Fernando Dourado

Família comemora a Páscoa Judaica.

“É claro que eu fiquei muito constrangida quando a Paula me falou que ele vinha almoçar conosco. Mais do que isso, fiquei mesmo foi apavorada. Como assim, eu perguntei. Então, bobamente, ela respondeu que ele queria muito nos ver. Olhei para o Hans sem saber como reagir. Greta e Anne, minhas gêmeas, baixaram a cabeça, mas tive a impressão de que uma delas riu da situação, o que me causou desconforto. O que será que elas sabiam de meus sentimentos? Ou dos sentimentos que eu queria fazer prevalecer ou ocultar? Então olhei a Paula nos olhos e me vali de um descuido dela, de um indício de dúvida e de ambiguidade, daquele ar meio palerma que é tão seu, e cravei o punhal o mais fundo que pude. ´Paula, nós não queremos vê-lo. Tudo menos isso, entenda. Sei que ele é seu amigo e não me oponho. Quem sou eu? Mas não queira que sentemos à mesma mesa que ele`. Hans franziu o cenho em apoio – ainda bem – e as meninas fizeram ares de quem se desinteressava pelo tema porque sentiram que o jogo era pesado. ´Ele foi cruel conosco. Quando chegamos para ocupar o apartamento, ele tinha acabado de voltar de mais uma viagem a algum lugar, e teve o desplante de nos propor dormir uma noite no hotel porque ainda não embalara os livros. Tudo bem que se dispôs a pagar nossa hospedagem num bom hotel. Mas não era este o combinado. Ficamos muito contrariados com isso, mas nos arranjamos. Daí a querer revê-lo como se nada tivesse acontecido, de jeito nenhum. Não, isso não`, sacramentei para não deixar pedra sobre pedra. Então Paula disse que nós mantivéssemos os planos que ela iria propor que ele fizesse outra coisa no horário do almoço para evitar o embaraço do reencontro. Mesmo assim, fiquei em pânico. Não seria fácil encará-lo nos olhos. Ou seria, não sei. Afinal, nosso crime talvez estivesse prescrito. Mas era um risco excessivo. Quando se trata de judeus, nunca se sabe onde pisa.”

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“Eu não sei se é verdade ou não o que ela disse. Nem quero saber, pois aprendi que a versão conta mais do que o fato. Foi uma das poucas coisas vitais que a terapia me ensinou. Eu só posso dizer que no comecinho me senti constrangida com essa situação porque gosto muito da Delfina. E, bem ou mal, como conheço o lado turrão e narcisista de Adolfo, eu me solidarizei sem hesitar a ela. Ele foi se ocupar com outra coisa no dia aprazado enquanto a família dela esteve aqui em casa, apesar de ele ter bradado os protestos de inocência de praxe até o último minuto. No fundo, não estou preocupada com justiça. Estou preocupada com minha conveniência. Eis o segundo dividendo de vinte anos no divã. A amizade da Delfina e da família dela me interessam. Somos amigas e temos um pacto tácito, silencioso. O que ele alegou para explicar o comportamento dela e de Hans foi muito maldoso. Mas não descarto nada. Talvez eles tenham gostado mesmo de herdar – por aparente descuido dele, ou por pouco caso para com as coisas materiais – as maravilhosas taças de vinho austríacas e outros teréns, como ele gosta de dizer para reforçar o desapego. Delfina não negou em momento algum que Adolfo foi ótimo inquilino e que cumpriu com todas as obrigações. Mas ele se comportou mal na última noite, não desocupando o apartamento no primeiro dia em que eles pretendiam dormir lá. Ora, alemão é alemão. Hans pelo menos é. Delfina que não era, ficou. Quero a amizade dela para poder ficar com eles quando for a Munique. Quero também manter o laço intacto porque as filhas dela são amigas de meus filhos, que já não têm muitos amigos fora de suas bolhas. E depois, admito que demonizar Adolfo me convém. Uma vez ele me disse que sou como os velhos anti-semitas. Se não houvesse judeus, eu os inventaria. Talvez ele diga isso porque é o autêntico judeu de quatro costados. Não na observância religiosa, mas na atitude. De fato, quando acontece algo que possa diminuir os meus sentimentos com relação a ele, adoro. Aferro-me a isso e aceito sem pestanejar. Entendo meus motivos, apesar de não poder publicá-los. Mas as alegações de que as taças de cristal contaram na decisão de Delfina e Hans, francamente, me parecem excessivas. Típicas dele. Não vou nem indagar à empregada dela sobre o mérito da questão porque preciso de seus serviços para fazer uma faxina em minha casa. Isso me basta. Obrigado, terapia.”

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“Meu velho pai dizia que alguém tem que fazer o trabalho sujo. E que isso se aplica até aos casais. Quando há sintonia, um tem que entender quando o outro precisa assumir o turno. Minha mulher sempre ficou meio escandalizada com os ciúmes da vida acadêmica mas, indiretamente, terminou por apoiar minhas ações mais ousadas para não ter a carreira prejudicada. Mais do que isso, para crescer à custa de um pouco de força e influência, sempre que a situação se apresentou. Afinal, temos duas filhas e queremos ter netos um dia para povoar os espaços dessa casa demasiado grande. Quando Moshe morreu, ela sabe que engavetei nossa pesquisa comum por dois anos e ocultei-a do olhar público. Escrevi outro livro nesse intervalo para criar uma fachada diversionista e só mais adiante, quando meu então melhor amigo já estava há três anos embaixo da terra, desencavei nosso trabalho a quatro mãos. Omiti-lhe o nome, mas coloquei uma dedicatória lacrimosa em homenagem a ele. Na capa do trabalho e nas revistas científicas, fui credor único dos aplausos. Essa peça acadêmica mudou nossa vida, e só viemos para Munique por conta dela. Que culpa tinha eu se Moshe tinha morrido? E acaso era lícito dividir o prêmio com a viúva, uma formosura neurastênica que voltou para Haifa assim que ele se foi? Minha mulher sempre soube disso e me chamou algumas vezes de ´meu malandro`, nessa língua dela que aprendi tão bem. Amo o português. Agora é ela quem faz de boba essa amiga por conta dos cristais Riedel do antigo inquilino. Melhor assim. Para ele, as taças não farão diferença, não lhe falta dinheiro. Para nós, apesar de nos mantermos econômicos, mudaram os hábitos e começamos a beber vinho em honra à coleção. Por que não? ´Malandra é você`, eu disse a ela. Mas que seria chato rever o velho dono, isso seria. O que diríamos se ele os quisesse de volta? Ela disse:´Não encana, a Paula é idiota mesmo. Ela engoliu a versão da última noite ao relento`. Gut. ”

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“Eu suo a camisa que me dão. A camisa que me deram foi a daquela família. Como eu era faxineira e cozinheira de D. Margarida, mãe da Delfina e avó das gêmeas que vi nascer, e sendo o apartamento de locação no mesmo prédio, Delfina me ligou da Alemanha e disse que iria sugerir meu nome para ficar de faz-tudo na casa do inquilino novo, seu Adolfo. D. Margarida estava bem mal de saúde e eu passava os dias preocupada com o que seria de mim depois que ela morresse. Com a indicação, eu reforçava meu orçamento. Era um salário indireto pago por terceiros. E como o homem vivia viajando, eu podia fazer meus horários. Era o melhor dos mundos. Tudo correu muito bem durante os dois ou três anos que ele ficou lá. D. Margarida queria o aluguel em dinheiro e seu Adolfo chegava lá todo mês com um envelopinho. Então ele sentava pacientemente e, para a gente não entender, conversava com ela numa língua que eu nem sei dizer qual, mas que tinha vergonha de perguntar o que podia ser. Apesar da dificuldade dela de falar, por conta do problema neurológico, eles se entendiam, e sei que seu Adolfo contava o dinheiro na frente dela e depois colocava tudo numa caixa de sapato, no guarda-roupa diante da cadeira de balanço, com o assentimento dela. Depois ia embora. Quando ele voltava de viagem, geralmente trazia para ela uma caixa de chocolate e quando ia ao Nordeste trazia um bolo que ela não tinha mais condições de comer, mas que ficava para os netos, filhos do Ítalo, o único irmão da Delfina. Todo dinheiro era pouco porque o tratamento era muito caro e, como sabíamos, vão. Quando a Delfina chegava da Alemanha, era um tal de contabilizar despesas miúdas que dava até vergonha. Nem eu que venho de uma casa pobre vi tamanha miséria na infância. Quando seu Adolfo saiu do apartamento, um ano antes do combinado, sei que para ele foi um transtorno. Mas a morte de D. Margarida o fez entender que agora era uma questão de inventário. A Delfina e o professor ficaram maravilhados quando viram o que ele deixou para trás. Para quem tomava refrigerante em copo de geleia, os copos de cristal foram um sonho. Delfina ficou tão louca de alegria com aquilo, com a louça, as baixelas, as travessas e os talheres, que a última pessoa que queria ver na vida era seu Adolfo. E se ele pedisse as coisas de volta? Então transformou ele em bicho para D. Paula que, pelo que sei, acredita em tudo, e tudo ficou por isso mesmo. Mas tenho saudade dele. Eu uma vez contei a ele as histórias de mesquinharia da família e ele riu muito. Então me disse que já os tinha visitado na Alemanha. E deu a entender que Delfina era doente, que tinha memória ancestral de miserável. Nunca vou esquecer essa expressão. Não sei bem o que significa, mas entendo. Ele até disse que essa má fama normalmente recaía sobre judeus, como ele. Nunca nos outros. E ria. Dona Margarida, coitada, era segura com as finanças, mas não chegava a tanto.”

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“Ser competitivo e ter inveja é da natureza humana. Quando fui morar naquele endereço para passar uma chuva, visto que estava indeciso se continuaria no Rio ou se ia morar fora do país, o acordo previa que eu desocupasse o apartamento todo mês de julho, que é quando a família que vivia na Alemanha tirava férias de praia. A amiga de Paula, filha de D. Margarida, a proprietária, chama-se Delfina e era uma mulher seca e espadaúda, bastante limitada, mas não chegava a ser má pessoa. Na verdade, ela era uma não-pessoa. Vivia em função das duas menininhas espichadas, que desconfio que eram gêmeas, e do bem-estar de Herr Doktor Professor, um acadêmico não de todo opaco que ela laçou na juventude e com quem construiu a vida. Sair de casa em julho para mim não era nenhum problema mesmo porque eu mal ficava naquele apartamento. Pagava um salário à faxineira deles, que sei que funcionava como uma especie de olheira remunerada, mas me apiedava genuinamente da velha Margarida que gostava de falar a língua de meus finados pais. Dei portanto um polimento no meu húngaro, e sempre que ia pagar o aluguel – ela se pelava de medo do Fisco – trocávamos dez minutos de prosa em magiar. Trouxe-lhe torta de papoula e até uma autêntica Sacher vienense, que ela pediu que deixasse no quarto, certamente com medo que a enfermeira e a fisioterapeuta a comessem. Quando eu ia guardar o dinheiro depois de contá-lo cédula por cédula até quatro mil reais, o cheiro que vinha do armário era quase pestilento. Ali sim tinha coisa dos tempos do império austro-húngaro. Ao retomar o apartamento uma vez em agosto, vi que minhas gavetas tinham sido reviradas. E atas de reuniões que eu tivera com autoridades americanas tinham sido examinadas mesmo porque eu as tinha fotografado pela ordem. Deve ter sido o Hans, e não o condeno de todo. Quando a matriarca morreu e a família quis dividir os teréns, achei que podia ceder e sair antes do término do contrato. A faxineira vivia me dizendo que não tivesse pressa, que eu estava sendo muito legal. Decidi ficar no Rio e aluguei um apartamento na esquina. Um pouco por desleixo e um pouco para compensá-los por uma noite em que se recusaram a dormir num flat que eu lhes reservara no Arpoador, deixei toda minha louça, panelas de marca, talheres, não menos que umas 30 taças de vinho e uma dúzia de flûtes. Coisas de excelente marca, tenho até pena de declinar quais. Para uns roceiros somíticos, era um tesouro inestimável. Anos mais tarde, quando eles disseram à imbecil da Paula que estavam constrangidos em me rever, entendi na hora a razão. Paula, que é meio aloprada, achou que eu ferira princípios com meus hábitos semitas de quem acha que tudo pode. Meu pai bem que disse, pelo pouco que a viu, que aos olhos dela eu jamais teria razão em coisa alguma. Que ela sempre tomaria o partido dos outros, dos dela, de seus assemelhados – o que quer que isso signifique.”

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“Quando eu e a Greta chegamos em casa naquela noite, a mesa estava forrada com uma toalha bonita e tinha velas vermelhas numa espécie de castiçal de prata. Pensamos na hora, minha irmã e eu – pensamos sempre a mesma coisa -, que talvez fosse alguma festa de aniversário e a gente não tivesse atinado. Was ist das Mutti?, perguntamos em uníssono e rimos ao mesmo tempo, igualmente assustadas. Depois da reforma, era uma espécie de reinauguração do apartamento, isso estava claro. Mas aqueles pratos…E o que fazia aquela lasanha congelada de terceira dentro de travessas tão lindas? E o que iríamos fazer com aqueles copos? De quantas bocas precisávamos? Então ela disse que tinham ido fazer compras para mobiliar o apartamento renovado e que tinham achado que era tempo que nós nos familiarizássemos com a etiqueta e com o savoir vivre. Falou isso em francês. Greta riu amarelo. Eu nem isso. ´Nós sabemos que tudo isso aqui era do judeu, Mutti. Melhor você dizer que está curtindo a herança que ele nos deixou. É mais honesto`. Então, um sentimento de vergonha se abateu sobre a mesa toda. E a mãe começou a corar. Então o pai disse que se não nos adaptássemos àquilo, acharia alguém para quem vender.” Foi a primeira vez que os pilhamos numa posição realmente desonesta. Muitas outras viriam. Vergonha, espirro e dinheiro nem sempre dá para esconder.”

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