Clemente Rosas

Amigo Aldo Arantes: Escrevo-te do meu terraço de praia, na companhia de coqueiros e passarinhos, com a brisa no rosto e o mar a meus pés.  Lugar ideal para a leitura atenta e reflexiva do teu livro (São Paulo, Editora e Livraria Anita Ltda., 2013), que agora comento.

Em primeiro lugar, acertaste no título: só uma “alma em fogo” poderia suportar onze anos de vida clandestina, prisões e tortura.  Acertaste também no próprio projeto de contar tua história, para mostrar aos jovens de hoje o quanto custaram nossos sonhos e a luta de comunistas e cristãos por uma sociedade mais justa e igualitária.  Minha pena foi bem mais leve: casa invadida, livros roubados, 24 horas numa prontidão de delegacia, infindáveis processos, desemprego, portas fechadas, oportunidades perdidas.  Mas vários amigos sequer tiveram a sorte que te coube de sobreviver.  Alguns, nem mesmo o direito à sepultura, como Davi Capistrano, Hiram Pereira e Luís Maranhão.  Por mais que falemos daqueles anos de chumbo e ignomínia, será sempre pouco.

Teu depoimento é, portanto, extremamente valioso.  Embora já tenha lido quase todos os livros de militantes contra a Ditadura Militar – Gabeira, Sirkis, Gorender, Apolônio de Carvalho, Paulo Cavalcanti, Carlos Eugênio Paz, Jô Morais, João Capiberibe e outros –  aprendi ainda mais: detalhes e riscos da resistência, no Rio Grande do Sul, à primeira tentativa de Golpe de Estado, e do combate subterrâneo da Ação Popular, depois AP-ML, depois PC do B, em suas diversas fases.  E ainda do generoso apoio de pessoas da nossa sociedade, não diretamente envolvidas com a luta, aos jovens idealistas que a conduziam.  Este aspecto, aliás, já me havia surpreendido na leitura da biografia de Carlos Marighella, escrita por Mário Magalhães, como um indicativo da ampla rejeição ao Poder Militar, mesmo nos anos de maior “prosperidade” brasileira.

Mas quero fazer também um registro: não deixa de ser curioso como a JUC dos nossos tempos de estudante evoluiu para a AP e depois para a AP- Marxista Leninista, acabando por desaguar no PC do B.  No primeiro momento, embora “companheiros de jornada” do PCB, os “jucistas” insistiam em categorias próprias de análise social: não falavam em “classes dominante e dominada”, mas em “polos”, e o conceito de burguesia era estendido aos barões feudais, rotulados como “burguesia latifundiária”.  Imagino que tais conceitos não prevaleceram com a integração ao velho PC do B estalinista…

Mas isso pouco importa.  A mesma campanha uniu a todos, ainda que com métodos diferenciados de ação.  E imagino se não reconheces, como eu, que embarquei, por um tempo, da dissidência do PCBR, que o “Partidão”, afinal, estava certo.  Com toda a veneração devotada aos companheiros que perderam a vida na opção pelo combate armado, não foi por ele que a ditadura militar caiu.  Foi por um paciente trabalho de “costura” política entre esquerdistas, democratas e liberais, ajudado por uma conjuntura internacional favorável.  Para sintetizar com a velha fórmula exaustivamente discutida nos documentos clandestinos do PCB, a ditadura não foi “derrubada”, foi “derrotada”.  Essa dolorosa reflexão já foi feita, entre outros, pelo economista Sérgio C. Buarque, irmão do Senador Cristovam Buarque, ambos valorosos combatentes da causa da liberdade.

Teu livro teve uma edição descuidada, com muitos erros formais que até pensei em listar, como prova de minha leitura atenta e reverente.  Mas isso me pareceu dispensável: já o deves estar revisando para uma segunda edição, mais que merecida.  Assim, limito-me a um reparo de conteúdo, de caráter pessoal e acessório.

No relato das nossas peripécias no IV Congresso Latino-Americano de Estudantes em Natal, RN, 1961, com base no meu livro “Praia do Flamengo 132”, me acusas de “grande irresponsabilidade, com sérias consequências para o movimento estudantil”, por ter resistido à proposta de transferir o certame, à última hora, para Porto Alegre, onde as condições seriam mais favoráveis, motivado pelo desejo confesso de rever uma namorada no vizinho Estado da Paraíba.  Não nego a motivação “secundária”, que admiti publicamente, até porque nunca me apresentei como herói em minhas memórias precoces.  Mas, como dizem nossos colegas advogados, o teu juízo, para mim injusto, “comporta temperamentos”.

Em primeiro lugar, não chegamos a discutir plenamente a proposta de mudança do local do congresso.  Tu lançaste a ideia, de que discordei, alegando duas razões objetivas: a decisão já tomada no Conselho da UNE na gestão anterior, por convite do Presidente da UEE do Rio Grande do Norte, e as providências em curso, envolvendo impressos, material de divulgação, etc.  E a alternativa foi descartada.

Mas pondero também agora: teria sido diferente se o IV CLAE fosse para o outro Rio Grande?   Não há garantia.  Mesmo comparadas ao fervor da “resistência democrática” de Brizola em Porto Alegre, as condições em Natal não eram más: o Prefeito Djalma Maranhão, que nos saudou entusiasticamente na abertura, no teatro da cidade, era de esquerda (morreu exilado no Uruguai), e irmão do deputado comunista Luís Maranhão.  (Recebi até críticas internacionais por ter supostamente escolhido a cidade mais “vermelha” do país para sediar o congresso).  Só não contávamos com a articulação do bispo D. Eugênio Sales, velha raposa reacionária que mobilizou a garotada dos colégios religiosos contra nós.  (Mesmo assim, convém lembrar que no Rio Grande do Sul pontificava D. Vicente Scherer, ainda mais reacionário, e direitista sem rebuços).

Além disso, há que encarar uma verdade irremissível: nossos adversários tinham maioria.  A soma dos “guantes blancos” (a “democrácia cristiana”, tão diferente da nossa JUC) e dos “guantes negros” (os “lacaios do imperialismo”) superava, naquele momento, os esquerdistas latino-americanos. Só nos restaria, em qualquer caso, “estourar” o congresso, o que fizemos, no bom estilo dos velhos “comunas” com quem passaste a conviver mais intensamente depois.  Felizmente, tivemos bons argumentos para isso: o telegrama suspeito da CIE-COSEC (réplica ocidental da UIE – União Internacional dos Estudantes) ao seu representante, interceptado pelos nossos colegas argentinos, e a reunião prévia de articulação, financiada em dólares, da qual fomos velhacamente excluídos, com um convite datado de antes, mas postado após a data de realização.  E tu, como Presidente da UNE, contaste, naquela circunstância, com a articulação dos teus aliados do PCB e a documentação cuidadosamente coligida por este teu Vice-Presidente de Intercâmbio Internacional.  E os principais problemas foram assim evitados: as condenações à Cuba Revolucionária e o controle do movimento estudantil latino-americano pelas forças da “Democrácia Cristiana”.

Saudades, meu caro Aldo, daqueles tempos esperançosos.  Se tivesse que fazer, além desta louvação, alguma glosa ao teu trabalho, diria que te faltou um pouco de modéstia, ao fazer, no final, a autocrítica e o balanço do passado.  Tu, que conheceste a China da Revolução Cultural, a Coreia do Norte e a Albânia, que, como eu, sobreviveste para ver a desagregação do mundo socialista e colher as lições da História, bem que poderias ter aprofundado a tua reflexão, reconhecendo, com humildade, que sonhamos alto demais.  Que a realidade não se conforma com nossos desejos, e nos impõe agora uma reciclagem de projetos, preservando, é claro, os supremos valores da liberdade e da solidariedade, mas mantendo os pés fincados no solo incerto da condição humana.

 

Clemente Rosas é consultor de empresas.