Fui mordido por um cachorro quando tinha três anos de idade. É uma das mais remotas e traumáticas memórias de minha vida. Talvez por isso costume lembrar com prazer a definição do uísque proposta por Vinícius de Moraes, uma das maiores autoridades no assunto: o uísque é o cachorro engarrafado. Traduzindo-a a meu modo, não gosto de cachorro, não confio em cachorro. O único cachorro que tenho como amigo é o uísque. Indo adiante, sou um humanista impenitente. Olhando à minha volta, todos os dias, começo a desconfiar de que sou o último. Meus semelhantes, decerto desiludidos do convívio humano, preferem cada vez mais a companhia dos cachorros.
Quem lembra ainda uma canção de Waldick Soriano, o rei do brega, num tempo em que a classe média letrada tinha o pudor de ser confundida com esse tipo de música, e antes de tudo padrão de comportamento, na qual ele orgulhosamente se distinguia do cachorro? “Eu não sou cachorro não”, gemia o cantor magoado com o sofrimento que a amada cruel lhe impunha. Hoje uma canção dessas seria inconcebível. Não por ser brega. Bem pelo contrário, a julgar pela qualidade corrente do que se ouve, a canção de Waldick seria hoje louvada como um clássico da canção popular. A canção seria inconcebível porque o cachorro foi elevado a uma condição de privilégio amoroso invejável. Falando por mim (por quem mais poderia falar?) passei a invejar caninamente os cachorros. Todas as tardes saio para caminhar no calçadão da praia e assisto sempre, de coração cortado, a esse espetáculo invariável: meus semelhantes, sobretudo mulheres, passeiam exibindo orgulhosamente seus cachorros. Muitos saem enfeitados com coleiras coloridas, penteados caprichosos, todos talvez zombando da indiferença com que nós humanos nos tratamos. Minha inveja visa, é claro, os cães amados por suas donas bonitas mimando seus príncipes de quatro patas enquanto me apagam da paisagem como se eu fosse um vira-latas.
Outro dia fui visitar um amigo internado na UTI (U Teu Inferno, segundo minha tradução). Diluído num círculo de parentes e amigos do enfermo, fiquei sem assunto durante mais de uma hora. Afinal, fui sem cachorro na coleira, sem cachorro no coração, sem misantropia na ponta da língua. Todos os presentes falavam amorosamente dos seus cachorros: de salão de beleza para cachorro, comida para cachorro, clínica idem, toda uma rede de serviços para cachorro. Ninguém mencionou sequer (juro!) o nome do meu amigo enfermo, que aliás morreu poucos dias mais tarde.
Mudo de cenário. O condomínio onde moro. Quase ninguém se cumprimenta, quase ninguém se conhece ou manifesta interesse em conhecer o vizinho, literalmente o próximo. Descobri, no entanto, um meio infalível de me darem atenção. Entro no elevador e esbarro na vizinha atada à coleira do seu cão. Observo casualmente: como é lindo o seu cão… Ela muda automaticamente. Graças ao cão amado (por ela, claro) recolho dois grãos de atenção ou dois dedos de conversa de alguém que me ignorava e continuaria a fazê-lo, não fosse a dissimulada atenção que concedi a seu objeto de amor.
Não há dúvida de que está em processo uma experiência de deslocamento afetivo na cultura hiperindividualista em que vivemos. A isso se soma uma noção generalizada de hedonismo que agrava ainda mais relações humanas já por si difíceis. Embora não duvide do amor que meus semelhantes devotam a seus cães, acredito antes de tudo que a devoção é sintoma de indiferença pelo próximo, sintoma de uma crescente dificuldade de convívio com o outro humano. Longe de mim idealizar esse outro humano no qual me reconheço. Sei dos horrores de que somos capazes. Mas sei também da grandeza, de uma gama de expressões humanas que nos salvam ou atenuam o avesso cruel da nossa condição. Bem ou mal, é com meu semelhante que me entendo e desentendo, já que compartilhamos uma língua comum, um código de sentido opaco e instável, mas sempre reconhecível. Além disso, já não tenho idade para aprender a latir e sujar de cocô as calçadas da cidade. Não bastasse tanto, sinto ainda na orelha os dentes do cão que me mordeu quando eu não passava de uma inofensiva criança de três anos. Em suma, fico com o cão engarrafado de Vinícius de Moraes.
Caro Humanista,
Tambem não gosto de cachorro! Morei no Rio por 7 anos e me sentia discriminada por isso. Alem de não acreditar em deus, não gostar de cachorro? é muito defeito numa pessoa só.
Na verdade, as pessoa que amam demasiadamente os cachorros, o fazem por egoismo e medo. Cachorro não questiona, não exige e ama por muito pouco…é muito fácil.
Gosto do risco de ser questionada, gosto da troca e do amor que exige…gosto de GENTE!
Caros, que felicidade descobrir pessoas que partilham do mesmo destino. Fui pisado por um cachorro na infância; além disso detesto cachorros por serem lambões e extremamente subservientes. O mesmo vale para as pessoas com estas características. Ambos podem, e geralmente o fazem (o maior índice de pessoas atacadas por cães ocorre entre os donos, se voltar contra a mão que os acarinha.
Vou continuar com vinho.
abraços
Muito boa Fernando.
Agora, eu que tenho cachorro não me enquadro neste seu estereótipo, embora acho que acertas em 90% dos casos.
Para mim, o cão, além de ser um componente do meu universo afetivo – tem sua linguagem também e até sonha – é um retorno ao primitivo, a natureza.
São 60.000 anos de convívio com o homem.
O interessante é que grandes homens como Trotsky tenham este relacionamento com os cães. Hitler também ( Foi grande e mal como ninguém, mas não com seus cães) tinha e era da mesma raça dos de Trotsky, pastor alemão.
Ao contrário de você nunca fui mordido e tive na minha infância cães de caça nas fazendas da família.
Mas o que importa aqui é que sua crônica é muito da arretada. Um verdadeiro recreio para quem está atolado de trabalho.
Um abraço,
João: Espero que você tenha notado que minha crônica tem um nítido tom de humor, a começar pelo título. De fato, não gosto de cachorro. As razões estão expostas no texto. Mas friso nada ter contra quem gosta. O que acho grave, isso também está no texto, é o sintoma de misantropia que me parece cada vez mais observável em pessoas que transferem para animais de estimação o interesse humano elementar que recusam ao semelhante. É neste sentido que o título da crônica é literal. Como Lígia ressaltou muito bem, é fácil e bem mais seguro devotar amor a espécies privadas da nossa liberdade. Como somos natureza, mas também cultura, não somos geneticamente codificados como essas espécies. Por isso o amor humano é único e indomesticável.
Prezado Fernando
É sempre um enorme prazer ler suas cronicas, mesmo que não concorde, que concorde, ou meio a meio. Seu texto é muito pungente, emotivo, apaixonante. Gosto muito.
Mas eu tenho cachorros e gosto muito deles. Como cachorros. Embora me comovam com seus olhos pidões, não dormem nem sobem na minha cama, e tem de obedecer, saber o que podem e o que não. São cachorros, ora esta.
Meu pai tinha gatos, no interior. Em uma grande casa, eles entravam e saiam, passavam a noite na farra e voltavam de dia para dormir e comer. Curti muito este movimento. Cachorro, minha mãe nunca deixou, e passei a tê-los já adulto. Como cachorros.
Meu caro Afranio: Sou grato à atenção que você concede a meus textos e continuo achando que você nos deve algo das suas memórias que reluta em escrever. Fiz um acréscimo à crônica sobre os cães na resposta ao comentário de João Rego. O seu me concede a oportunidade de fazer um outro. Como crianças, cães são educáveis. O fato de não seguirmos esse princípio me parece estar concorrendo para agravar nossas relações de convívio. Moro numa área densamente povoada e agora cheia de cães que latem a qualquer hora do dia, além de sujarem ruas e outras vias de trânsito. Tenho vizinhos que romperam comigo simplesmente porque reclamei desse estado de coisas. Acredite que minhas reclamações foram educadas, diria até amáveis, pois não sou homem de sangue quente e detesto grosseria. Fatos dessa natureza, correntes numa sociedade desregulada, tendem a agravar ainda mais as tensões que não apenas deslocam a afetividade humana para os animais de estimação, mas também passam a deteriorar as relações entre quem tem e quem não tem cães. Como antes deixei claro, nada tenho contra quem ama cães, muito menos para quem os ama sem deles valer-se para importunar os vizinhos. Um abraço, Afranio.