O som cadenciado e harmonioso do toque de alvorada pelo corneteiro acordou-me naquela luminosa manhã. Eu era tenente do Exército Brasileiro e servia na 2ª Companhia de Guardas, tropa de elite do IV Exército sediada no centro da cidade histórica do Recife. Tropa altamente treinada contra guerrilha urbana, a Companhia de Guardas estava de prontidão há mais de uma semana, devido aos acontecimentos políticos da época. O presidente João Goulart acendia uma vela a Deus outra ao Diabo. Um processo de desgaste político se espalhou sobre a Nação. Um suposto dispositivo militar apoiava o presidente, inclusive o General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, jurou de pés juntos que defenderia a legalidade. Quando a conjuntura mudou, ele mudou de lado. A situação ficou mais nebulosa depois do grande comício das reformas em frente ao Ministério do Exército, no dia 13 de março, com muitos discursos provocativos. O pingo d’água que faltava para o copo transbordar. Jango estava cutucando a onça com vara curta.
Naquela bela manhã de 1º de abril, logo depois da formatura matinal, o capitão Luís Henrique Maia reuniu os cinco tenentes comandantes de pelotão e fez uma preleção. Havia notícias confirmadas de que a tropa do general Mourão Filho, de Minas Gerais, estava a caminho do Rio de Janeiro para levantar o I Exército e depor o presidente João Goulart. O objetivo era restabelecer a ordem no país, garantir a democracia, a eleição para presidente em 1965. Mandou preparar cada pelotão para o enfrentamento e entrar em combate urbano a qualquer momento.
Dirigi-me ao alojamento de meu pelotão com pensamentos mil, pois sabia que haveria uma confrontação naquelas próximas horas. Ainda estava em divagações quando o comandante me chamou e deu as primeiras ordens: Dissolver uma manifestação no Sindicado dos Bancários, perto do quartel. Coloquei o pelotão em forma, passei em revista o armamento e o equipamento, falei para os soldados sobre a missão e deixei bem esclarecido: tiro só com minha ordem. Formação em cunha, o pelotão tomou a rua em marcha. A batida uníssona do coturno no calçamento fazia um barulho assustador.
Enquanto aqueles 44 soldados bem armados e equipados avançavam, eu vi mães colocando meninos para dentro das casas, ouvi algumas vaias, como também algumas palmas, o povo dividido. Avançava, continha a emoção e pensava na informação que haviam me passado: os sindicalistas, os camponeses, os homens de Arraes, tinham sido treinados em guerrilha e possuíam armamento de primeira linha. Assim que avistamos ao longe a multidão, em torno de 400 pessoas, tive que controlar um sargento, meu auxiliar, que pedia para dar um tiro a fim de dispersar a multidão. Mandei o sargento calar a boca, o comando era exclusivo meu. Evitava que houvesse reação por parte dos manifestantes e terminar numa carnificina de balas dos dois lados. Tentaria um diálogo, se possível. O pelotão se aproximou, dava para ver as fisionomias dos manifestantes, o sargento insistindo, me pedindo para atirar. Gritei não!
De repente tive a maior alegria e o maior alívio de minha vida, ao perceber a multidão se dispersando em todas as direções. Invadimos o sindicato a “manus militaris” e ficaram três manifestantes. Pedi para eles saírem ou teria de levá-los presos. Um barbudo, magro, me encarou: “Só saio morto ou preso”. Dei a ordem “Então esteja preso, não vou lhe matar”. Mandei lacrar os móveis, deixei cinco soldados guarnecendo o sindicato, retornei com o resto do pelotão para Avenida Visconde de Suassuna, sede da Cia de Guardas. Durante o percurso, o pelotão marchava em duas colunas, o barbudo sindicalista, preso, caminhava no meio. Encostei-me e cochichei no seu ouvido: “Estão matando tudo que é comunista, quando você chegar ao quartel vai ser fuzilado. Vou lhe dar uma chance. Na próxima esquina lhe empurro e você se manda”! Ele encarou-me com olhar suplicante. Puxei-o pelo braço, empurrei, e ele correu, se escafedeu na primeira rua. No quartel fiz um relatório verbal.
Ainda no 1º do abril, meu pelotão tomou a sede dos Correios, patrulhou a cidade do Recife. À noite, cansado, dormi feito um menino. Mal sabia, aquele era o primeiro dia de uma ditadura.
Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.
Seria desejável que o autor – um militar honrado, que agiu profissionalmente – se manifestasse sobre o que ocorreu depois: no próprio dia 1º e em seguida, quando a ditadura militar “rasgou seu véu”, cancelando as eleições.
Muito boa, essa oportunidade que a Revista Será? nos proporciona, de olhar, sob diversos ângulos e diferentes visões de mundo, um mesmo acontecimento histórico. A contribuição que o capitão nos traz é fundamental. Só assim vai se compondo o enorme painel da nossa História, pela reposição de diversos mosaicos encruados pelo tempo, entre as fendas da nossa memória. Parabéns ao capitão, pela simplicidade com que se dispôs a ser o contraponto de um discurso que, só assim, adquire a multilateralidade que se pretende.
O texto de Carlito Lima apresenta a atuação de um jovem, como todos os outros que escreveram sobre a manifestação do primeiro de abril de 1964, que naqueles dias dramáticos da história política do Brasil e de Pernambuco era oficial do Exército e, portanto, estava do outro lado do confronto. O que parece mais significativo neste belo depoimento é a descaraterização da caricatura do bem e do mal,mostrando que muitos dos que apoiaram o golpe e mesmo dos que estavam no Exercito eram pessoas honradas e humanas. Muita gente apoiou o golpe militar, especialmente na classe média (sempre a classe média) mas este apoio não significava o desejo de implantaçao de uma ditadura, como foi se desenhando e endurecendo nos anos seguintes. O tenente Carlito mostrou generosidade e humanidade com um prisioneiro, acreditava na necessidade do golpe e participou da ocupação da cidade, mas não pretendia implantar uma ditadura. Pode ter sido ingênuo, como foram milhões de outros brasileiros, mas não pode ser responsabilizado pelo que se implantou depois. Muito bom, Carlito
Sr. Sérgio C. Buarque.
O capitão Carlito é um exemplo de honradez, tão raro naqueles dias de 1964. Mas hoje é extremamente necessário divulgarmos o site do Clube Militar para as novas gerações entenderem a ideologia dos militares golpistas pregando mentiras e assombrações para justificar as barbaridades que cometeram impunemente.
Neste tempo, eu estudava no Colégio Sagrada Família, e, embora meu pai fosse crítico, as freiras difundiam o pavor ao comunismo ateu.Temiam possíveis instabilidades do governo e desejavam o predomínio da ordem, da ordem burguesa, é claro. No dia primeiro de abril não houve aula. Depois, tomei conhecimento dos fatos ocorridos na Praça de Casa Forte, com as torturas praticadas contra Gregório Bezerra, preso e arrastado pelas ruas. Na ocasião, nada impediu que uma das religiosas, Irmã do Cristo Rei, partisse em defesa do preso, contrariando as orientações dos comandantes da barbárie. Ideologia? Sim, não de esquerda ou de direita, mas de humanismo. Assim como o Tenente Carlito, muitos brasileiros não tinham condições de avaliação das consequências de um golpe de Estado, da implantação de uma ditadura que levaria o país ao terror. Coragem de não se demosntrar como herói de primeira hora!