Nicarágua em crise.

 

Próximo domingo, 7 de novembro, terá eleições presidenciais a Nicarágua, pequeno país de 6,7 milhões de habitantes, o mais pobre da América Central. E já podemos garantir quem vai ganhar. Vai ser reeleito o casal governante Ortega-Murillo, do partido FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional): Daniel Ortega, o presidente que governa o país desde 2007 e é candidato a seu quarto mandato, e sua mulher Rosario Murillo, que é a vice-presidente desde as eleições de 2016.

Não temos dons especiais de adivinhos, e Daniel Ortega nem é candidato único, pois no Tribunal Eleitoral de Manágua há seis micropartidos registrados para as eleições, que inscreveram quatro candidatos à Presidência, em geral considerados simpáticos ao partido do governo e pouco conhecidos. Nem baseamos nossa previsão em pesquisas de intenção de voto, pois CID-Gallup, a firma de pesquisa com maior credibilidade na Nicarágua, informou que no dia 13 de outubro, a três semanas das eleições, a dupla Daniel-Murillo teria tido apenas 19% dos votos contra 65% de um opositor. A pesquisa comparou Ortega não com os candidatos que conseguiram registro no Tribunal Eleitoral, e sim, com os principais dos cinco pré-candidatos que o governo mandou prender no começo da campanha eleitoral.

Para prever o desfecho das eleições de 7 de novembro basta seguir o que aconteceu na Nicarágua em crise, desde as grandes manifestações de abril de 2018, brutalmente reprimidas, e mais recentemente, a campanha eleitoral de 2021. Pois ditaduras hoje em dia já não acontecem por um golpe que surpreende a população de um dia para outro.

Protestos como os de abril-junho de 2018 não se viam desde a luta contra a dinastia Somoza. Começaram reclamando da omissão governamental quando incêndios destruíram uma reserva florestal, continuaram contra a reforma da previdência. E depois contra a repressão que deixou, em três meses, 328 mortos, milhares de feridos, centenas de presos muitos deles torturados e agredidos pela polícia, e mais de 100 mil refugiados, sobretudo na vizinha Costa Rica. Pressões da ONU e da Organização dos Estados
Americanos (OEA), bem como a decisão do governo americano de congelar os bens de altos funcionários sandinistas, resultou em uma Lei de Anistia de 2019 que libertou a maioria dos presos políticos. Mas o fato é que continuaram sendo criados poderes e leis de gradual enfraquecimento das regras de uma democracia.

Até chegarmos às eleições de 2021. A credibilidade das eleições de 7 de novembro está destruída pelas novas prisões de candidatos da oposição e outros críticos e jornalistas. A lista dos presos políticos já estava em 30 pessoas no início de junho e começa com Cristiana Chamorro, a candidata mais importante da oposição. Cristiana Chamorro é filha da ex-presidente Violeta Chamorro, que foi, junto com Daniel Ortega, membro da Junta de Governo depois da vitória sandinista de 19 de julho de 1979, e depois venceu Daniel Ortega nas eleições de 1990. Cristiana Chamorro está em prisão domiciliar desde 2 de junho (de 2021). Também foram detidos seu irmão, Pedro Chamorro Barrios, e outros três aspirantes à Presidência, Sebastián Chamorro, Félix Madariaga e Arturo Cruz.

É longa a lista dos detidos: inclui dirigentes de partidos, antigos dirigentes sandinistas que se tornaram oposição, advogados, jornalistas (como José Antonio Peraza). Até o chofer de Cristiana Chamorro, a ex-Miss Nicarágua Berenice Quesada, líderes estudantis e de camponeses, o ex-ministro de assuntos estrangeiros Xavier Aguirre Sacasa. Todos são acusados de “favorecer a ingerência estrangeira”, e estão impedidos de contato com o exterior e com familiares e advogados, também ameaçados caso protestem as prisões.

Em 7 de agosto, a apenas três meses da eleição, o Tribunal Eleitoral fechou o último partido considerado de oposição, “Ciudadanos por la Libertad”, atendendo uma solicitação da representante legal de outro partido, o “Partido Liberal Constitucionalista”, cujo candidato à Presidência é o deputado Walter Espinoza. Poucos dias depois foi fechado o principal jornal impresso da oposição, La Prensa, que passou a ter apenas versão eletrônica.

Um registro mais extenso da violência e das práticas antidemocráticas do governo Ortega-Murillo aparece em artigo recente de Gilles Bataillon, “Nicarágua, una dinastía acorralada?”, publicado em espanhol na revista Nueva Sociedad1. Bataillon registra inclusive que 24 ONGs na área de saúde e direitos humanos foram tornadas ilegais, alegadamente por irregularidades financeiras, mas de fato por terem criticado a ação do governo no enfrentamento da Covid.

Ainda que o último relatório do Banco Central de Nicarágua mostre recessão e renda per capita em declínio depois de 2017, o atual discurso de Ortega-Murillo, já desde a eleição de 2016, é de uma “segunda fase da revolução sandinista”, caracterizando as múltiplas figuras da oposição como “inimigos do povo” e “marionetes do imperialismo”. São acusados de ameaçar a “soberania do país”. Com tal narrativa descartam as advertências sobre a falta de credibilidade das eleições, alerta interpretado como intromissão estrangeira, e a crise que sofre a Nicarágua é atribuída ao “Império” e às “potências” que querem subjugar o pequeno país. No artigo aqui citado, Gilles Bataillon faz uma análise detalhada dos discursos do presidente e do candidato Ortega, e da retórica da vice-presidente e candidata Murillo, com suas alegorias e fraseado, para concluir que o casal governante está revivendo, literalmente, a velha polarização entre sandinistas e “contras”. Com roupagem nova, para se manter no poder, esquecidos seus ideais dos 1970s. Não saberia como discordar do diagnóstico de Gilles Bataillon. A história aqui não se repete como farsa, mas do avesso.

As autoridades da Nicarágua impediram, por “ofensa à soberania” a presença de observadores estrangeiros nessas eleições. De qualquer modo a fraude não está nos votos que forem depositados nas urnas dia 7 de novembro, a fraude está em todo o processo eleitoral prévio às eleições. O Secretário de Estado dos Estados Unidos, Anthony Blinken, em comunicado de 8 de agosto, um dia depois de cancelado o partido  “Ciudadanos por la Libertad”, condenou as manobras “autocráticas” do Presidente Ortega. O Conselho Permanente da OEA, em sua resolução de 20 de outubro (de 2021), ainda pediu que Ortega liberte os candidatos presidenciais e presos políticos e inicie reformas eleitorais. Declarou-se alarmado com a piora da situação de direitos políticos do país. A resolução foi aprovada por 26 países. Outros 7, entre os quais México, Guatemala e Argentina, se abstiveram. Nicarágua não votou e seu representante, Michael Campbell, declarou antes do início da reunião que a Nicarágua não participaria porque a OEA interfere de “forma grosseira” nos assuntos internos da Nicarágua: ”Nuestro país jamás ha aceptado, no acepta, ni aceptará actos que degraden su libertad, que como Estado independiente ostentamos desde nuestra independencia nacional desde ya más de 200 años.” Já em outubro de 2020 Ortega-Murillo rejeitaram uma resolução da OEA que pediu reestruturação do Conselho Eleitoral e permissão para a presença de observadores eleitorais.

Em outro plano, que não é bem o das declarações, quem está ajudando seus vizinhos “nicas” é a Costa Rica, o país de longe o mais avançado da região (é o mais novo membro da OCDE, desde maio deste ano): de novo refugiados da Nicarágua entram por sua fronteira norte, ainda que dessa vez não cheguem aos 100 mil como em abril de 2018. Mas só em 2021 já deixaram a Nicarágua cerca de 20 mil pessoas. Foi instalado inclusive um posto do órgão de refugiados da ONU na fronteira, para ajudar no registro. Este ano um exilado famoso está causando polêmica na Câmara de Deputados da Costa Rica: Sérgio Ramirez, ex Vice Presidente, ex membro da Junta de Governo Sandinista 1979-1984, e hoje escritor premiado, receptor do Prêmio Cervantes de Literatura em 2017, naquele ano recebeu ordem de prisão na Nicaragua. Já não está no país, estava na Espanha, onde adquiriu nacionalidade espanhola, mas pretende voltar a viver na Costa Rica, onde passou 15 anos escapando da ditadura de Somoza. Então uma parte dos deputados quer torná-lo cidadão de honra da Costa Rica imediatamente, como pediram cinco ex-presidentes da Costa Rica, enquanto outros consideram que antes de conceder-lhe cidadania é preciso estudar sua trajetória e averiguar se não foi em algum momento cúmplice de ações violentas dos sandinistas. Mais um pedacinho da reedição do enfrentamento dos anos setenta de ponta-cabeça.

Não sei se há alguma lição para o Brasil. No nosso “país baleia”, o nacionalismo tacanho que ignora responsabilidades e compromissos internacionais não é o mesmo que o da “Fábula del tilburón y las sardinas” que ainda realimenta, décadas mais tarde e em outro contexto, o imaginário de populações que apoiam o protesto automático de autocratas contra a interferência estrangeira. Por que estão presos 5 ou 7 candidatos presidenciais? Por que as oposições várias só começaram a se unir quando, a rigor, já não podiam concorrer às eleições livres em 7 de novembro?

[1] https://nuso.org/articulo/nicaragua-una-dinastia-acorralada/?utm_source=email&utm_medium=email&utm_campaign  Gilles Bataillon é um sociólogo francês que analisa a Nicarágua (e a América espanhola) de longa data. Publicou vários livros, reportagens e entrevistas sobre a Nicarágua, inclusive três volumes sobre a vida e o pensamento de Augusto Sandino, herói nacionalista e anti-imperialista nicaraguense, que, assassinado por Somoza em 1934, transformou-se no ícone da Revolução Sandinista que derrotou a ditadura de Somoza em 1979.