Eu vi uma negra. Ela era jovem e carregava, como um burro de carga, uma carroça cheia de lixo e dejetos, colhidos ao longo do dia para ganhar algum. Sentia-se a força de uma mulher que, com brilho nos olhos, braços musculosos, avançava puxando aquele fardo que insiste em imprimir a marca da miséria e do subdesenvolvimento do Brasil.
Aquela carroça, puxada por um homemanimal, é um símbolo multinacional da miséria que perpassa os países pobres. Como o logo da Dell ou da Microsoft, é a logomarca da miséria humana, que nos transporta para o Congo, o Haití ou a Índia.
Ao seu lado, um esquálido auxiliar – quase branco, quase negro – cuidava para que a frágil proteção de papelão não deixasse cair o fruto do seu trabalho. E eu, dentro do meu carro com ar condicionado, smartphone na mão com a internet e o mundo de conhecimento à distância de um arrastar de dedos, tive, a princípio, receio que a carroça, a qual iria passar entre meu carro e o ônibus…arranhasse meu carro.
Nossos olhares se cruzaram. Entre nós havia apenas um vidro automático e centenas de anos da formação econômica e social do Brasil. Estávamos no Recife Antigo, um bairro fundado pelos holandeses nos 1600. A poucos metros, a Rua Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, onde se comercializava escravos negros vindo da África.
Essa mulher, assim como milhares de brasileiros que herdaram a negritude em suas veias e em suas almas, vivem num Brasil atemporal. Para eles, o arcabouço jurídico, o Estado e suas benesses, não chegaram para moldar sua cidadania, para imprimir-lhe a dignidade mínima de uma existência.
Naquele momento eu estava pensando no voto do Ministro Celso de Mello (com dois eles, pois fica mais nobre) e de como abordar ou dar vazão a minha raiva através de um artigo para Revista Será?
A decisão do STF em acolher os “embargos infringentes”, formalizada com o voto do Ministro Celso de Mello, evoca-me uma das pedras fundamentais do pensamento marxista, que de tão simples, pode perecer hoje algo óbvio, mas na época, século XIX, não era. Trata-se da afirmação de que o Estado pertence à elite política e econômica que detém os meios de produção, a classe dominante, e o resto, a maioria dos trabalhadores, a classe dominada.
Perdoem-me os pós-marxistas puxar o abecedário básico do marxismo para refletir sobre um momento tão crítico da história política nacional. Evidentemente muito se evoluiu de 1848, ano do Manifesto do Partido Comunista, até os nossos dias. Mas assim como a história não dá saltos, o pensamento e a praxis política também não. E se o fenômeno social é arcaico, as ideias arcaicas servem para explicá-los.
Se temos hoje as modernas democracias ocidentais como formas menos imperfeitas de governo, nelas estão latentes, (ou recalcadas?), encobertas por camadas civilizatórias de conhecimento, lutas libertárias e pela Lei, os conflitos estruturantes da sociedade.
Marx continua certo, mesmo sem saber que suas descobertas se voltariam contra suas utopias socialistas. Vejam em que se transformou o Estado Bolchevique, após a Revolução de 1917, principalmente com Stalin, servindo a uma classe dominante em detrimento da maioria, sempre esmagada pelo Estado. Olhemos o Estado no Irã, pós Komeini – não estou anistiando o Xá Reza Palev, por favor – com o islamismo fundamentalista penetrando no DNA do Estado e envolvendo o cidadão com um manto controlador de uma moral da idade média, anulando a mulher como indivíduo político e social. Para não dizer da Igreja Católica nos séculos de Inquisição, que era o próprio Estado.
A impecável lógica apresentada pelo Ministro Celso de Melo em seu voto de 18 de setembro de 2013 segue a mesma linha de raciocínio que aqui exponho: o Estado brasileiro (herdeiro direto do Brasil colônia), formado há séculos – e Celso de Melo foi buscar informação no Brasil Império – vem servindo, historicamente, aos interesses de uma elite dominante, a qual, descolada da sociedade civil e protegida pela secular impunidade, goza seus privilégios a custa do esforço da grande maioria, o cidadão e a cidadã brasileiros.
Um exemplo claro é a evolução da legislação eleitoral brasileira no século XX. É possível se perceber os avanços da sociedade civil, a custa de muita luta, para se chegar ao voto universal, vencendo resistências dos legisladores da época. Isso sem falar nas relações trabalhistas, onde a justiça tem as mãos ensanguentadas pelos acoites dados no negro escravo no Brasil, sem contar com a repressão a líderes sindicais – quando estes organizavam a classe trabalhadora.
Não há outro meio mais eficaz de se ultrapassar formas arcaicas de dominação política do que o regime democrático. A Era das Revoluções cumpriu seu papel e a democracia se impõe hoje com um valor universal, pelo menos do lado ocidental. Mas para que serve essa tão propalada democracia? Por que se lutou tanto para chegarmos a uma democracia plena no Brasil, se o STF, quando tinha tudo para dar uma guinada histórica, decidiu seguir sua servil e linear função de defensor da classe dominante?
O STF, com sua decisão favorecendo claramente a impunidade por crimes praticados por membros relevantes da elite política, embora com base sólida na constituição, cumpre apenas seu roteiro secular de legitimação de uma relação arcaica de dominação política de uma elite dominante contra a sociedade civil.
Se quisermos uma pista de por que o STF amarelou basta olhar – com os olhos de ver – a negra da carroça. Ela está em toda periferia das grandes cidades. É fácil.
DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
Grande João alinho-me aos seus sentimentos. A que distancia estará de nós a tão esperada luz no fim do túnel?
Abraços e seja feliz.
Amaro
Caro amigo embratelino.
A Luz no fim do túnel é aqui e agora, fruto do embate entre as forças arcaicas de dominação política e o novo que emerge na política.
Um abraço
João Rego,
o processo de aparelhamento do Estado brasileiro se dá em três níveis: primeiro, na ocupação física de cargos da burocracia estatal (são mais de 15 mil funções de confiança no gov. federal); segundo, na disseminação de mentalidade de proveito pessoal a qualquer custo (vide Rosemary e a namorada de José Dirceu); terceiro, na ausente liderança no PT que restabeleça o princípio da impessoalidade na gestão pública. Porque a presidente Dilma é refém do comissariado.
O governo está se tornando um departamento do PT.
Caros Luiz Otávio Cavalcanti e Afrânio Tavares:
Sem querer defender o PT, ou qualquer outro partido que vem conduzindo a nação nessas décadas democráticas, gostaria de enfatizar que falo, em todo o momento, em duas instâncias que sobredeterminam os partidos e as ideologias, se impondo ontologicamente, desde quando o poder se instituiu entre os homens, na sua passagem da barbárie para a vida em sociedade: a elite política e a sociedade civil.
Ou seja, são forças históricas e culturais muito superiores a partidos políticos.
O ponto central do meu artigo é que há uma herança arcaica na formação dos juristas que compõem o STF, como também há uma evidente renovação, senão não haveria empate, só que, por um fio, esse passado se impôs – com uma lógica jurídica impecável – contra nós.
A sua importante colocação:
“segundo, na disseminação de mentalidade de proveito pessoal a qualquer custo”
É outra herança arcaica que envolveu o PT e mudou seu DNA, para pior.
Abraços
¨O governo está se tornando um departamento do PT¨ – começo pela última colocação do Luiz Otávio. E isso vai se afirmando com a função estratégica do Lula neste novo planejamento petista. Lula define os candidatos a Prefeito e Governador de SP, chama Dilma a toda hora e lhe dá os recados, tenta monitorar Eduardo Campos, e vai dando as ordens. Dilma, dando beijinhos pra lá e pra cá (quem já viu uma presidente ficar dando beijinhos? Eu vejo a Xuxa…), obedece e operacionaliza.
Por outro lado, este programa de Mais Médicos tem me mostrado algo assustador. Eu partilho da idéia transmitida por Moniz Bandeira (?), da Europa, onde ele encontra médicos paquistaneses, cubanos, bolivianos, espanhóis, chineses, nos maiores hospitais alemães. Não há porque adotar uma visão corporativista dos CRMs. No entanto, o que está acontecendo é uma invasão de médicos cubanos (não estou vendo espanhóis, portugueses, argentinos…), que fala-se chegarão aos 5.000. Minha preocupação não é quanto a qualidade da medicina que eles praticarão, mas quanto a política adotada: 5.000 médicos que chegam agitando a bandeirinha de Cuba nos aeroportos, disciplinados (ou domados) para só falarem bem do governo, não reclamarem de nada. Porque não 300 da Espanha; 200 de Portugal, e assim sucessivamente? Para ajudar o camarada barbudo, com certeza. Para estreitar as relações com os amigos do Caribe. A coisa é tão acintosa, e não há uma reação sistemática, noves fora a corporativista.
Acho que estamos nos acostumando ao país do PT. Ao Brasil de Lula. Reclamamos, escrevemos, mas tudo continua como está, sem perspectiva de mudar. E eles avançando, cada vez mais cínicos.
Excelente, diria até, excedente. A melhor análise que li sobre o atentado do STJ. Fica apenas uma pequena curiosidade sobre a frase: “Nossos olhares se cruzaram. Entre nós havia apenas um vidro automático…”. Queria saber se o vidro do carro é não fumê, fumê ou muito fumê. Caso seja muito fumê, a nossa heroína olhou e não viu o João Rego. Apenas ele captou com maestria o seu olhar de “burro de carga”. No meu tempo de criança ao passar uma carroça puxada pelas mãos os moleques gritavam: “Burro sem rabo!” Recebiam o troco: “Comi sua mãe, lá na zona!”
Obrigado Décio:
O vidro é fumê, mas como fazer ficção se fincarmos os pés apenas na realidade, dura e seca?
Você lembrou bem o sadismo da criança “Burro sem Rabo” é de uma enorme crueldade, certamente isto é herança arcaica do colonialismo escravagista.
Fico contente que tenhas gostado do meu artigo.
Abraços
João Rego
Justa indignação de João com o protelamento do processo do mensalão. Independente do mérito, o resultado foi frustrante para quem esperava ver os mensaleiros na cadeia. Mas eles vão pra cadeia, João! Vamos ser justos com o STF: os mensaleiros já estão condenados e vão ser presos. A aceitação dos embargos pode levar, no máximo a uma eventual redução de pena. Mesmo neste caso, eles serão presos, pelo menos para dormir todas as noites na cadeia. Não é pouco.
Imaginemos, agora, Joao que, em vez de sair meditando sobre as elites, você parasse o carro e falasse com a senhora da carroça: “O que a Senhora acha do voto de Celso de Mello aceitando os embargos infringentes?” Tanto quanto milhões e milhões de nós brasileiros, ela não tem a menor ideia desta sutileza jurídica e está pouquíssima interessada no destino de Ze Dirceu e dos outros mensaleiros. Muito provavelmente está feliz com sua Bolsa Família e sequer acompanhou as manifestações de Junho e não sente indignação alguma com os tais embargos. Se alguma indignação sente é com a sua vida miserável. Na verdade, ao contrário do que você fala, João, é a elite, da qual faz parte, que está indignada com o fato da mesma elite não ser punida. Mas se o “Estado pertence à elite”, como você diz (tratando o Estado como se fosse um objeto), de que lado está a elite que cobra punição dos mensaleiros, mais indignada que a pobre senhora com sua carga pelas ruas do Recife?
Caro Sérgio:
Quando tinha meus 10, 12 anos colecionava, lá em Caruaru, duas revistas que vinham em fascículos. Era Medicina e Saúde e Conhecer. A No 1 da Conhecer veio com a famosa foto de Albert Einstein estirando língua.
Eu esperava ávido de curiosidade pela chegada dos fascículos.
Sempre que via uma reprodução visual da Via Láctea ficava inquieto em saber como alguém poderia ter aquele olhar de fora, quando nossa terra era um minúsculo ponto perdido naquele mar de estrelas?
Os astrônomos, mesmo fazendo parte do objeto investigado, conseguiram há séculos este feito: analisar, através da matemática, o universo em sua mais ampla dimensão, mesmo sendo – ele o astrônomo – parte insignificante deste objeto.
O mesmo deveria ocorrer com os cientistas sociais – eles até que se municiam da estatística para isso – entretanto, o danado é que ao invés de analisar o frio movimento das estrelas, seu desafio é muito maior: analisar o humano, com suas subjetividades explodindo em infinitas combinações. Compreender o humano imerso no universo político e no social complica um pouco mais, pois nosso olhar sempre estará enviesado pela nossa visão de mundo e pelas ideologias que, ao longo da nossa caminhada, foram decantando e formando nosso Eu.
É como se cada cientista social, ( ou qualquer outro intelectual ) tivesse suas próprias e únicas lentes, embaçadas pela paixão ideológica, permitindo vê aquilo que suas m(l)entes alcança.
Daí a controvérsia entre estes observadores, que é o núcleo de interesse da Revista Será?
Respondendo sua pergunta, faço parte sim da Elite, mas se tiver boas lentes e usar de imaginação posso vê esta elite como um todo, e o Estado, assim como a Via Láctea que está em movimento – não se sabe para onde – está dentro deste Todo sendo levado por parte da Elite, espero que – no caso do Brasil – para um bom destino.
Amigos,
Quero oferecer uma modesta participação neste debate.
A tese de que o Estado é simplesmente um instrumento das elites – ou da burguesia, para ser mais fiel a Marx, seu formulador – não se sustenta, ou, pelo menos, “comporta temperamentos”, como dizem os meus colegas de profissão. Tomá-la ao pé da letra significa esperar sentado por uma revolução dos plebeus – ou operários – altamente improvável nos dias de hoje, por múltiplas razões, ou engajar-se nela. Pois só assim o Estado – das elites ou da burguesia – seria destruído e substituído por outro (a experiência histórica mostra no que isso deu).
O Estado, meus amigos, é na verdade um espaço de conflitos, como bem disse, uma vez, Chico Oliveira. Se não fosse assim, não haveria campo para a política, e a alternância de poder nas democracias seria uma ficção. Pessoalmente, acho que não é.
Outra coisa: nós, colaboradores da Revista Será, somos elite? Aceito o labéu se o entendimento for de elite intelectual. Se o critério for o do “vil metal”, sinceramente, estou fora.
Somos classe média. Que, no frigir dos ovos, é quem faz política, e tem mesmo comandado revoluções. Qual dos grandes lideres revolucionários do século XX era operário, ou camponês, ou subempregado? Talvez só Stalin, cujo pai era sapateiro.
Para finalizar, meu caro Sérgio: quem, da classe média brasileira, não ficou decepcionado com a decisão do STF? Cultos ou incultos, em esmagadora maioria, na minha percepção, como acredito ser também a do nosso amigo comum João Rego, e a de todos com quem tenho conversado, ficaram desolados, descrentes, desesperançados. E não era para menos.
PS – Dormir apenas na cadeia é piquenique. Há alguém que vai rir de nós, e continuar, com todo o gás, fazendo a sua política para manter – ou retomar – o poder.
Caro Clemente:
Puxei Marx de propósito, mas falo que as democracias ocidentais sim, são muito mais complexas do que pensamento marxista poderia explicar. Apenas evoco que as transformações ao longo da história são cumulativas e não caem de paraquedas.
Assim como nós (o sujeito humano) carregamos “coisas pulsionais primitivas” contidas pela Lei, o Estado também carrega forças atávicas latentes, recalcadas. Tudo isto irrompe, assim como um surto psicótico, quando as condições se alteram drasticamente.
Basta vê uma guerra. (Me veio à mente a imagem recente de crianças e adolescentes na Síria mortas pela guerra química).
No caso do STF, obviamente muito mais ameno, apenas digo que a herança arcaica conseguiu desequilibrar uma situação de possível ruptura em favor da sociedade civil, de uma justiça servil ao seu papel histórico de aparelho de Estado das classes dominantes.
J.Rego
Oh! João. “Justiça servil” é um grandíssimo exagero. Você fala como se estivéssemos na ditadura ou na monarquia. Há pouco menos de um ano o STF condenou 25 membros da “elite politica” e a esmagadora maioria dos seus membros tinha sido indicada e nomeada por Lula e Dilma. Indignação e revolta são justas. Também não gostei. Mas, não exagera.
Sérgio:
Tá bom, tá bom..me empolguei.