Sérgio C. Buarque

Capra aegagrus hircus(Bode)

Capra aegagrus hircus(Bode)

Com seus sessenta anos bem vividos, Tia Dilma mora há muitos anos num apartamento pequeno mas confortável no Leblon. Depois de aposentada, não pensava em nada mais sério além dos passeios na praia e o chope no barzinho da esquina com os amigos. Até que um dia, lendo a revista Veja ficou tão chocada e sensibilizada com a desgraça social da seca do Nordeste que me telefonou com uma decisão radical. “Quero conhecer a seca e a pobreza do Nordeste e ajudar a essa gente sofrida”, falou com muita emoção e pedindo que eu organizasse sua visita ao sertão pernambucano.

Três dias depois desse surpreendente telefonema de uma parente que eu não via há muito tempo, recebi Tia Dilma no aeroporto, surpreso com a beleza que ainda irradiava aquela senhora tratada com botoxes e generosas plásticas. No caminho para o hotel, quando dirigia pela orla de Boa Viagem, percebi uma visível decepção de Tia Dilma vendo aquela opulência arquitetônica e as belas jovens circulando pela praia, demasiado semelhante ao Leblon e em nada semelhante às fotos da Veja. “Meu sobrinho, e a pobreza? Vi fotos horríveis na revista!” Tive de explicar que a desgraça estava concentrada no sertão e que no litoral nem se percebia os efeitos da seca e da miséria nordestina.

No hotel, mais surpresa com o luxo e a elegância do ambiente que, em todo caso, agradou à minha tia, receosa de um período de grande desconforto no Nordeste. Pensei comigo que ela ainda ia padecer um bocado quando entrássemos para as pequenas cidades do sertão. Não quis antecipar a jornada. Mesmo achando aquela viagem de Tia Dilma uma grande besteira, uma aventura pitoresca de uma carioca deslumbrada e piedosa com a pobreza, pensei em deixar que fosse sendo impactada aos poucos e em cada momento do caminho.

Aluguei um carro grande e confortável e saímos, no dia seguinte, para a aventura no Sertão. Ar condicionado no alto, som suave com Mariza Monte, tia Dilma viajava calada olhando a paisagem ressecada. Vez ou outra fazia uma pergunta sobre uma cidade em que passávamos ou sobre alguma paisagem peculiar, se familiarizando aos poucos com a secura do mato e a feiura das ruas e casas. Paramos num posto para tomar água e visitar o banheiro e comecei a perceber o desconforto, quase repulsa, estampado no rosto da senhora tão solidária com o povo sofrido do sertão.

No final da tarde, chegamos a Mirandiba e nos instalamos em um pequeno hotel na margem da estrada já na entrada da cidade. Primeiro choque de Tia Dilma, com a cidade pobre e degradada, com hotel limpo e bem simples que, apesar de não ter grande conforto, tinha água e chuveiro elétrico, para uma mistura de decepção e alegria da minha querida tia. “Não falta água?”, perguntou com visível conforto. Finalmente, o jantar, bode guisado com arroz e feijão, que ela comeu digna e heroicamente disfarçando, sem muito sucesso, um certo asco. Ficamos no hotel à noite onde encontramos meu primo Arlindo, que tinha um roçado e um pequeno rebanho no campo, e que descreveu com prazer sádico as dificuldades que estavam vivendo com a seca, a perda da safra e a morte dos bodes e cabras.

Na manhã seguinte, Arlindo veio nos buscar com uma F100 novinha chocando outra vez a piedosa senhora. Tia Dilma tinha vestido sua roupa mais simples para poder caminhar entre os pobres e miseráveis sertanejos, mas foi traída pela vaidade com um vasto e elegante chapéu de palha e um colar de pedras coloridas, destoando do conjunto. Passando pela cidade, ela observava, admirada, o movimento no comércio e a circulação de pessoas pelas ruas, várias muito gordas esperando a cesta básica que ela pensava recolher nas calçadas do Leblon. Pegamos a estrada e, 20 minutos depois, entramos na porteira da propriedade de Arlindo com o pasto desolado de tão amarelo e seco que ele já havia descrito. Mas a imagem era bem pior, um vasto campo sem vida com alguns animais magérrimos catando folhas ressecadas que resistiam em certas árvores, dois cachorros correndo sem entusiasmo e pouco latido ao lado do carro.

Paramos na frente da casa e quando descemos tia Dilma fixou o olhar num pequeno bode ao lado da porta de entrada, ossos salientes e pelancas caídas. “Que bodinho lindo e tão triste”, comentou. “Vejam os olhos dele, tão melancólicos, quase não brilham”, completou. Olhei para Arlindo. Acho que pensamos ao mesmo tempo que a carioca estava variando vendo melancolia num bode. “Tira uma foto comigo?!”, pediu a tia enquanto se aproximava do animal. Mesmo assustado com aquela senhora estranha, o bodinho estava muito fraco para correr e abandonar aquela cena grotesca da madame querendo exibir sua piedade com a figura do pobre animal. Tia Dilma virou-se, abriu um sorriso olhando para a câmera e colocou a mão na cabeça do bodinho numa pose ridícula e quase surrealista.

No mesmo momento, o bodinho gritou um solene beeeeé e virou a cara para aquela mulher metida, provocando um salto assustado da minha tia. “Ele ia me morder, ele ia me morder!”, gritou se afastando. O bodinho, coitado, não entendia mais nada e, por um estranho gesto de desculpa, caminhou na direção da tia, assustando-a mais ainda. Em pouco tempo, tia Dilma estava correndo como uma louca pelo quintal empoeirado e o bodinho atrás parecendo desejoso de recuperar o gesto de carinho que tinha recebido na cabeça. “Ou estaria com raiva”, pensei eu, “revoltado pelo uso da sua imagem esfomeada e triste para registrar a aventura da velhota no sertão?” Na dúvida, corri também atrás na tentativa de segurar o bode e poupar minha pobre tia do constrangimento e agressão caprina.

Antes que eu alcançasse o bodinho, minha tia caiu e ele se jogou por cima da senhora, desesperada se protegendo com as mãos, certa que seria mordida pelo desgraçado de um bode no meio do nada. Quando cheguei já era tarde. O bodinho estava comendo as pedras coloridas do colar de tia Dilma, mordendo a palha seca do chapéu e alternando o mastigar daquele duro alimento com lambidas afáveis no rosto da bondosa senhora. Puxei o animal de cima da tia que me olhou muito grata com um sorriso tão amarelo como o pasto do primo Arlindo. “Que bodinho simpático”, falou quase tremendo. Eu segurei no seu braço e a levei de volta para a caminhonete do primo Arlindo. “Tia, vamos embora, a senhora já conheceu os encantos e as dores do sertão e da seca do Nordeste”.