garotas. Na época, nada sobre ecologia. Naquele dia, tudo mudou brusca e estupidamente. Nenhum de nós tinha capacidade de processar em tempo real o que nascia e após se revelou. Nas incertezas e indefinições do que surgia, prosperou a ideia da reunião em assembleia no salão nobre da EEP, para debater, face ao golpe, o que fazer. Tanto lideranças destacadas como os liderados, desejávamos decifrar a esfinge. No início da tarde, passamos a debater como agir.

Nem sempre sensatas, perspicazes, surgiam proposições ao acaso. Exemplo: alguém pediu ao nosso então professor de Cálculo II, Antônio Brotas – português refugiado da ditadura salazarista, postado na assembleia, lá no fundo do salão – que se juntasse aos líderes, na ‘mesa’. E, pouco depois, salvo engano, que se pronunciasse sobre o acontecimento. Fatos, creio, sem intenção de causar males, mas infelizes: em nada contribuiu a participação ostensiva dele na ‘mesa’ e ele se ferrou. Segundo se viu, dos fatos vistos e por ter humanamente tentado socorrer um dos estudantes mortos, sofreu dramáticas consequências. Consta, que só com muita dificuldades, pela participação honrosa, digna, corajosa, do professor Jônio Lemos, se contornaram maiores agruras.

Pelo que eu vira no nascer do dia, na volta ao Recife, e pelo envolvimento com a realidade EEP, minha percepção, face a outros colegas, teve intensidade diferenciada. Eu tinha com o ambiente da EEP ligações super conectadas ao lugar e ao que prosperou no 1 de abril. Eram bem além das normais de colegas apenas estudantes, funcionários, professores, etc. É que eu vivia todo tempo socado no ambiente. Assistia aulas todo dia pela manhã e à tarde na EEP; morava perto dela, na Casa do Estudante de Engenharia (CEE), na Rua do Riachuelo; dias úteis fazia refeições no bandejão da EEP; domingos e feridos,  café no bar do seu Pinho ou do Biu na esquina da Riachuelo com a Praça 13 de Maio. Dirigia os esportes do DA, que dispunha de uma bandeira do Brasil, exibida em competições esportivas. Bandeira essa que teve no 1 de abril seu último papel. Onde estará?  Eu representava a classe de minha turma de mecânica e era dirigente da Casa do Estudante de Engenharia, onde residia.

Na assembleia naquele 1 de abril, aí pelas 13h, quando nos perguntávamos o que fazer diante do quadro obscuro do golpe, alguém ‘muito bem informado’,  que nós estudantes e militantes políticos da EEP desconhecíamos – mesmo os mais calejados – anunciou que o governador Miguel Arraes estava cercado por tropas do Exército, no  palácio. E sugeriu o que fazer: irmos em passeata ‘libertá-lo’ Quase todos, sem pensar, caímos na esparrela da ‘sugestão’ do gajo. Quase todos, porque recordo: o colega Bruno Maranhão desconfiou. Lembro-me de Bruno perguntando-me com veemência algo como: quem é esse cara? De onde vem essa sugestão? Não adiantou a sadia cautela de Bruno. A sugestão do provocador (ele o era) pesou mais!

Que eu me lembre, todos aderimos à ‘sugestão’. Daí para frente, como uma cachoeira, os fatos foram se sucedendo até às mortes. Saímos em passeata. O sonho: ‘no trajeto arregimentaríamos populares’ e juntos, libertaríamos o governador.  Arregimentamos poucas pessoas. Planejamos seguir pela rua do Hospício até a da Imperatriz, daí ir pela rua  Nova e dobrar à esquerda na Dantas Barreto para chegarmos ao palácio e ‘libertarmos o Dr. Arraes!’; Segundo Cristovam Buarque, o trajeto mudou, e foi pela Guararapes. Ainda na assembleia, alguém sugeriu levarmos na passeata uma bandeira do Brasil.

Aderi com entusiasmo a tal proposta. Diretor de esportes do DA, lembrei que tinha sob minha guarda a bandeira do Brasil e cuidei de levá-la. Peguei-a com ajuda do funcionário da EEP, que tinha a chave do armário e ficou sabendo do fato. Tornei-me seu refém potencial (passei meses e anos com receio de ser dedado; nunca fui; não o apertaram ou negou). Casal de amigos, não lembro quem, focando discrição, levou-a envolvida num blusão. Na Dantas Barreto, após cruzar ou vir pela Guararapes, na Remillet Calçados, vimos tropa do Exército. Estacionada a uns 200 m, bloqueava a Dantas Barreto, próximo ao Teatro Santa Izabel. À medida que avançávamos, a tropa começou a vir ao nosso encontro.  A marcha da tropa tornou-se ‘passo de ganso’. Não prestei serviço militar e não sabia: ela precedia disparos. Instigados, naquela hora, achamos oportuno desfraldar a bandeira do Brasil como um ‘escudo cidadão’.

Ilusão total quanto a ser a bandeira um escudo cívico: choveram balas, matando Jonas na hora, e depois Ivan. Primeiras vítimas fatais do golpe no Brasil. Eu não os conhecia; nas fotos dos jornais, vi minhas mãos sustentando a bandeira e não meu rosto por trás dela. As balas ricocheteando no calçamento, como que levantavam respingos de chuva grossa. Alguém sem base gritou: são tiros de festim; retardou a debandada. Não eram festim e a debandada prosseguiu. Abrigado por um carro Citroën preto estacionado, eu tentava em vão convencer Geraldo Gomes, do DA de Arquitetura, a também se abrigar; pois, protestando de corpo aberto no meio da rua, facilmente se expunha às balas.

Pausa no tiroteio e corrida minha e de muitos, até a orla da Praça do Diário; nova saraivada de balas e todos se jogando ao chão; soldado da polícia deitado no meio fio, sacando seu revolver, se protegia e eu tentava me proteger; nova pausa e de novo corrida minha e de muitos, rumo à igreja Rosário dos Pretos. Aí, percebi alguém, cambaleando e com forte jorro de sangue na perna direita. Corri a seu encontro. Enlacei seu braço direito sobre meu pescoço e retomamos o afastamento rumo à igreja. Mais tiros. A turba se juntando e correndo, nos empurrando no apertado da rua, no mesmo rumo. À altura, pelo que lembro, tentamos entrar no restaurante Aviz, abaixando-nos sob a porta de ferro, que, veloz e com muita força, era baixada, fechando-o. Manobra infeliz. Foi impossível, com apenas a minha força pessoal buscando elevá-la, vencer a força de vários descendo a porta, forçando-a entre eu e o socorrido.

A partir daí, separamo-nos para sempre, eu dele e do fato. Até agora pensava que o ferido era Ivan. Se era, por pura ignorância, não o salvei. Devia tê-lo deitado no lugar onde cambaleava, erguido sua perna, e aplicado um garrote.  Nunca pude confirmar se era Ivan. Tenho esperanças, vir a sabê-lo. Segundo só agora soube, o baleado na perna, pode ter sido outro: Ubirajara Silva. Como a porta do Aviz foi fechada à chave, ficamos eu, e quem mais estava dentro, isolados. Chocado, em delírio, subi numa cadeira e pus-me a discursar. Perplexos, quase todos observavam sem entender a cena patética que promovi.

Exceto um cliente. Esse, cortesmente dirigiu-se a mim. Disse ser paulista, diplomado advogado no ano anterior, pela USP; ser ex militante do grêmio XI de Agosto; que conhecia nossa luta e era solidário com ela, mas eu estava me expondo inutilmente: os comensais viviam outra realidade. Convidou-me a sentar à sua mesa e tomar uma cerveja preta. Desci e aceitei. Vendo a perna da minha calça e sapato esquerdos, ensopados de sangue, julgou temerário eu me expor assim na rua. Hospedado no hotel Nassau, em frente ao Aviz, ofereceu ceder-me calça limpa, banho e a lavagem do sapato em seu apartamento. Concordei. Concluído, tomei um ônibus elétrico em frente aos Correios para Casa Amarela. No trajeto, revoltado, cuspi num popular que curtia o golpe. Só 4 dias após, no sentar da poeira, voltei à CEE, dedicando-me a ‘queimar sem fumaça’, jornais e publicações dos quartos, que implicassem politicamente colegas militantes. Além do mais, perdi no 1 de abril, a chance de ter o advogado da USP como um amigo para toda vida. Nem minha irmã, que devolveu a calça emprestada, nem eu, cuidamos de anotar seu nome e endereço. Se estiver vivo e ler este depoimento, sonho que me contate:

[email protected]
 (81-96012075).

 

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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