Ciclo Portugal 25 de abril – Uma tentativa de amor, no Festival Cinéma du Réel,  relembra a Revolução dos Cravos através do cinema.

Por Camilo Soares

O que é, afinal, uma revolução ? Palavra que carrega nas costas um tanto de romantismo, demanda objetividade e cujo conteúdo aparenta evanescer nos tempos atuais de banalização mediática, ou reciclado como conceito publicitário para vender refrigerantes e tênis descolados ou ainda transformado em bandeira virtual pelas redes sociais que, embora já tenham provado sua força de mobilização, ainda precisam passar pelo crivo do tempo para que sua efetividade seja julgada pela História do mundo palpável de lá fora. A noção vai contornando ilhas de dispersão e desemboca, cedo ou tarde, num mar de acontecimentos que viram de-ponta-a-cabeça um sistema, um status quo aparentemente linear, um modus operandi de relações políticas, econômicas e sobretudo humanas dentro de uma sociedade.

Através do olhar cinematográfico sobre aquele que foi a último grande acontecimento dessa natureza na Europa, a Revolução dos Cravos, que faz 40 anos neste 25 de abril, o festival de documentários Cinéma du Réel, em Paris, projetou em suas telas um ciclo de filmes produzidos nos dois anos que seguiram o episódio, abrindo uma reflexão sobre os desdobramentos em Portugal de um movimento que acabou com a mais longa ditadura na história moderna do Velho Mundo.

“É uma passagem histórica do cinema deste país ainda muito pouco comentada até mesmo em Portugal”, avalia o curador da mostra, Federico Rossin. Muitos consideram esses filmes apenas documentos históricos. No entanto, esse pequeno país atraiu as lentes de todo o mundo quando um golpe de Estado organizado por capitães marxistas e democratas deu cabo a ditadura fascista em plena Guerra Fria. Havia esperança, coragem e o romantismo das flores vermelhas cravadas na ponta dos fuzis como emblema de um raro momento em que se há a impressão de tomar-se à mão as rédeas da História (era dia de feira e os ambulantes ficaram felizes por venderem todo o estoque dos cravos que deram o nome ao movimento). Talvez isso explique o ostracismo que esses filmes sofreram: feitos para celebração de fato, acabam contando a triste sina de uma revolução frustrada, pelas intrigas internas da esquerda, pela natural falta de preparo para começar algo do zero, pelo difícil equilíbrio entre interesses pessoais e coletivos.

Tais documentários, bem distintos entre si pelo estilo e personalidade de cada diretor, unem-se pela vivacidade devido à urgência em que foram feitos e pela poética da canção que permeia a maioria deles, Grândola, Vila Morena, de José Afonso, transmitida às 00h20 pela rádio Renascença, como senha para início da Revolução.

“Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade”

A música foi na verdade o segundo sinal para os conspiradores, mas é a que ficou na lembrada e na boca do povo, pois já popular por ter ganho o festival RTP da Canção e ter sido proibida pelo regime por supostas alusões comunistas: tornou-se o hino do processo revolucionário e a trilha sonora natural dos filmes que captavam o momento histórico.

“Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira

Que já não sabia sua idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia sua idade”

Para o cinema, a repentina liberdade depois de tantos anos de censura urgia como um grito de desabafo. Uma geração se lançou no documentário para tentar participar ativamente do que estava acontecendo. “Éramos muito jovens, tínhamos uma câmera e filmávamos, sem saber muito o que estávamos fazendo”, conta Rui Simões. “Tinha estudado as regras do cinema clássico. Aquilo lá era outra coisa completamente diferente”. O resultado, no entanto, são filmes cuja importância transcende o simples registro, onde forma e conteúdo extrapolam as margens do testemunho, misturando linguagens, entrando na universalidade subjetiva dos acontecimentos.

Os coletivos foram de grande importância na época e produziram os filmes mais “quentes” da época, filmados desde o dia mesmo da Revolução. Em As Armas e o Povo (do Coletivo dos Trabalhadores da Actividade Cinematográfica), por exemplo, dez equipes de filmagem atravessaram Lisboa mostrando momentos chaves como a liberação dos prisioneiros políticos, os discursos ambíguos dos partidos e, enfim, dar voz ao povo português. Num dos momentos fortes do filme, Glauber Rocha, que estava exilado em Lisboa na época e não poderia evidentemente ficar de fora disso, interrogava com eloquência militares, feministas, passantes, mas, perplexo com a indiferença de uma mulher em frente de seu barraco numa favela lisboeta, pergunta se ela não acreditava na revolução: “Já vi tanta coisa…”, responde-lhe balançando o ombro, no que foi talvez a fala mais consciente dos limites históricos daquele movimento. “Nesse filme vemos coisas espantosas. Pode-se perceber, por exemplo, que o Mário Soares já não estava mais ali naquele tempo, como se já arquitetasse seu futuro político em detrimento dos valores revolucionários”, aponta Rossin. O Partido Comunista Português em seus comandos seria determinante para as concessões que poriam fim o PREC (Processo Revolucionário Em Curso), enterraria a “ameaça comunista” e abriria as portas para o liberalismo, inevitável segundo Soares.

Certo que o todo o mundo olhava na época para o país no qual a inesperada revolução trazida pelo próprio exército (MFA- Movimento das Forças Armadas) derrubava o regime salazarista, já nas mãos de Marcello Caetano (que se exilou no Brasil), Robert Kramer veio para executar um filme didático com a intenção de explicar às minorias militantes dos Estados Unidos o que a mídia americana deformava, em seu Scenes from the class stuggle in Portugal. Já Thomas Harlan veio de Berlim para filmar o excelente Torre Bela, que acompanhou o processo de ocupação de uma fazenda no condado de Azambuja e o árduo processo de criação de uma cooperativa dentro de um contexto de relações sociais viciadas e de governança central política ainda precária.

Mas talvez o mais elucidador de todos esses filmes tenha sido um dos raros que falou da guerra colonial, ainda hoje um tabu em Portugal. Adeus até o Regresso, de António-Pedro Vasconcelos, revela o trauma da guerra sobre a juventude de um povo português empobrecido. Na época as colônias africanas – Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde – desenvolveram movimentos de independência que culminariam em guerrilhas. A violência física e psicológica de uma guerra que já poucos defendiam e os dispendiosos gastos que deixaram o país à beira da bancarrota são tidos como a verdadeira grande razão da revolução e ponto de acordo das diversas tendências ideológicas e econômicas que a apoiaram. A junta de Salvação Nacional, formada no dia 26 de abril, tinha, por sinal, seu programa resumido por três D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.

Além do fim da censura, o boom de filmes da época foi empurrado sem dúvidas também pelo sistema estatal de incentivo a produções, desenvolvido após o 25 de abril de 1974, pois, como lembra José Manuel Costa, diretor da cinemateca portuguesa, “cinema também é uma questão de vontade política que, nesse caso, uniu-se à sede criativa de uma geração.” Havia uma necessidade de se buscar nas ruas e no campo um novo imaginário coletivo. Costa conta que o Cinema Novo português tomou emprestado essa vontade de movimentos de resistência artística já existentes que buscavam a redescoberta do povo português em contraposição à imagem folclórica que o regime salazarista difundia.

Nessa ótica de busca cinematográfica de uma imaginário coletivo em Portugal, Jacques Lemière, mestre de conferência de sociologia e antropologia da Unisersidade Lille 1 e que defendeu uma tese sobre o assunto, aponta a complexidade desse novo cinema pós-74 na busca da reflexão sobre a identidade portuguesa. Para ele, o cinema é uma espécie interpelação de um país, um interrogatório aberto e dialético:

“Numa dialética do singular (o nacional) e do universal, o cinema nacional está ao mesmo tempo capacitado de interrogar sobre um modo progressista (não nacionalista e não folclórico) a historicidade nacional, e de apresentar esta interrogação ao mundo, tornando visível, ao mesmo tempo, um país, na sua dimensão subjetiva e auto-reflexiva (um pensamento sobre o país) […]”[1]

Desses distintos olhares singulares, havia aqueles que buscavam um documentário realista, como António Campos ou o duo António Reis-Margarida Cordeiro, os mais ativistas, como Manuel Costa e Silva, os formalistas-cartesianos como Rui Simões, os iconoclastas, como João César Monteiro e, finalmente, os estrangeiros como Thomas Harlan, Robert Kramer, Philippe Constantini e Glauber Rocha. Esses filmes, na maioria filmados em 16mm (muitos para a televisão), foram milagrosamente salvos em bom estado graças ao belo trabalho da Cinemateca Portuguesa, que, além de conservá-los, garantiu o transfer das cópias para o formato padrão de difusão, em 35mm.

Quarenta anos passados, o que restou dessa tentativa de amar a revolução? A manutenção dessa memória material e afetiva nos proporciona hoje uma rica ocasião de refletir sobre o passado e repensar o presente onde o conservadorismo recrudesce em marchas contra o casamento gay, leis contra o aborto e pela extrema direita reganhando fôlego em meio a uma Comunidade Europeia enfraquecida: a revolução nunca andou tão longe. Tal ciclo de documentários abre a perspectiva que o bom cinema costuma oferecer como por milagre, quando filmes crescem para fora deles, ao deixar suas teses e fatos para oferecer leituras universais e atemporais. Diante da crise que Portugal recentemente soçobrou pela crença na especulação de uma falso desenvolvimento (assim como a Espanha, Irlanda e, sobretudo, Grécia), o conjunto desses filmes propõe um debate sobre os delicados meandros de caminhos e descaminhos históricos que traçam novas possibilidades de viver um país, refletindo e agindo sobre seu contexto histórico. O cinema de Portugal faz prova de vitalidade artística e de consciência histórica. Pedro Costa e Miguel Gomes, entre outros, dão hoje uma visão madura e esteticamente rigorosa de um país, que, felizmente, continua tentando amar.

 


[1] LEMIERE Jacques. Le cinéma et la question du Portugal après le 25 avril 1974 . In: Matériaux pour l’histoire de notre temps. 2005, N. 80. Mémoires d’avril : 1974-2004, trente ans de la révolution des Oeillets au Portugal. 51 p.