Introdução e justificativa
É simbiótica, antes de ser semiótica!, a relação que se estabelece entre cinema e literatura, desde tempos muito antigos. Há quem veja, por exemplo, na Ilíada de Homero, momentos cinematográficos. Assim como Alberto da Costa e Silva viu Navio Negreiro, de Castro Alves, do ponto de vista cinematográfico. Embora filho legítimo do teatro, em “união estável” com a fotografia (quando posta em movimento, principalmente), o cinema herdou da literatura sua função narrativa e o roteiro – um dos componentes essenciais da chamada sétima arte – é também uma peça literária. Tanto assim que Buñuel, consagrado cineasta espanhol, acredita “que nada es más importante em la fabricación de una película que um buen guión”, razão por que em quase todas “mis películas (menos cuatro) he necessitado um escritor, un guionista, para ayudarme a poner no negro sobre blanco el argumento y los diálogos” (BUÑUEL, Luis – DEBOLS!LLO, Barcelona: 2010, p. 286). É natural então que obra literária e obra fílmica interajam uma sobre a outra, estimulando o desenvolvimento harmonioso dessas duas manifestações artísticas fundamentais em nosso universo cultural – claro que isso se passa, sem prejuízo da independência necessária à manifestação de cada uma como linguagem específica.
Transmutação nos parece a melhor designação para o processo de transformação de uma obra literária em obra fílmica, processo hoje generalizado na indústria cinematográfica. Ela remete à tipologia formulada por Roman Jakobson para as traduções em geral, conceituando a transposição aqui estudada como “tradução inter-semiótica ou transmutação, que consiste na interpretação dos signos verbais, por meio de sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON apud BALOGH, Annablume, SP: 2004, p. 47). A respeito desse processo, Anna Maria Balogh comenta que “o mesmo conteúdo, ou parte ponderável dele, transita de um texto a outro… …a íntima coesão entre este conteúdo, que permite o trânsito intertextual, e uma expressão diversa, que o atualiza, não pode senão relativizar os diferentes textos de algum modo. Por este motivo, a maioria dos autores fala de recriação” (Annablume, SP: 2004, p. 47).
O processo configurado acima não se realiza a contento, senão pelo enfrentamento de várias dificuldades. A primeira delas é que, tanto as obras literárias, quanto as fílmicas, são obras de arte regidas pela função poética, o que nos deixa às voltas com a ambiguidade e a plurissignifcação conduzidas por tal função. Semelhante situação levou muitos, o próprio Jakobson inclusive, à conclusão de que a poesia é intraduzível, formulação que, no limite, desemboca num verdadeiro beco sem saída, impossibilitando completamente a realização da tradução interlingual (entre línguas diferentes), bem como a tradução inter-semiótica (entre sistemas de signos diferentes).
Encontrar alguma saída nesse beco vai depender da habilidade, da sensibilidade, do domínio no manejo dos instrumentos compatíveis, da competência, enfim, de quem se arrisque a empreender tais traduções. É o que tentaremos ver se conseguiu Leon Hirschman, cineasta brasileiro, que em 1972 tentou operar uma de suas principais transmutações, baseando-a em São Bernardo, romance de Graciliano Ramos, publicado em 1934.
SÃO BERNARDO, LIVRO: O NOVO NO ANTIGO!
Não houvessem nascido e escrito seus livros em épocas absolutamente distintas poderíamos dizer que, na elaboração de São Bernardo, Graciliano seguiu o princípio orientador formulado por Júlio Cortázar, consagrado escritor argentino, que em trechos de sua poética, contidos em “O Jogo da Amarelinha”, recomenda: “O romance que nos interessa não é o que vai instalando as personagens na situação e sim o que instala a situação nas personagens”. A hipótese é inverossímil – São Bernardo é da década de 30; O Jogo… da de 60. Mas ao acabar a leitura dos dois primeiros capítulos de Graciliano o que temos diante de nós é a pura aplicação do princípio sacramentado por Cortázar. Como assinala João Luiz Tafetá, em posfácio de uma das edições de São Bernardo, “o leitor foi – de chofre – empurrado para dentro de um mundo que desconhece. Não há, na entrada de São Bernardo, nem uma palavra que sirva para localizá-lo, nenhum painel descritivo que lhe permita conhecer de antemão o mundo que vai agora visitar. Foi lançado diretamente na ação, no meio dos fatos” (Record, Rio de Janeiro: 1996, p. 194). Diferentemente do costumeiro, na literatura praticada em meados do século XIX e começos do século XX, as personagens não são pré-concebidas. Elas vão se formando na ação. E crescem, diminuem ou desaparecem, conforme se revelem mais ou menos capazes de se locomover nas situações que sobre elas incidam.
É pela maestria com que domina o que há de mais moderno em termos de técnica narrativa (os exercícios de metalinguagem, a muda de narradores, ou das vozes que os representam, a utilização do discurso indireto e/ou livre, o esgrimir exuberante da dialética autor/narrador), que Graciliano constrói São Bernardo, deixando aos epígonos da crítica escolher onde melhor situá-lo. Se na esteira do que há de melhor no romance social – como expressão sociológica da “formação de um burguês”; se no ramal que o conduza pelas vertentes do romance psicológico – como expressão da criação de um sentimento, o ciúme, empreitada em que se equipara a um outro luminar da literatura brasileira, Machado de Assis e seu Dom Casmurro. De uma forma ou de outra, São Bernardo roça as fronteiras, a partir das quais se configuram as obras-primas – no caso, depois de Vidas Secas, a segunda do autor.
SÃO BERNARDO, FILME: O ANTIGO NO NOVO!
Como já se viu, na alusão inicial a Anna Maria Balogh e seu excelente “Conjunções, Disjunções, Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV”, a passagem de um texto literário para um texto fílmico pressupõe uma operação intertextual específica. Em outro artigo, a mesma autora indica que “a arte cinematográfica se constrói a partir da inter-relação de duas materialidades básicas, a imagem – iluminação, cor, enquadramento, movimentos de câmera e de personagens, entre outros – e o som – ruído, palavra, música -, num intricado tecido de relações estruturadoras do filme e de sua Graffia – linguagem cinematográfica” (ARX, São Paulo: 2009. p. 28).
É do domínio maior ou menor que possua, no manuseamento de cada um desses componentes essenciais da arte cênica, e da conjugação que deles possa fazer com os elementos essenciais que sobressaem da narrativa literária, que o cineasta vai nos dizer se conseguiu achar a saída, no beco em que se meteu ao se propor uma tradução inter-semiótica. Leon Hirszman nos parece ter conseguido êxito nessa façanha. Embora tenha optado pela transcrição integral – nos diálogos e na narração feita também em 1ª pessoa – do texto de São Bernardo, o que levou muitos a apontar certo empobrecimento no produto transmutado, Hirszman o faz estabelecendo duas ordens de manifestação discursiva: uma, verbal-literária, e outra, imagética. O encontro dessas duas vertentes, que atravessa todo o filme, atenua o que possa haver de negativo na primeira – graças à qual é possível reconhecer o livro inteiro nas falas do filme -, fazendo resplandecer a segunda -– expressão essencial da linguagem para a qual se fez a transmutação. Um comentário de Geraldo Carlos do Nascimento nos ajuda a compreender melhor o dito:
“No filme, há poucos movimentos de câmera. Ela fica a maior parte do tempo praticamente parada. Ao fazer isso, Hirszman ilustra a maneira de pensar do protagonista e, também, remete ao modo de contar de Graciliano, à sua propalada concisão, sua economia de linguagem. A narrativa se repete, o autor cinematográfico retoma enquadramentos, marcações. Por exemplo, na cena depois da primeira explosão emocional de Paulo Honório com D. Glória, tia de Madalena: a mulher, num gesto de boa vontade e compreensão leva café para o marido no quarto e o casal se reconcilia. Isso não é dito, mas se evidencia” (ARX, São Paulo: 2009, p. 80).
O mesmo autor aponta outras cenas (Paulo Honório e Madalena na Igreja, depois que ele disse tudo que sentia, por conta de seu ciúme doentio, e os dois se dirigem a um banco próximo para sentar e conversar; ou na cena em que se faz a negociação das terras de São Bernardo, quando a posição de subordinação de Padilha é dada pela posição em que é metido, dentro de um fosso, no qual fica nítida sua inferiorização) como reveladoras de que o sentido do filme “se constrói não só no nível das peripécias narrativas, mas também e principalmente no modo de expor e de contar, com a utilização de diferentes recursos discursivos” (ARX, São Paulo: 2009, p. 81).
Além disso, voltando ao que diz Anna Maria Balogh, na maioria das transposições fílmicas, procura-se eliminar quaisquer elementos problemáticos para a inteligibilidade da narrativa ou para a passagem ao visual. É o que ocorre com as reflexões de Paulo Honório sobre o próprio ato de escrever o romance, eliminadas em “São Bernardo” – filme. Nada de metalinguagens, narrativa pura e simples.
Foi pela capacidade que teve de criar uma gramática e uma sintaxe próprias, fazendo-as expressão de uma nova linguagem, ao aplicá-la com habilidade sobre a tessitura de uma linguagem mais antiga, que Hirszman conseguiu fazer com que seu filme escapasse de acusação habitual em casos semelhantes: a de se tratar de uma “tradução servil” ou meramente ilustrativa. Pela sensibilidade que revelou no tratamento de cada um dos componentes essenciais das linguagens que na transmutação se entrelaçam, ele conseguiu que seu filme preservasse, em primeiro lugar, a sua autonomia fílmica. Ou seja: se impusesse como filme, como obra própria do universo cinematográfico, antes de ser avaliado ou visto como obra decorrente de qualquer outro universo. A veracidade dessa constatação nos ficou meridianamente clara, num rápido levantamento de opiniões, que fizemos entre as pessoas que haviam apenas visto o filme, sem conhecimento da obra na qual ele se baseara. Todas se disseram encantadas com o que haviam visto. O que já é muito, por introduzir na análise crítica o que parece fundamental hoje em sua elaboração – a opinião do receptor, diante de qualquer obra de arte.
Referências Bibliográficas:
BALOGH, Ana Maria – Conjunções/disjunções/transmutações – Da literatura ao cinema e à TV – ANNABLUME – São Paulo: 2004.
LAFETÁ, João Luiz – O Mundo à Revelia – in: São Bernardo – Record, Rio de Janeiro: 1996
NASCIMENTO, Geraldo Carlos do. – São Bernardo Revisitado: a emergéncia do narrador no Cinema – in: O feitiço do Cinema – Orgs: Juan Guillermo Droguett e Flavio Andrade – ARX – São Paulo: 2009
RAMOS, Graciliano – São Bernardo – Record, Rio de Janeiro: 1996.
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