Clemente Rosas

Cristovam Buarque e Raul Jungmann.

X – Cristovam Buarque e Raul Jungmann

Conheci Cristovam Buarque por volta de 1968, quando, com grande sacrifício financeiro, resolvi fazer uma “reciclagem” e me inscrevi num curso de mestrado em economia da UFPE, trabalhando apenas meio expediente no PLANESC, escritório de projetos de amigos paraibanos.  O curso era coordenado por Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Clóvis de Vasconcelos Cavalcanti, dois notáveis descendentes, por ramos distintos, do fidalgo florentino seiscentista de onde provém, talvez, metade dos pernambucanos.  Assistia a aulas toda a manhã, trabalhava no escritório à tarde, estudava à noite.  Foram os anos mais duros de minha vida – em vários sentidos.

Cristovam, recém-formado em engenharia, já estava lá, no segundo ano do curso, e assistiu a uma apresentação que fiz sobre problemas de desenvolvimento, em escala mundial.  Para minha surpresa e honra, gostou tanto que me convidou para ser seu substituto eventual em aulas que dava na Universidade Católica de Pernambuco.  Por necessidade material, e com muito esforço, aceitei.  E aí começou a nossa convivência.  Ele também trabalhava com projetos de investimento, mas deixava transparecer a insatisfação com a sua realização pessoal e com a situação do país.  Afinal, a ditadura brasileira entrava em sua fase mais sombria.

Um dia, me externou a ideia de sair do país.  E eu o encorajei a isso.  Inconformado como estava, acabaria por envolver-se em lutas clandestinas, inglórias e de resultados duvidosos, como aconteceu com tantos de nossa geração, inclusive seu irmão mais novo, Sérgio C. Buarque, hoje, por fortuna, brilhante economista nordestino.  Não podia ser o meu caso.  Já casado e esperando o primeiro filho, respondendo a processos e sem poder tirar passaporte, tinha que ficar e aguentar o tranco.

Até hoje me comprazo por haver contribuído, ainda que minimamente, para tal decisão.  O homem mandou-se para a França, lá pós-graduou-se, migrou para os Estados Unidos, onde trabalhou no BID, e voltou, bem qualificado, para ensinar na Universidade de Brasília.  Excelente expositor que era, logo foi indicado por seus alunos para reitor, e nomeado pelo Ministro da Educação, meu amigo Marco Antônio Maciel.  Daí galgou a escada da política, da maneira mais limpa, elegendo-se governador e depois senador pelo Distrito Federal.

Durante o seu périplo internacional, e mesmo depois, ele como político residente em Brasília, nos vimos poucas vezes.  Ganhou notoriedade nacional, e mesmo internacional, com suas ideias inovadoras e ousadas de crítica às políticas econômicas tradicionais e apologia da educação, como única alternativa válida para promover a igualdade entre os homens.  E nosso diálogo deu-se mais pela imprensa.  Critiquei seus livros (“O Colapso da Modernidade Brasileira” e “A Revolução nas Prioridades”) e artigos no meu ensaio “A Modernidade e seus Paladinos”, publicado em quatro edições do Jornal do Commercio (14, 15, 22 e 23/12/1994), e constante do meu livro “Coco de Roda – Treze Ensaios Iluministas”.  E mais recentemente – por correio eletrônico – sua primeira posição, como senador, no juízo de admissibilidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff, atitude que me pareceu tíbia, num momento dramático, a exigir decisões corajosas.  Depois me desculpei pelo emocionalismo, fruto da admiração que lhe dedicava, e a sua decisão final foi a esperada.  E isso lhe custou a cadeira senatorial, pelo cativeiro da razão dos seus eleitores do mundo acadêmico.

Devolvido à planície, desobrigado de compromissos partidários, Cristovam recupera, na plenitude, o brilho do seu pensamento e das suas palavras.  Como um Quixote moderno, não teme enfrentar os moinhos de vento das concepções político-filosóficas arraigadas, calcadas sobre realidades do passado.  Cria novas categorias analíticas, para melhor compreender as encruzilhadas da sociedade moderna, e procurar vencê-las.  Segue bem o lema dos iluministas: Sapere aude!

Pensa em voltar a morar no Recife.  Mas, onde quer que esteja, na província, na metrópole ou em conferências internacionais, ainda tem muito a nos dar.  Como seu velho amigo, invoco o meu “droit d’amitié”, de que fala Saint-Exupéry, para desafiá-lo.  Ainda espero muito dele.

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Quando eu dirigia o CONDEPE (Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco), em 1982, recebi a visita de um estudante que queria colher dados para uma pesquisa.  Bem apessoado, desenvolto, confiante, dava a perceber que iria longe.  (Recordo aqui a observação de Oscar Wilde, de que só os tolos não julgam pelas aparências – embora, acrescento eu, elas às vezes enganem).  Foi meu primeiro contato com Raul Jungmann.  Depois o encontrei, várias vezes, numa “pelada” de voleibol na quadra do Círculo Militar.  E também numa convocação de esquerdistas e simpatizantes, promovida por ele, para apoio a uma das candidaturas de Roberto Freire, que sempre contou apenas com votos urbanos e de consciência para eleger-se.  Não demorou para que aquele estudante galgasse posições na administração estadual pernambucana.

No governo de Carlos Wilson Campos, que, como vice, completou o segundo mandato de Miguel Arraes, foi escolhido para Secretário de Planejamento, e logo me convidou para ajudá-lo, numa diretoria.  Eu vinha trabalhando com dois ex-alunos meus que se sucederam como Secretários de Indústria e Comércio – Sérgio Guerra e Alexandre da Fonte – e não aceitei porque faltavam poucos meses para o fim do mandato-tampão de Cali (que até já me convidara para ser seu assessor), e eu queria tirar férias…

Depois Raul foi para Brasília, levado por Roberto Freire, e acabou como assessor do senador cearense Beni Veras.  Nesse tempo, estivemos em campos opostos, pois o senador queria simplesmente extinguir a SUDENE, com a ideia estapafúrdia de criar, para substituí-la, uma “corporação financeira”.  Com essa ideia preconcebida, mobilizou governadores e empresários, promoveu debates, e lutamos um ano (eu já anistiado e reintegrado à autarquia) para derrotá-lo.  Mas seu assessor comportou-se sempre de forma leal conosco, informando-nos de todos os passos do seu chefe, e viabilizando nosso diálogo com ele.

No governo de Fernando Henrique Cardoso, licenciado pelo PPS (partido de Roberto Freire), serviu como Ministro da Reforma Agrária, um dos postos mais difíceis da administração pública brasileira, pelos conflitos ferozes de interesses que o envolvem, e pela dificuldade de compatibilizar as demandas com as disponibilidades de recursos, materiais e humanos.  Lá ficou os oito anos da gestão FHC, uma prova incontestável de competência, coragem e capacidade de trabalho.

Depois, como deputado suplente, empenhou-se pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, não tendo, no entanto, a gratificação de votá-lo, com o retorno do titular da cadeira.  Mas no governo Temer, por escolha dos próprios militares, com quem tinha mantido boas relações como parlamentar, foi nomeado Ministro da Defesa, e ao final, Ministro da Segurança Pública, postos de grande responsabilidade, onde se saiu muito bem.  Durante todo esse tempo, nunca se desligou dos seus amigos pernambucanos, com quem mantinha contatos, para ouvir opiniões e testar suas propostas.

Agora está disponível, sem mandato nem função pública, mas antenado com tudo o que está ocorrendo no país, marcando presença nos jornais, em artigos calcados em sua vasta experiência como executivo de governo e parlamentar. Temos dialogado frequentemente, às vezes com discordâncias, mas faço fé na sua integridade e na sua qualificação.

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Encerro esta minha lista de “varões de Plutarco” com uma observação importante.  Quase todos os aqui citados já “devolveram o corpo à natureza”.  As exceções até agora haviam sido meu amigo Marco Maciel, desafortunadamente fora de combate por razões alheias à sua vontade, e o General Nilton Rodrigues, ora curtindo o justo repouso dos  guerreiros, em seu retiro das Alagoas.  Mas vocês, Cristovam e Raul, vocês estão vivos e, embora sem mandato e sem ministério, ainda podem fazer muito pelo nosso país.  Vocês são como meus irmãos mais novos, de quem espero um perene engajamento pelas nobres causas do Brasil e da humanidade, com a intrepidez dos velhos combatentes.

Não podemos assistir passivamente ao momento dramático que vive o planeta, com o ressurgir do fanatismo, o assalto à razão, a volta de doenças já consideradas extintas, as agressões à vida na Terra, o apelo cego à violência entre pessoas, seitas e nações, o avanço dos preconceitos, da desigualdade e do crime, enfim, o ocaso da esperança.  O abismo está aos nossos pés.  Como os heróis gregos das Termópilas, somos poucos, e precisamos de vocês nesse embate final.