Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo no ano de 1902. Era portanto muito jovem quando o modernismo irrompeu ruidosamente na cena cultural brasileira com a Semana de Arte Moderna em 1922. Embora intelectualmente muito atuante ao longo do decênio de 1920, também durante os anos seguintes, somente publicou seu primeiro livro em 1936, quando Raízes do Brasil veio a público. No entanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, foi muito modificado entre a primeira edição e a segunda, que data de 1948. Apesar de confessadamente não encarar Raízes do Brasil como seu livro mais importante (preferia Visão do Paraíso, cuja importância capital se impõe cada vez mais aos olhos dos especialistas), o fato é que esta é a obra que o consagrou e se mantém como a mais significativa e estudada no conjunto da sua produção intelectual.
Sérgio Buarque viveu cerca de um ano e meio na Alemanha, entre junho de 1929 e dezembro de 1930. Menciono ligeiramente essa experiência porque teve muita importância na sua vida e formação, além de se refletir de vários modos no texto de Raízes do Brasil. Sérgio Buarque foi para a Alemanha como correspondente de O Jornal, periódico de propriedade de Assis Chateaubriand. Além de observar o clima de violência e tensão social que em 1933 culminou com a ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, leu muito da produção intelectual alemã desconhecida no Brasil. Leu em particular Max Weber e Georg Simmel. Do primeiro aproveitou o conceito de patrimonialismo para melhor compreender a formação do Estado brasileiro e seu aparato burocrático; com o segundo refina sua percepção analítica dos tipos sociais que certamente ilumina categorias como o semeador e o ladrilhador, núcleo e título do capítulo 4 de Raízes do Brasil.
Desde já esclareço que as citações diretas que acaso faça da obra no texto que segue serão extraídas da edição comemorativa dos 70 anos organizada por Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Schwarcz, Editora Companhia das Letras, 2006. Além de ser uma edição previsivelmente bem mais ampla e melhor cuidada do que todas as precedentes, vem enriquecida por textos do próprio autor e de estudiosos e especialistas, arrematados pelos “Apontamentos para a cronologia de Sérgio Buarque de Holanda” assinados por Maria Amélia Buarque de Holanda, sua companheira e colaboradora da vida inteira. Além de republicar o sempre citado prefácio de Antonio Candido escrito para a edição dos 30 anos de Raízes do Brasil, são adicionados textos importantes de Alexandre Eulálio, Evaldo Cabral de Mello, Bolivar Lamounier, Antonio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro e Robert Wegner.
Enriquecem ainda o volume três documentos raros: o muito citado artigo no qual é reposta a controvérsia entre Cassiano Ricardo, autor do artigo, e Sérgio Buarque de Holanda acerca do conceito de homem cordial. Como sabemos, esse conceito, central na argumentação do livro de Sérgio Buarque, tem sido objeto de ampla fortuna crítica, mas também de muito mal-entendido. O mal-entendido aparenta originar-se das críticas formuladas por Cassiano Ricardo. Portanto, é oportuna a inclusão do seu artigo na edição que comento acrescido da resposta de Sérgio Buarque em forma de carta endereçada a Cassiano Ricardo. Essa questão é ainda melhor iluminada pela inclusão de um curto texto de Ribeiro Couto, datado de 1931, no qual ele saúda o surgimento do homem cordial na América originário da fusão do homem ibérico (o espanhol e o português) e as culturas nativas do Novo Mundo. Cuidarei melhor dessa questão no lugar apropriado, quando abaixo discutir o capítulo relativo ao homem cordial brasileiro. Por fim, um texto ainda mais precioso: o ensaio “Corpo e alma do Brasil”, publicado em 1935. Nele Sérgio Buarque sintetiza o que no ano seguinte constituiria a primeira edição de Raízes do Brasil. Como já observei no parágrafo de abertura, a obra foi refundida e ampliada na segunda edição, lançada em1948, que passou a ser o texto definitivo da obra que estudamos.
O título da obra já indica, de partida, sua regressão às origens da nossa formação histórico-cultural com o propósito de explicar o Brasil. Essa é uma característica comum a todas as obras que compõem a tradição do pensamento social brasileiro. No caso do livro de Sérgio Buarque, porém, o objetivo de estudar o passado visando as questões fundamentais do presente é bem mais nítido, como aliás ressaltou Antonio Candido. Uma das evidências imediatas desse fato consiste nos títulos e na matéria dos dois capítulos finais intitulados “Novos Tempos” e “Nossa Revolução”. Sérgio Buarque recua portanto a nossas origens histórico-culturais para projetar luz sobre o presente, para melhor compreender e esclarecer os problemas fundamentais e impasses da sociedade brasileira.
O autor ressalta nas páginas iniciais duas questões de grande relevância no conjunto da obra. A primeira refere-se ao processo de implantação da cultura europeia no trópico, fator originário da constituição da cultura brasileira. Depois de acentuar as diferenças profundas observáveis entre esses dois mundos que se encontram, entrechocam e por fim geram uma realidade inteiramente nova, Sérgio Buarque escreve um dos períodos mais citados da sua obra: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. (p. 19)
A segunda questão diz respeito à cultura da personalidade típica do homem ibérico. Depois de observar que representou o traço mais importante desse povo, esclarece que ela traduz o valor, a originalidade de cada pessoa que assim se diferencia da coletividade e até a esta se opõe. Salientando a oposição entre o culto da personalidade e as formas de associação características de toda coletividade, Sérgio Buarque assinala que essa forma de personalismo ibérico constituiu e constitui ainda na nossa cultura uma força de oposição à coletividade, além de estar na raiz das forças anárquicas e desordenadoras da nossa sociedade. Paradoxalmente, ela supõe a obediência, que se afirma notadamente em situações de crise de autoridade. Como justamente anota, “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. (p. 21).
Assim, na terra onde medra o personalismo altaneiro, não raro arrogante, em termos políticos o autoritarismo típico da América Latina, medra também a obediência imposta por uma autoridade temida nos momentos de crise. A terra do personalismo ibérico é também fértil na produção de forças sociais anárquicas, como também já ressaltei. Sérgio Buarque acrescenta, a esse propósito, que essas forças sempre se manifestaram na nossa história, não raro favorecidas pela cumplicidade e a leniência das instituições. Importaria esclarecer, visando melhor contextualizar a obra, que ela foi escrita em meio a esse clima no qual se manifestavam forças anárquicas representadas por rebeliões armadas e combates ideológicos e conflitos violentos travados por comunistas e integralistas, ambos buscando soluções políticas e sociais avessas à democracia. É significativo que o Estado Novo, instituído através de um golpe de Estado por Getúlio Vargas em 1937, portanto no ano seguinte ao da publicação de Raízes do Brasil, tenha imposto essa autoridade temida diante da qual o personalismo assina o pacto social da obediência. Como sabemos, o Estado Novo vigorou até 1945. Depois de um período conturbado, durante o qual o Partido Comunista manteve-se na legalidade apenas por um curto período, sobreveio o golpe militar de 1964 e a ditadura militar que se prolongou até 1985. Esses poucos fatos históricos conferem força explicativa ao livro de Sérgio Buarque.
Penso que as forças anárquicas sublinhadas na obra de Sérgio Buarque também se manifestam em âmbito distinto do estritamente político acima mencionado. Elas são observáveis, por exemplo, no cotidiano da nossa cultura, na nossa incapacidade crônica de instituirmos relações de convívio baseadas na distinção fundamental entre a esfera pública e a privada. Nossas forças de desregramento social são facilmente visíveis numa cena qualquer de rua, no estado típico de uso e conservação da rua. Afinal, é ela quem define culturalmente a concepção inconsciente e a prática de sentido público que imprimimos à nossa experiência social.
Outra questão relevante, também salientada por Sérgio Buarque, liga-se à condição excêntrica do mundo ibérico na Europa. Essa excentricidade resulta tanto da posição geográfica da península ibérica, espremida entre o continente europeu e o africano, quanto de caracteres culturais diferenciadores fruto do contato do ibérico com o árabe e o judeu. Essa experiência de contato cultural com povos do continente africano familiarizou o português com a mestiçagem e lhe foi de grande utilidade no processo de colonização do Brasil onde desde o início, como bem sabemos, livremente se mesclou com as tribos indígenas através do acasalamento com a mulher índia, mais tarde com a negra. Trata-se, em suma, de uma questão antes bem explorada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. Portanto, Sérgio Buarque apenas reitera o que se pode ler nas páginas da obra do seu antecessor.
Retomando a questão pertinente ao culto da personalidade, ela se irmana ao conceito de cordialidade que estudarei adiante. O personalismo ibérico, tão acentuado no livro de Sérgio Buarque, atua como força avessa à organização coletiva da sociedade. Quando se associa, tende a associar-se baseado em relações de sentimento, não de interesse. Esse é um dos aspectos em que é possível notar a profunda diferença entre o individualismo moderno, típico da tradição anglo-saxônica, e o personalismo ibérico. Este produz um tipo de individualismo com razão detestado e detestável, pois se afirma indiferente aos interesses e direitos coletivos. Noutras palavras, o que entre nós ainda vigora não é o princípio segundo o qual minha liberdade termina onde a do outro começa, mas sim o princípio que autoritariamente ordena: os incomodados que se mudem.
Caberia ainda acrescentar, nesse paralelo sumário entre o individualismo de extração anglo-saxônica e o personalismo ibérico, que este mascara interesses explícitos naquele. Já que se baseia nas relações de sentimento, o personalismo rejeita a atuação dos interesses nas relações associativas. Assim procedendo, tende a mascará-los, além de sempre reprovar quem acaso tenha a consciência de explicitar esta verdade elementar: as relações humanas em geral envolvem interesses unilaterais ou recíprocos. Se o individualismo moderno é em muitos sentidos reprovável, na medida em que encoraja em demasia os interesses de ordem privada, tem ele a vantagem de reconhecer sem máscara ou isento de inconsciência danosa o lugar efetivo que os interesses ocupam nas relações humanas. Nosso personalismo, atado às razões sentimentais, repele o individualismo consciente e prático, mas é pautado por interesses inconfessáveis ou inconscientes como os que latejam nessa frase modelar da nossa cultura: antes ter amigos em casa do que dinheiro na praça. Ou ainda esta: para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.
Concluo essas considerações em torno de alguns aspectos de Raízes do Brasil tecendo algumas anotações relativas ao capítulo intitulado “O homem cordial”. Além da importância fundamental que desempenha no conjunto da obra, o conceito chave aí exposto por Sérgio Buarque, o da cordialidade brasileira, tem dado margem a muito mal-entendido. Houve quem erradamente o interpretasse lendo efetivamente o livro, como foi o caso de Cassiano Ricardo, e houve sobretudo quem remasse nessa canoa furada simplesmente por opinar sem o ler. A canoa furada consiste, noutras palavras, em interpretar cordialidade como sinônimo de bondade. Daí não faltou quem concluísse que Sérgio Buarque de certa forma endossava interpretações ufanistas do Brasil ao caracterizar o brasileiro como acima de tudo bom. Tentarei esclarecer agora esse equívoco indo ao próprio texto da obra.
O próprio autor, visando corrigir a incompreensão de Cassiano Ricardo, assim como de tantos que traduzem cordialidade num sentido incompatível com aquele contido em Raízes do Brasil, cuidou de inserir na obra, a partir da segunda edição, longa e esclarecedora nota explicativa. A ela agora se acrescenta, a partir desta edição comemorativa dos 70 anos em que me baseio para a redação destas notas, a carta que escreveu para Cassiano Ricardo em setembro de 1948. Divergindo deste, que identifica cordialidade com polidez e opõe cordialidade a bondade, Sérgio Buarque deixa claro, aliás desde o texto da primeira edição, conceber a cordialidade como a expressão dos vínculos de cunho emotivo característicos das relações sociais brasileiras. Essa característica, de resto, irmana o conceito de cordialidade com o do culto da personalidade, como acima observei.
Indo adiante na intenção de bem esclarecer o desacordo, Sérgio Buarque alude à etimologia da palavra cordial. Procedendo do latim cordis, isto é, “relativo ao coração”, às expressões humanas de fundo emotivo procedentes do coração, visa ele acentuar a descontinuidade, ou melhor, a oposição entre as relações de fundo emotivo ou pessoal, típicas do homem cordial, e as relações de base legal, que entendo características da democracia moderna baseada nos valores de cunho impessoal, universal e abstrato típicos da ordem legal inspirada no individualismo moderno. O sentido que procuro aqui esboçar parece-me evidente já na abertura do capítulo “O homem cordial”, onde o autor começa por ressaltar a descontinuidade, ou mais exatamente a oposição, entre a ordem familiar, notadamente a ordem familiar patriarcal típica da formação da cultura brasileira, e a ordem do Estado. Como Sérgio Buarque acertadamente pontua, o Estado precisou negar a ordem privada da família para se constituir como expressão política das leis impessoais e abstratas da Cidade. Daí também deriva a oposição clara que estabelece entre cordialidade e polidez. Também nesse ponto volto a recorrer à etimologia, embora Sérgio Buarque não repita esse procedimento que emprega para melhor esclarecer o sentido de cordial, cordialidade. O ser polido é aquele cultivado, educado pelas leis da polis, isto é, da cidade politicamente organizada. Penso que a oposição que o autor fixa entre a ordem familiar e aquela instituída pelo Estado é da mesma natureza da que opõe o homem cordial ao homem polido.
Negando ao brasileiro esta qualidade, a da polidez, o que Sérgio Buarque pretende mais uma vez enfatizar é a prevalência na nossa cultura das relações de fundo emotivo enraizadas no coração. Ora, ele nitidamente identifica nessa nossa característica um traço negativo que precisaria ser superado pela ordem social em formação naquele período, aludo à época em que o livro foi escrito, para que no Brasil efetivamente se realizasse uma democracia moderna, isto é, baseada no império das relações legais, que como tal suprimem os valores oriundos do culto da personalidade e do homem cordial. Em suma, a ordem legal na qual passariam a dominar relações legais baseadas em princípios universais e abstratos.
Fazendo uma aposta otimista acerca do nosso futuro, Sérgio Buarque acreditou que essa nova ordem triunfaria graças ao processo de urbanização em marcha acelerada, à instituição de novos métodos educativos e práticas de organização do trabalho, casos exemplificados no capítulo que comento. Embora acentue ainda a predominância do funcionário patrimonial em oposição ao burocrata, parece-me também clara sua convicção de que este se imporia àquele. Temos aqui uma outra ordem de oposição clara. Enquanto o funcionário patrimonial prende-se à ordem tradicional associada à família patriarcal que se projeta sobre a ordem política privatizando a esfera pública, o burocrata pauta sua função pelos mesmos princípios impessoais e abstratos observáveis na instituição do Estado moderno. Os exemplos que o autor expõe acerca da psicologia moderna aplicada à educação também reiteram e reforçam a oposição que percorre todos os pares acima considerados. Portanto, entendo que em resumo o universo das relações cordiais identifica-se com o império das relações de fundo emotivo, pessoais e antidemocráticas. No outro extremo, situam-se as relações de fundo legal, típicas da democracia moderna.
No frigir dos ovos, se minha interpretação é correta, sem dúvida avançamos em muitos sentidos em direção à ordem legal e democrática postulada na obra de Sérgio Buarque. Ele postula essa mudança e nitidamente declara a esperança de que ela venha a se consumar na sociedade brasileira. Embora possamos constatar avanços inegáveis na direção apontada, infelizmente o homem cordial é ainda uma realidade muito viva na nossa cultura. Seus valores são ambivalentes, como aliás já o reconhecia o autor. Se de um lado estão enraizados em muito da nossa espontaneidade, da nossa aversão a ritualismos estéreis, mas também a ritualismos em geral, e aí a coisa já complica o sentido dos ganhos entre espontaneidade e formalismo social, de outro lado eles estão nas raízes das nossas relações desiguais, do favorecimento dos parentes, amigos e apadrinhados, da ordem social baseada no privilégio e, no limite, na apropriação corrupta do público pelo privado.
Concluindo, o Brasil encontra-se já no início do século 21, sua economia está entre as dez mais poderosas do mundo, mas no âmbito cultural e institucional continuamos nos balançando sem solução entre os valores da cordialidade, ou das relações de fundo emotivo e pessoal, e os valores da ordem social democrática baseada em relações legais de fundo universal e abstrato. Pior para a maioria e portanto para o conjunto da nação, ainda atada a uma ordem de realidade cultural que bem justifica a frase famosa de Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”. Sendo assim, as explicações aqui estudadas sem dúvida muito nos esclarecem, mas não são nem podem ser a solução dos problemas que entravam nosso ingresso na modernidade plena. A solução, suponho, depende de transformações socioculturais e econômicas profundas, que ninguém sabe quando se completarão
Muito bom, Há que refletir antes de comentar.
Ingressar em qual modernidade? A da democracia dos drones e da sobrevivência a custa da individualidade?
Leio Mota Lima e digito em voz alta. Existe um horror moderníssimo Os não cordiais bandidos de hoje que assaltam e matam, incendeiam com a cordial banalidade do mal.
Maluf já pediu: estupre, mas não mate.
Ainda não temos fundamentalistas com cimitarras nos dentes, mas os eleitores cordiais enviarão para o Congresso, em 2014, um maior número de felicianos e malafaias?
Vou ler de novo e pensar. Em tese, gostei.
Caro David Hulak: Muito grato pelo comentário. Não preciso salientar que estamos aqui para discutir livremente. Este é o meu critério e também o da revista. Portanto, sinta-se à vontade para reler e discutir. Um abraço.
Camarada Fernando
Excelente artigo. Gostaria de fazer um adendo, com minha opinião pessoal sobre a polêmica em torno da expressão “homem cordial”.
Como você, entendi perfeitamente o contexto em que Sérgio Buarque usa a expressão, tomada emprestada de Ribeiro Couto. Até porque, a partir da segunda edição, como você bem assinalou, ele se estende de maneira a explicar seu conteúdo exato, tal como ele o entende.
Conceitualmente, o trabalho do intelectual paulista tem a envergadura, por todos percebida, de obra seminal nos estudos brasileiros.
Entretanto, do ponto de vista comunicativo – ao qual me atenho aqui – o brilhante ensaísta cometeu um erro feio, um ruído grosso. Tanto que teve de se explicar melhor (e quando temos que explicar tanto uma palavra é porque não usamos a palavra exata). E ele passou a vida inteira se explicando! Nas mudanças da edição citada, na resposta a Cassiano Ricardo, em entrevistas, artigos, o escambau.
É óbvio que não era seu objetivo levantar polêmica, ameaçando reduzir a dimensão da obra a uma discussão meio bizantina.
O fato é que, para expressar o conceito – que sua análise exaure – ele poderia usar outra expressão, outra palavra: “emotivo”, “sentimental”, “impulsivo”, ou outra ao seu (dele) gosto – quem sou eu para “copidescar” o texto canônico! Cito exemplos apenas para evidenciar que o ruído poderia ter sido evitado.
O primeiro problema foi emprestar da expressão de Ribeiro Couto – inicialmente creditada e depois tendo o crédito omitido – para usá-la numa acepção diferente. Complicação desnecessária para o entendimento dos receptores!
(Na carta ao embaixador mexicano Alfonso Reys, de 1931, Ribeiro Couto se alonga: “Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o Homem Cordial. O egoísmo europeu, batido de perseguições religiosas e de catástrofes econômicas, tocado pela intolerância e pela fome, atravessou os mares e fundou ali, no leito das mulheres primitivas e em toda a vastidão generosa daquela terra, a Família dos Homens Cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade. Numa palavra, o Homem Cordial.” E adiante: “Somos povos que gostam de conversar, de fumar parados, de ouvir viola, de cantar modinhas, de amar com pudor, de convidar o estrangeiro a entrar para tomar café, de exclamar para o luar em noites claras, à janela: – Mas que luar magnífico! Essa atitude de disponibilidade sentimental é toda nossa, é ibero-americana… Observável nos nadas, nas pequeninas insignificâncias da vida de todos os dias, ela toma vulto aos olhos do crítico, pois são índices dessa Civilização Cordial que eu considero a contribuição da
América Latina ao mundo.” (Grifo meu).
Até certo ponto, o contrário do que Sérgio Buarque queria dizer!
O segundo problema está na acepção mesma da palavra. Registra o Houaiss:
“cordial – adjetivo de dois gêneros
1 que demonstra afabilidade, sinceridade; caloroso, franco
Exs.: abraço c.
palavras c.
2 que revela disposição favorável em relação a outrem
Ex.: um chefe c. mas rigoroso
3 em que há boa vontade ou convergência de pontos de vista
Exs.: reunião c.
relações c.
4 Estatística: pouco usado.
referente a ou próprio do coração (‘órgão’)”
Ou seja, somente na quarta acepção, assim mesmo na rubrica “estatística” e com a ressalva “pouco usado”.
Para se explicar (mais uma vez), na discussão com Cassiano Ricardo, Buarque diz: “A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração.”
E aqui emerge o terceiro problema: na linguagem (mesmo na norma culta) a palavra cordial tem conotação positiva, benfazeja. Cordial é quem (com Houaiss) “demonstra afabilidade, sinceridade; caloroso, franco.”
No imaginário coletivo, o coração é o órgão que abriga o amor (o Cupido flecha corações, imagem universal), o que transborda para a fala cotidiana (“você está no meu coração”, “um coração de ouro”, “coração” como vocativo para a pessoa amada etc.). Na religião católica, venera-se o “Coração de Jesus”, ícone da suprema bondade (pessoalmente, acho a imagem sangrenta meio grotesca, mas isso é outra história). Na comunicação visual, o coração é símbolo de amor ou simpatia (que é quase amor, segundo os foliões cariocas): está nos antigos caderninhos das adolescentes e nos atuais emoticoms das redes sociais.
É realmente muito raro alguém usar, na fala cotidiana ou na escrita, a imagem do coração vinculado a sentimentos negativos, como ódio ou inimizade, como Buarque tenta fazer crer numa notória acrobacia linguística.
Portanto, sem desmerecer em nada o imenso valor de “Raízes do Brasil”, fica patente que, do ponto de vista da comunicação, doutor Sérgio deu uma bela escorregadela.
“Cordialmente”, acredito que se um determinado emissor usa um termo mal-entendido por uma grande parcela dos receptores, um dos dois está errado (o emissor ou o receptor). Do ponto de vista da comunicação, o errado é o emissor. (Espero ter me expressado com clareza e ser entendido, rssssssssss.)
Meu caro Homero: Concordo com as considerações muito pertinentes e esclarecedoras que você faz no seu comentário sobre esse tão mal-entendido conceito da cordialidade. Portanto, Nada teria a acrescentar, salvo agradecer a paciência e zelo com que você comenta minha resenha acrescentando-lhe esclarecimentos tão oportunos. Concordo também que Sérgio Buarque foi infeliz na escolha do termo, cuja ambiguidade ele próprio contribui para agravar, coisa que não ressaltei na resenha porque minha preocupação exclusiva era tentar na medida do possível dissolver esse mal-entendido conceitual que ronda ainda a recepção de Raízes do Brasil. Muito grato, Homero.
Excelente interpretação, para um livro que extrapola áreas de conhecimento! Eu mesma, sendo arquiteta, o li em 1991 para uma prova de Estética, em concurso para especialização em História Cultural.
Visões do Paraíso tem linguagem mais literária. Deixa entrever o gosto do autor pela poesia, e seu papel de crítico literário, tão bem expresso em livros seus, como O Espírito e a Letra, e em seus textos para a revista Ariel.
Parabéns, Fernando.
Eliane Lordello.
Vitória. ES.
Fernando
É sempre bom ler seus textos. Sobretudo este sobre uma questão tão atual e ainda mais com enriquecedores e pertinentes comentários, como o de Homero.
Um abraço
Sonia
Eliane e Sônia: Muito grato pela leitura generosa. Também estou atento ao que você escreve nesta revista, Soninha. Um abraço,Fernando.