João Rego

Eu vi uma negra. Ela era jovem e carregava, como um burro de carga, uma carroça cheia de lixo e dejetos, colhidos ao longo do dia para ganhar algum. Sentia-se a força de uma mulher que, com brilho nos olhos, braços musculosos, avançava puxando aquele fardo que insiste em imprimir a marca da miséria e do subdesenvolvimento do Brasil.

Aquela carroça, puxada por um homemanimal, é um símbolo multinacional da miséria que perpassa os países pobres. Como o logo da Dell ou da Microsoft, é a logomarca da miséria humana, que nos transporta para o Congo, o Haití ou a Índia.

Ao seu lado, um esquálido auxiliar – quase branco, quase negro – cuidava para que a frágil proteção de papelão não deixasse cair o fruto do seu trabalho. E eu, dentro do meu carro com ar condicionado, smartphone na mão com a internet e o mundo de conhecimento à distância de um arrastar de dedos, tive, a princípio, receio que a carroça, a qual iria passar entre meu carro e o ônibus…arranhasse meu carro.

Nossos olhares se cruzaram. Entre nós havia apenas um vidro automático e centenas de anos da formação econômica e social do Brasil. Estávamos no Recife Antigo, um bairro fundado pelos holandeses nos 1600. A poucos metros, a Rua Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus, onde se comercializava escravos negros vindo da África.

Essa mulher, assim como milhares de brasileiros que herdaram a negritude em suas veias e em suas almas, vivem num Brasil atemporal. Para eles, o arcabouço jurídico, o Estado e suas benesses, não chegaram para moldar sua cidadania, para imprimir-lhe a dignidade mínima de uma existência.

Naquele momento eu estava pensando no voto do Ministro Celso de Mello (com dois eles, pois fica mais nobre) e de como abordar ou dar vazão a minha raiva através de um artigo para Revista Será?

A decisão do STF em acolher os “embargos infringentes”, formalizada com o voto do Ministro Celso de Mello, evoca-me uma das pedras fundamentais do pensamento marxista, que de tão simples, pode perecer hoje algo óbvio, mas na época, século XIX, não era. Trata-se da afirmação de que o Estado pertence à elite política e econômica que detém os meios de produção, a classe dominante, e o resto, a maioria dos trabalhadores, a classe dominada.

Perdoem-me os pós-marxistas puxar o abecedário básico do marxismo para refletir sobre um momento tão crítico da história política nacional. Evidentemente muito se evoluiu de 1848, ano do Manifesto do Partido Comunista, até os nossos dias. Mas assim como a história não dá saltos, o pensamento e a praxis política também não. E se o fenômeno social é arcaico, as ideias arcaicas servem para explicá-los.

Se temos hoje as modernas democracias ocidentais como formas menos imperfeitas de governo, nelas estão latentes, (ou recalcadas?), encobertas por camadas civilizatórias de conhecimento, lutas libertárias e pela Lei, os conflitos estruturantes da sociedade.

Marx continua certo, mesmo sem saber que suas descobertas se voltariam contra suas utopias socialistas. Vejam em que se transformou o Estado Bolchevique, após a Revolução de 1917, principalmente com Stalin, servindo a uma classe dominante em detrimento da maioria, sempre esmagada pelo Estado. Olhemos o Estado no Irã, pós Komeini – não estou anistiando o Xá Reza Palev, por favor – com o islamismo fundamentalista penetrando no DNA do Estado e envolvendo o cidadão com um manto controlador de uma moral da idade média, anulando a mulher como indivíduo político e social. Para não dizer da Igreja Católica nos séculos de Inquisição, que era o próprio Estado.

A impecável lógica apresentada pelo Ministro Celso de Melo em seu voto de 18 de setembro de 2013 segue a mesma linha de raciocínio que aqui exponho: o Estado brasileiro (herdeiro direto do Brasil colônia), formado há séculos – e Celso de Melo foi buscar informação no Brasil Império – vem servindo, historicamente, aos interesses de uma elite dominante, a qual, descolada da sociedade civil e protegida pela secular impunidade, goza seus privilégios a custa do esforço da grande maioria, o cidadão e a cidadã brasileiros.

Um exemplo claro é a evolução da legislação eleitoral brasileira no século XX. É possível se perceber os avanços da sociedade civil, a custa de muita luta, para se chegar ao voto universal, vencendo resistências dos legisladores da época. Isso sem falar nas relações trabalhistas, onde a justiça tem as mãos ensanguentadas pelos acoites dados no negro escravo no Brasil, sem contar com a repressão a líderes sindicais – quando estes organizavam a classe trabalhadora.

Não há outro meio mais eficaz de se ultrapassar formas arcaicas de dominação política do que o regime democrático.  A Era das Revoluções cumpriu seu papel e a democracia se impõe hoje com um valor universal, pelo menos do lado ocidental. Mas para que serve essa tão propalada democracia? Por que se lutou tanto para chegarmos a uma democracia plena no Brasil, se o STF, quando tinha tudo para dar uma guinada histórica, decidiu seguir sua servil e linear função de defensor da classe dominante?

O STF, com sua decisão favorecendo claramente a impunidade por crimes praticados por membros relevantes da elite política, embora com base sólida na constituição, cumpre apenas seu roteiro secular de legitimação de uma relação arcaica de dominação política de uma elite dominante contra a sociedade civil.

Se quisermos uma pista de por que o STF amarelou basta olhar – com os olhos de ver – a negra da carroça. Ela está em toda periferia das grandes cidades. É fácil.

 

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com