Sérgio C. Buarque >

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

 O som do discurso saia pelo janelão e crescia na medida em que eu subia os degraus na entrada da Escola de Engenharia, criando um clima tenso e emotivo, uma agonia por dentro e um calor na cabeça. Vários outros estudantes subiam quase correndo para o auditório no primeiro andar e iam entrando excitados no ambiente abafado e nervoso. No microfone, um jovem baixo de óculos gritava palavras de ordem, interrompido por notícias do rádio informando sobre resistência no sul do país. Grande agitação nos corredores, muita gente pressionando na entrada e um falatório confuso e inquieto, abafado apenas pelo som gritado do microfone. Líderes estudantis, professores e presidentes de sindicatos se revezavam em pronunciamentos à multidão que crescia e se manifestava com grande alvoroço.

Momento de exaltação, confiança e medo se mesclavam. Novo orador assumiu a fala e depois de um discurso inflamado e indignado, clamou à saída às ruas. “O exército ocupou o Palácio do Campo das Princesas – informou – e deve ter prendido o governador eleito, nosso companheiro Miguel Arraes. Vamos sair em passeata em direção ao centro exigindo a liberdade de Arraes”. Não houve mais discussão nem votação. A multidão quase me atropelou na saída do auditório com enorme estardalhaço e grande euforia que traduzia a confiança no nosso poder e na nossa capacidade de despertar indignação na população durante a trajetória. Quase correndo, descemos as escadarias ganhando logo a adesão dos que estavam do lado de fora esperando os acontecimentos.

Começamos com algumas centenas e, no caminho, a passeata cresceu um pouco e recebeu aplausos de pessoas penduradas nas janelas de repartições e escritórios que ocupavam o pequeno trecho da Avenida Conde da Boa Vista e toda extensão da Guararapes. Crescia a certeza na nossa força e a convicção de que Arraes estaria salvo e o seu governo não seria esmagado pelos militares. Na primeira manifestação política da minha vida, com meus 18 anos, eu me sentia glorioso no meio da história e marchando com o povo brasileiro para resgatar o governador Arraes das mãos dos golpistas naquele primeiro de abril de 1964. Caminhava no meio da multidão e um pouco atrás da linha de frente. Tinha medo, mas a excitação do momento e a fusão com aquela massa de jovens e militantes maduros superava qualquer insegurança, pois me sentia unido à multidão e protegido pela motivação política e por uma imprecisa convicção de propósitos. Cantávamos, gritávamos palavras de ordem, vi uma bandeira brasileira levantada na frente, avistei meu irmão Cristovam nas primeiras linhas, pensei em me aproximar. Me contive, tenso e nervoso, sem saber muito bem o que fazer e decidido a seguir os líderes experientes naquela tarde carregada de simbolismo histórico.

A manifestação dobrou à esquerda no final da Guararapes entrando na Avenida Dantas Barreto e ficando em frente ao Palácio do Governo do outro lado da praça. Como vinha no meio da passeata, percebi, antes mesmo de virar a rua, uma mudança no tom e no grau de exaltação, assim como uma diminuição do ritmo da caminhada. Todos os meus sentidos estavam excitados, captando e processando cada sinal: o som que arrefecia, a marcha que freava, os movimentos e os gritos misturando euforia e revolta. Quando fiz a curva das avenidas, eu vi a cena dramática que tinha provocado a alteração de atitude da manifestação. Diante de nós, a menos de 300 metros, um pelotão bem armado de soldados do exército em formação parecia antecipar um confronto tão desigual nas armas quanto nos argumentos, eles com fuzil e metralhadora e nós com a convicção de defesa da democracia e das lutas sociais lideradas em Pernambuco pelo governador Miguel Arraes. Confusão e desentendimento entre os líderes da manifestação contrastavam também com a obediente disciplina do pelotão à nossa frente que esperava em silêncio e em formação rígida as ordens do capitão. Eu não ouvia e não sabia o que se discutia na parte dianteira da passeata, mas naquele ambiente explosivo e carregado de emoção nada de sensato seria ouvido, a revolta crescia, os gritos aumentavam, a bandeira do Brasil se agitava. Eu pensava – acho que todos pensavam – que os soldados não teriam coragem de atirar neste grupo de jovens, a maioria estudantes, desarmados mas plenos de idealismo, carregando uma causa tão justa e digna que seria reconhecida e aceita por todos, mesmo os militares do outro lado da barricada.

Me movi para o lado direito da manifestação a tempo de ver a marcha dos soldados na nossa direção com fuzis e metralhadoras no pavoroso passo de ganso que me lembrava a SS nazista dos filmes americanos. Atrás, o capitão tinha uma pistola apontada e, embora não pudesse visualizar direito, ele parecia espumar de ódio. Ouvi tiros. Alguém gritou que era bala de festim e que deveríamos nos manter unidos e seguir em frente, certo de que os soldados não atirariam para matar. Mas a multidão logo começou a se dispersar, correndo para os lados e para trás. Mais tiros. Seriam balas de festim? Não, não eram.

O barulho de violência e angústia se misturava e me empurrava para o lado, ainda ouvindo tiros e descobrindo que os soldados atiravam sim com balas de verdade, de metralhadora e fuzis. Entrei numa loja de calçados na esquina antes que os empregados baixassem as portas de ferro. Estava muito assustado e lembrava que Cristovam deveria estar bem na frente da passeata, alvo fácil para os tiros criminosos. Tive tempo de sair da loja pelo outro lado antes que fechassem tudo e corri para a Rua do Imperador, muita gente correndo para todos os lados, confusão total. Pensei em entrar no primeiro ónibus que passasse sem destino, para qualquer destino, desde que saísse da linha de risco. Já não havia como entrar nos veículos lotados, passageiros que voltavam para casa e pessoas que se espremiam procurando fugir do tumulto, a maioria talvez nem entendesse o que estava acontecendo.

Depois de alguns minutos no final da Rua do Imperador, percebendo a diminuição dos sons e das correrias, voltei aos poucos e, com muito cuidado, passei ao lado da Igreja e desci pela Rua Nova; pelo caminho ouvia boatos desencontrados sobre mortos e feridos, presos e perseguidos.  Não conhecia quase ninguém na manifestação, mas temia pelo meu irmão. Caminhei até a ponte da Boa Vista e encontrei um conhecido que confirmou: dois estudantes secundaristas foram atingidos pelos tiros e morreram. Soube depois os seus nomes: Jonas José de Albuquerque Barros, de apenas 17 anos, e Ivan Rocha Aguiar, de 23 anos. A tristeza e revolta veio logo seguida de um alívio porque meu irmão não era uma das vítimas, reação egoísta naquelas circunstâncias. Quando o encontrei, ainda na ponte, me dei conta que ele também estava inquieto comigo: onde e como estaria naquela confusão e na violenta repressão? Conversamos rapidamente e decidi voltar para casa. Ele ia ficar ainda para analisar a situação com as lideranças da Escola de Engenharia e definir o que fazer, mas era importante que eu chegasse em casa logo para informar aos pais que os dois filhos estavam bem.

Voltei a pé, pensando no que vira, revoltado e assustado. O que poderia acontecer agora? A brutalidade me angustiava, não pensava que a política pudesse levar à morte de jovens como aqueles secundaristas. O pouco que já tinha lido sobre história política e sobre revoluções parecia ficção e não tinha esta força dramática da realidade com a morte de estudantes sob as balas de outros jovens soldados que talvez nem soubessem o que faziam, menos ainda o porque daquelas ordens trágicas. Pensava nos pais dos dois garotos, jovens com ideias e valores políticos como eu, mortos naquela tarde de forma tão brutal e desnecessária, apenas pela vontade de participar dos destinos do país, jogando seu próprio destino naquela manifestação. Pensava nos meus pais e imaginava a dor da notícia dos seus, o sofrimento da perda. Mas talvez, também com orgulho dos filhos que entravam para a história com seu sacrifício pela democracia, que naquela tarde estava sendo esmagada.

Não imaginava o que tinham feito Aécio, Ivanildo, o professor Brotas, José Arthur Padilha e outros diante da morte dos jovens manifestantes, a coragem e a solidariedade que demonstraram nos momentos dramáticos e temerários. Caminhei alguns quilômetros e me sentia muito solitário, ninguém no caminho parecia sensibilizado com os eventos da tarde, o movimento e os sons das ruas pareciam normais e, no entanto, Arraes estava preso, dois estudantes mortos e alguns feridos.

Do outro lado do confronto da Dantas Barreto, pensava, estava a maldade dos militares e seus poderosos instrumentos de destruição. Agora, tão distante no tempo, me ocorre que ali estavam também jovens soldados talvez sem nenhuma compreensão do momento ou mesmo completamente carentes de ideologia; quem sabe, algum dentre eles até simpatizasse com Arraes e teriam marchado conosco. Quantos sentiram a agonia do seu gesto ou eram indiferentes aos resultados, desinformados das causas daquele combate? Eram apenas soldados que puxaram o gatilho dos seus fuzis e metralhadoras provocando morte e desespero; por nada, por ordens de superiores, tão inferiores diante de um grupo de jovens armados apenas com desejos e bandeiras. O que teria pensado e sentido naquele momento cada um daqueles soldados agindo sob os gritos e ordens do oficial? E o que carregaram ao longo da vida com a lembrança dos jovens feridos ou mortos e do desespero no meio da manifestação contra a qual atiraram? Sabemos agora que entre eles estava um soldado amigo de Ivanildo Sampaio que, ao reconhecê-lo no meio da manifestação, levantou a arma e atirou para o ar evitando matar o então estudante de jornalismo.

O governador Miguel Arraes talvez nem estivesse sabendo daquele incidente dos jovens manifestantes que queriam resgata-lo da prisão, no mesmo momento em que ele estava sendo destituído do cargo pela força. Ele foi preso e alguns dias depois destituído do cargo pela Assembleia Legislativa que, subserviente e humilhada, tentou legitimar o golpe contra o governo eleito.

Já escurecia quando cheguei na rua onde morava, depois de quase uma hora de caminhada e pensamentos perdidos e desencontrados. Encontrei várias pessoas sentadas na calçada da esquina, alguns amigos jovens e um adulto, comentavam o incidente que as rádios já tinham transmitido, destacando a prisão do governador. Eu era o único que tinha vivido o momento tão trágico e histórico naquela avenida, próximo do palácio do governo. Relatei o que tinha visto e ouvido, comentei com orgulho e revolta sobre a manifestação, o movimento e os propósitos grandiosos e generosos, e demonstrei minha indignação com a morte dos dois estudantes.

Para minha surpresa e indignação, um dos meus amigos manifestou simpatia pelos golpistas procurando justificar a violência. Como alguém poderia concordar com a agressão e o crime contra simples manifestantes? Me senti ultrajado. Reagi com revolta e desolação. Levantei o dedo e vaticinei com fúria: “Estes militares não ficam nem um ano no poder”. Não tinha fundamentos para esta profecia, não entendia nada de política nem tinha informações suficientes sobre os fatos, apenas acreditava que os brasileiros reagiriam contra a brutalidade daquela tarde no Recife. A profecia, como sabemos, não se confirmou. Os militares dominaram o Brasil por mais duas décadas. Aquele momento, tão glorioso quanto doloroso, foi um batismo político de parte da minha geração que, mesmo com a ditadura, continuou organizando várias outras manifestações políticas e encontrando diferentes formas de organização e luta política.

Quase dez anos depois, em Santiago, ouvi o ronco assustador dos aviões militares e avistei o voo rasante dos caças da Força Aérea chilena que bombardeavam o Palácio La Moneda onde estava o presidente. Naquela manhã de setembro, morreu o presidente Salvador Allende resistindo ao golpe e ao bombardeio num gesto suicida e heroico de defesa da democracia. Neste intervalo de uma década, dois momentos da brutalidade política marcaram a história da América Latina na segunda metade do século XX. Se a manifestação de primeiro de abril de 1964 foi o meu batismo político (e de parte da minha geração), iniciando nova fase de participação política na história brasileira, a morte de Allende teve um sentido amargo de derrota continental.

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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