“Cansei, ceguinho! Vou dar uma volta e fumar um cigarro”, falou Renato levantando e depositando na mesa um pesado livro. “Vai lá malandro, descansa esta garganta”, respondeu Gerson com simpatia. Depois que Renato saiu da sala, Marlene se aproximou de Gerson com carinho, mas, certa irritação na fala. “Como é que você aceita ser tratado deste jeito pelo Renato, Gerson? Essa forma depreciativa de falar da sua deficiência visual”.
– “Oxén! Tu queria que ele falasse como? Eu não sou cego mermo!”, reagiu Gerson levantando a cabeça e procurando a interlocutora.
– “Ceguinho!? Gerson, isso é forma de falar? Ele pensa que é melhor do que você e pode falar com desprezo do seu problema”, insistiu Marlene.
Gerson virou a cabeça para o lado, como se buscasse os olhos da amiga, parecia não entender a insistência de Marlene. Com paciência comentou: “Menina, ele é melhor do que eu sim. Ou tu acha que eu posso ler alguma coisa? Ele pode, e já começa com uma vantagem arretada nesta vida de Deus”.
– “Ta bom, Gerson, mas ‘Ceguinho’ não é teu nome”, falou a amiga. “Porra, protesta, exige respeito, exige que chame pelo teu nome e não por uma deficiência que não é a tua essência”.
Irritado e levantando da cadeia apoiado na mesa, dedo em riste procurando o rosto de Marlene, Gerson tentou encerrar a conversa: “Para de besteira, Marlene, a cegueira é o que mais me diferencia mesmo deste mundo e de vocês todos que vêm, se emocionam com movimentos e cores, conseguem ler, sentem os contornos das faces dos amigos, seus sorrisos e choros, sei lá…”.
Marlene não continuou a polêmica mas reclamou baixinho que achava inaceitável um tratamento deste por parte de um amigo. Gerson era cego e, como costuma acontecer, tinha um grande poder auditivo. Escutou o resmungado da amiga, tentou se conter mas terminou partindo para o ataque: “Quanto tempo você já sentou a bunda nesta cadeira pra ler um livro chato de Direito Constitucional para um desgraçado de um ceguinho como eu, hein!? Marlene, quanto tempo gastou com um ceguinho metido a besta que teima em estudar?”
Diante de um tímido “você nunca me pediu” de Marlene, Gerson já começava a falar gritando: “Eu nunca pedi a Renato para fazer isso. Eu pagava para alguns profissionais; ele se ofereceu e, atualmente, minha cara, dedica várias horas do seu tempo, que não deve ser menos importante que o seu, para ler pra mim um tratado insuportável de direito. Você sabe o que é isso, Marlene? Sensibilidade, solidariedade, ou, seja lá o que você quiser. Ele me chama de ceguinho com um carinho que você não pode entender, minha amiga, o mesmo carinho que o leva a ler para mim, simplesmente para compensar minha cegueira”.
Quando voltou do seu descanso, Renato ficou espantando com a tensão do ambiente e a gritaria de Gerson. Parou na porta procurando entender o que estava acontecendo, e caminhou para o centro da sala ouvindo a última frase de Gerson. Quando percebeu melhor a confusão, dirigiu-se para Marlene como um delicado professor: “Helô, sabe o que acontece? Você trata Gerson com pena, essa historia de ‘deficiente visual’ é pura hipocrisia para esconder o desprezo penitente; ‘coitado do ceguinho, não consegue ver a bundinha das meninas, não assiste aos filmes de hollywood e não sabe sequer o que é um arco-iris, oh! Meu Deus’!”.
Gerson ria e balançava a cabeça com o discurso do amigo. Renato terminou, sentou e enquanto Marlene, quase chorando, se encolhia numa poltrona, acrescentou: Gerson tentou desfazer o mal-estar com uma ironia: “Ora, se vocês não vêm que eu sou cego, então, meus amores, vocês também são cegos”. Depois gritou: “Eu sou cego, eu sou cego e isto é uma merda”! Renato sorria com o escândalo. E depois que Gerson silenciou, passou a gritar: “E eu sou ‘viado’, gosto de homem, acho bom. Odeio o preconceito, mas, quer saber? detesto mesmo é a mentira hipócrita dos que me tratam com deferência (…) medo de ser chamado de homofóbico, quando, na verdade, são mesmo”. Renato ficou muito sério, foi na cozinha e voltou com duas xicaras de café, ofereceu uma Marlene e sentou na ponta da mesa.
Depois de um silêncio desconfortante na sala, Renato falou baixo mas suficiente para que todos ouvissem, escondendo mas insinuando a ironia: “Me tratam com pena como se eu fosse um desgraçado dum ceguinho, porra! Não, não sou cego, felizmente. Sou bicha mas vejo tudo, entendeu, entendeu, completou passando a mão na cabeça do amigo”. Marlene olhou assustada para Renato até entender a brincadeira quando Gerson retrucou com gesticulação debochada: “Prefiro ser cego que bicha. Não vejo nada, mas sinto as xotas molhadas das meninas, e você, meu amigo, só leva por trás cacete te furando todo”.
Marlene agora ria acompanhando a cena de gritos e risos dos dois amigos. Deu um gole no café, andou pela sala, pediu silêncio e disse que queria fazer uma declaração. Parou de pé por um momento enquanto os dois esperavam, olhou para os amigos, pensou e levantou também um grito triunfante: “E eu sou uma gorda feia e baixinha; muito pior que o ceguinho bonito e gostoso; muito mais sofrida que a bicha alegre que, ao menos, encontra quem lhe enfie o pau”. E completou seu gesto de libertação levantando a saia e sorrindo: “Ninguém quer comer essas minhas carnes gordas e repletas de celulite, e o pior é que eu vejo, não sou cega e tenho que ver pra todo lado a tentação do sexo. Eu sou uma pobre coitada, meu ceguinho e meu viadinho, muito mais triste que vocês”. No meio de uma risada geral, Gerson ainda soltou o veneno:
– “E ainda por cima, é preta!”
– “Cor não é defeito, ceguinho filho da puta”, protestou Marlene. “Não escolhi ser preta. Gorda, sim, é defeito e eu podia evitar. Mas não consigo”.
– “Quer dizer, querida, que a cegueira é um defeito? A homossexualidade é um defeito?”, perguntou Gerson, completando meio melancólico: “A cegueira até que é, mas eu não escolhi ser cego, porra! O Renato sim, nasceu homem, a natureza deu a ele uma rola, mas ele gosta tanto, mais tanto mesmo, que quer a dos outros também”. Mesmo rindo da bobagem do amigo, Renato protestou:
– “Gerson, agora falando bem sério: eu não escolhi porra nenhuma. Eu tentei, insisti (…) simplesmente não deu. O corpo não combinou com o desejo”.
Parecia que a noite ia terminar com um ambiente deprimente de lamentações dos três amigos. Renato foi buscar outra xícara de café, desta vez para Gerson e ao voltar, quebrou a tensão com nova provocação.
– “Como Gerson é cego, e não vê o corpo redondo e flácido, ele pode comer Marlene que acabou de dizer que o ceguinho é bonito. Hein! Que acha Gerson? Tu goza e faz uma mulher feliz”.
– “Não, não gosto de preta”, respondeu Gerson com uma ampla gargalhada. “A gordurinha até que me agrada, mas (…..) preta, preta não”.
– “Que racista filho da puta!” protestou Marlene, “Você é a única pessoa no mundo que não pode ser racista, você não vê minha cor, porra!”.
– “Não vejo, mas, sinto, querida. Sinto no tato, uma pele mais quente e grossa, e sinto no olfato, cheiro adocicado. Só gosto de loura, pele lisa, morna e tão cheirosa!”.
– “Que ceguinho racista e metido!” gritou Renato levantando e dando uma tapa no braço de Gerson que neste momento balançava na cadeira com espalhafatosa gargalhada. Marlene se aproximou rindo com a ironia dos amigos. E todos se abraçaram numa celebração da amizade. Sincera e correta amizade, corretíssima.
Caro Sérgio:
Li seu conto e entendo que, subjacente aos diálogos e os personagens, há seu desejo de criticar o “politicamente correto” que muitos de nós acha um saco, pois deletou da nossa agenda as velhas piadas que nossa geração cresceu acostumada a rir, do ceguinho, do aleijadinho, do paraplégico, do neguinho, do fresco, do judeu, do padre e por aí vai.
Acontece que se nos anos sessenta/setenta vivíamos uma revolução política, profundamente marcada pelo centralismo marxista, haviam outros movimentos tão ou mais importantes que este: o feminismo com Betty Friedman queimando sutiãs ; o Black Power com Malcom X e seus Panteras Negras, sem contar com o movimento hippie que tentou construir uma alternativa sem as amarras da sociedade e acabou no belo espetáculo que foi Woodstock.
Bem, voltado ao seu conto, pinçando apenas uma das palavras politicamente incorreta: “neguinho”. Tenho a dizer que esta palavra carrega em seu bojo os séculos de escravidão e, referir-se a uma pessoa de cor negra “Ah! É um negro de coração branco” desta forma, é se colocar como herdeiro ideológico da perversão hedionda que caiu nas costas dos povos africanos, trazidos como escravos, para o Brasil e outras partes da América.
No passado era o látego que cortava a carne do negro, hoje são estas palavras, que carregam os significantes da dominação, que cortam sua alma, tolhendo seu espírito, empurrando-o de volta para a sua senzala interior.
Falar afrodescendente – creio que este termo deve ter sido criado dentro das universidades americanas progressistas – sim, é o mais correto, e resgata um respeito merecido a seres humanos que, por séculos, e ainda hoje está muito vivo em seus descendentes esta subserviência, foram esmagados em sua cultura e identidade de povos tribais e tratados como animais. Puras mercadorias, como uma mula, uma galinha ou um porco.
A Igreja garantia que eles não tinham alma.
Como vês, herdamos, sem pedir, isso é algo imposto pela herança histórica e social traços dos colonizadores – se és branco, instruído e de classe média- profundamente conservadores, os quais precisam ser descontruídos em nosso modo de vê o mundo.
Não basta ser politicamente progressista, cabe-nos ser radicalmente tolerante com a diversidade que cada um de nós carrega em nossa humanidade.
Errado, erradíssimo!
Um abraço do amigo,
João Rego
O conto, ou história, bem que pode ser adaptada a qualquer situação com a qual nos deparamos. Eu fiquei cego, parcialmente, e nem me sito um aleijado, muito pelo contrário, passei a perceber mais. A vida nos aplica limites, quase sempre voltados para a correção de nossas vaidades. Temos hoje momentos felizes e depois outros não tanto. Isso é que torna o Mundo melhor, a união das desigualdades, cada qual contribuindo para com os outros. João Rego bem o escreve na medida que o aprendizado a que me refiro somente ocorre quando manifestamos nossa vontade de mudar. As drogas são um problema bem mais grave. A falta de saúde também, da mesma forma que o desamor. Vejam só quantos problemas mais sérios existem, do que um “cego”, que quer aprender, um homem interessado em ajudar os outros, através de um ato de amor, desapegando-se de seu tempo, às vezes precioso, e de uma pessoa que não se via com problemas, mas os assume, após compará-los com a sinceridade dos amigos. Cada um de nós têm seus problemas. Bendito o dia em que tivermos amigos que nos compreendam e nunca passem as mãos sobre nossas cabeças, pois que a pior doença é o tal de “tadinho”. Isso humilha muito. Se o tadinho e ficar no fundo do poço e sem qualquer ajuda. Parabéns pelo texto.
Menos, amigo João, muito menos! Os tratamentos “meu nego”, “minha nega”, “neguinho”, “neguinha”, são até carinhosos, e adotados também entre brancos.
Entendi a mensagem do conto de Sérgio e concordo integralmente com ela: a verdadeira amizade e a verdadeira empatia dispensam a hipocrisia e o formalismo do “politicamente correto”, pelo menos para nós, brasileiros, mestiços que somos, quase todos.
Não sei o seu caso (você é bem brancoso), mas no meu a afrodescendência está garantida: minha bisavó, “cria da casa” do Barão do Abiaí, era filha de escrava.
João
Gostaria de fazer duas correções aos seus comentários:
1. a expressão “neguinho”, que rejeita com tanta força, simplesmente não existe no texto. Mas na estrutura narrativa do texto até que caberia a expressão, embora sem a conotação pejorativa que você identifica. Penso que concorda comigo que as palavras podem ter significados muito diferentes a depender do contexto social e cultural e do ambiente em que é pronunciada. Acho que analisou e criticou descolando do contexto e do ambiente.
2. as expressões que aparecem no texto (algumas que você poderia também rejeitar) não são pronunciadas pelo autor (no caso, eu) mas pelos personagens. Eu não preciso dos personagens para dizer o que penso mas os utilizo para situar certas palavras em um contexto social e cultural e num ambiente afetivo que confere a elas significado diferente do que teria em outras circunstâncias, como na Casa Grande e Senzala que tanto ressalta na culpa de todos os males. Veja que todos os personagens são vítimas de preconceitos e que são eles mesmos que se tratam entre si de forma irônica e com palavras irônicas das suas próprias fragilidades ou diferenças.
As expressões utilizadas pelos personagens nos diálogos são, na verdade, muito afetuosas, principalmente quando falam do “ceguinho” (esta expressão sim aparece mais de uma vez no texto). E foi isso que o texto tentou mostrar, com algum humor: que expressões como “ceguinho”, “negão” (esta não aparece no texto) e muitas outras duramente atacadas por uma certa hipocrisia do politicamente correto podem ser muito afetuosas. O ceguinho da historia rejeita a piedade de Marlene e prefere o carinho do amigo que o chama, afetuosamente, de ceguinho e dedica horas do seu tempo para ajudar na leitura dos livros de direito. Prefere que o amigo o chame de ceguinho do que “meu caro portador de deficiência visual”, com todo respeito, e simplesmente o desprezasse no seu esforço para estudar direito. Como Marlene no início.
Não sei se entendi bem mas parece que você diz que eu estaria me colocando “ como herdeiro ideológico da perversão hedionda que caiu nas costas dos povos africanos, trazidos como escravos, para o Brasil e outras partes da América”. É isso mesmo? Se for, eu lamento que tenha esta impressão do seu amigo. Aliás, neste caso, eu teria que ser afastado da Revista Será? Por outro lado, me penitencio por não ter conseguido que compreendesse a mensagem que tentei passar com esta singela narrativa.
Sergio
PS. Esta reiterada tentativa de apresentar o preconceito racial dos brasileiros como uma simples e determinante decorrência do escravagismo é discutível e merece um debate. Além de quase determinista: “ah! Tivemos escravos africanos, logo somos racistas”. Talvez um dos povos mais racistas do planeta seja o russo que não tiveram colônia na África e nem escravagismo na forma que tivemos no Brasil. E os alemães odiavam os judeus que, longe de serem escravos, eram os intelectuais, cientistas e artistas, além de parte dos grandes financistas da Europa ocidental.
Abraços, Sergio
Caro Sérgio:
O seu conto não é singelo, é um bom conto e percebi sua corajosa mensagem em tentar desconstruir uma certa hipocrisia – eu diria um exagero besta – no politicamente correto mal aplicado. Tem um belo desfecho e é bem construído. Tem humor e enfatiza a amizade como um valor que se sobrepõe as diferenças. Enfim, é um bom texto.
Minha crítica – e aqui me dirijo mais aos nossos leitores do que a você – é a mensagem subjacente que ele carrega. Me atenho a apontar o poder e a carga ideológica que as palavras vão impregnando ao longo da história. E a história é sempre resultado do olhar e do contar dos vencedores sobre os vencidos. Aponto com franqueza a uma herança ideológica conservadora que permeou as mentes de várias gerações – essa herança, que apenas por efeito de estilo adverti a você, mas cabe a mim e a todos que veem de famílias de classe média ilustrada, quase todas brancas.
Se há uma coisa libertária na postura de qualquer pessoa é tentar – apenas tentar – se colocar no lugar do outro, que faz parte – pela força do destino – de uma minoria, racial, sexual, regiliosa ou cultural como é o caso dos judeus.
Os chistes e as piadas revelam muito de nós e, quase sempre, revelam também esta história de dominação e de intolerância de um grupo sobre outro.
1. Um exemplo recente: estou em uma reunião de negócio com um sócio judeu é, já no final, ele vai pegar alguns folders que estavam em cima da mesa, e por ter pegado mais de um, imediatamente veio a piada – da parte de todos que estavam na reunião -, de que judeu é assim mesmo pirangueiro e tacanho. Tudo contado num clima de “carinho” que, décadas de amizade, o grupo tinha com esse judeu. O que me chocou é que nesses meus sessenta anos de vida não conheci ninguém mais generoso que este judeu.
2. Estou em um hotel na Bahia e, de manhã, quando abro a porta do meu apartamento vai saindo do apartamento vizinho um jovem negro, imediatamente lhe entrego a chave e lhe passo as instruções para a arrumação do meu quarto. Ele não era funcionário, era um hóspede que, assim como eu, estava ali em Morro de São Paulo para curtir as férias, que certamente, pelo menos a daquele dia eu estragara. E eu me deprimi em descobrir em mim esse traço do senhor/feitor de escravos, quase como uma herança filogenética.
3. No caso dos gay, os quais apaixonados – e esse amor é feito da mesma matéria do amor hetero –não podem ter um contato físico de carinho em público sob pena de ter o estranhamento coletivo sobre eles.
Conquistas estão em curso, as minorias precisam construir seus novo espaços no social, livre de amarras do preconceito e, como todo o novo, precisa de novas palavras pois as antigas já não explicam sua liberdade, sua diferença. ( Ex. A coisa está ficando preta!)
Finalmente, e aí me dirijo a Clemente, meu avô foi mameluco vindo das tribos dos fulni-ôs com um cruzamento com algum negro, mas, por ser um grande empreendedor “esbraqueceu” quando ficou muito rico lá em Caruaru. Ninguém se lembra dele por sua cor ou etnia, mas pelo vultoso patrimônio que construiu na cidade.
P.S Sérgio lhe conheço e sei da sua generosa e radical preocupação com o outro. Sei também da sua rica e forte inquietação intelectual e quero que saiba que estou cumprindo – neste caso pela provocação que seu conto gerou em mim – aquilo que você tão bem definiu quando teve a ideia de criar a revista: a verdade através da controvérsia e da dúvida.
Do amigo.
João Rego
Corajoso,corajosissímo
É isso o que posso dizer da estória do Sérgio.
Quanto ao conteúdo ele nos faz despertar para o divórcio entre Atitude e Palavra. Embora está carregue muito da primeira, você é o que você fala, elas não se identificam. O que João Rego cita seu encontro no corredor do hotel: foi uma atitude. diferente de ter tratado a namorada no hotel carinhosamente por minha nega ou minha gorda. ( ao colocar aqui dois adjetivos para mulher, já posso ser acusado de sexismo). Uma coisa é chamar uma pessoa de negra, pela cor de sua pele, a outra de negro por sua posição social, real ou herdada. A primeira é a óbvia constatação da realidade natural, não tem preconceito; a segunda é produto do preconceito herdado do escravismo e mantido na “República” sobretudo por falta de escola com a mesma qualidade para todos. O problema é que as palavras trazem herança de atitudes e como não se sabe quem está dizendo, nem os motivos para dizer o que sente daquela maneira, é preciso a preocupação do politicamente correto. Até que negro seja um adjetivo de cor, bicha um adjetivo de opção sexual, sem conotação pejorativa dos preconceitos. Até lá precisamos nos policiar, mas separando a palavra usada no espaço familiar do espaço político. O que é politicamente incorreto no espaço público, pode ser correto no espaço das relações pessoais.
A estória do Sérgio é excelente para despertar para o fato de que o politicamente correto pode ser incorreto, e vice-versão, dependendo das atitudes e dos espaços.
Cristovam
Beleza, o pau quebrou. Viva o contraditório.
A estória de Sérgio Buarque poderia se chamar “Politicamente Correto é o cacete”. Só não gostei de tanto café que a galera toma. Não poderia ser um uisquinho ou uma lapada de Serra Limpa? Enfim…
Houve que metesse o látego no neguinho(a) baseado em argumentos filósofo-político-históricos e teve neguinho que alertou que minha nega é usado até para branquelas, com carinho. Vox Populi.
Neguinho é genérico, carioca que se difundiu. Vale para negros, brancos, mulatos, pardos e todos que passaram vez em quando pela cozinha.
Eu uso muito e sinto a repressão e emendo com um “ops, afro-brasileiro de baixa estatura” e mango por dentro, na minha.
Essa porra de inibir o vernáculo do povo é coisa de classe média ianquizada. Quem sabe das coisas é Manoel Bandeira:
“A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada”
Atualizem trocando lusíada por americana e fica joia.
Em tempo: Sérgio está devendo contar se o ceguim e a nega roliça acabaram se fodendo, stricto sensu.
Sérgio, sempre de acordo, agora com o comentário.
Mas ponho em dúvida a afirmação sobre o racismo dos russos. Não percebi isso quando andei por lá. Apenas – e a observação vale para toda a Europa Oriental – os negros são tão raros por aquelas bandas, que atraem a curiosidade do povão, mas sem hostilidade aparente.
É oportuno lembrar que Abram Petrovitch Gannibal, negro escravo dado como presente, ainda criança, por um sultão turco, ao Czar Pedro, o Grande, educado pelo imperador, fez sucesso na diplomacia do império na França e na Europa Ocidental, e foi bisavô de Pushkin, o grande escritor russo.
Quero agradecer a Clemente por me chamar a atenção para uma afirmação inadequada no meu comentario ao comentario de João Rego. Não tenho fundamentos para dizer que o povo russo é um dos mais racistas do mundo e afirmei, baseado apenas em informaçoes dispersas e talvez decorrentes de experiencias isoladas. Portanto, peço que os leitores desconsiderem esta afimação e peço desculpas ao povo russo por ter afirmado algo sobre ele sem o devido fundamento. Sergio
Caro Clemente:
O racismo russo é um fato facilmente verificável. Você parece esquecer, por exemplo, a ferocidade do antissemitismo. Bastaria lembrarmos a recorrência do pogrom, inclusive no presente. O romance The Fixer, de Bernard Malamud, é um dos mais comoventes e radicais libelos contra o antissemitismo russo. Este romance foi adaptado para o cinema, exibido no Brasil sob o título O homem de Kiev. Poderia mencionar muitas outras fontes. Cito apenas o estudioso contemporâneo cuja leitura mais me ensinou sobre a história cultural russa: Orlando Figes. Ele escreveu dois livros extraordinários sobre a Rússia: Natasha´s Dance (o melhor livro de história cultural que já li) e The Whisperers, uma história sobre a vida privada durante o stalinismo.
Recentemente hospedei uma estudante judia de origem russa. A família dela fugiu para os Estados Unidos e hoje todos são cidadãos americanos. A mãe dela foi engenheira na Rússia, mas teve que esconder sua origem judia durante toda a vida. A meio de uma de nossas conversas, Mariana Staroselski, a judia que hospedei, me disse algo que nunca esquecerei: foi tão discriminada na Rússia que aprendeu a ler o antissemitismo no olhar das pessoas. Ela me disse isso enquanto esclarecíamos uma áspera divergência pessoal ocorrida durante os dias em que a hospedei. E assim concluiu: sei que você não é antissemita porque posso ler isso nos seus olhos.
Sérgio:
Como seu conto provocou as reações previsíveis, já que o alvo visado se desenha nitidamente na narrativa a partir do título, o leitor vai de um ao outro, do conto ao comentário, como o sedento vai ao pote. Foi o meu caso. Teria tanto para comentar que refreio o ânimo, pois do contrário excederia os limites do comentário. É que muitas das questões contidas no conto e no comentário são ambivalentes, quando não contraditórias. Embora você ressalte, com razão, a autonomia do conto (isto é, não se deve confundir a voz da personagem com a do autor) debatendo com João Rego, não faltaria quem dissesse que seu conto é um “conto de tese”. A resposta não é simples. Como nada no conto é simples, apesar de você modestamente qualificá-lo como singelo, evito adiantar as distinções que tenho em mente. Acho que o comentário de João Rego, sobretudo o primeiro, é típico do politicamente correto visado pelo conto. Encurtando a conversa (pois acionei involuntariamente no teclado uma função que não sei desativar), o conto, sem perda de sua autonomia literária, mereceria um debate vivo, além do que o leitor já pode ler e acrescentar à pagina de comentários.
Fernando
Será que esse debate foi sobre o conto de Sérgio? “Correto, corretíssimo” é um bem humorado conto, em que a ambientação, as personagens e os diálogos são todos bem construídos. Eu diria que o conto poderia melhorar ainda mais se passasse por uma revisão. Mande esse conto para um bom roteirista, Sérgio, que você ainda pode ganhar uns bons trocados da Rede Globo, mais compensadores do que produzir planejamento.
O debate foi na verdade sobre a questão do politicamente correto. Eu não tenho uma opinião formada sobre tão controverso assunto. O debate que acabo de ler aqui na revista me leva a pensar que é como se estivéssemos falando de três situações distintas:
a. As situações preconceituosas na nossa sociedade e como aboli-las.
b. A imitação do “politicamente correto” da cultura dos Estados Unidos para abolir os preconceitos em nossa sociedade, cuja história cultural é muito distinta daquela.
c. O humor. Porque ficamos com cara de besta quando ouvimos piadas em outros idiomas? O humor é muito próprio de cada povo, de cada cultura. Desconfio que a matéria prima para o humor sai frequentemente do que é politicamente incorreto, aqui ou alhures. E o humor, meus amigos, é fundamental.
Fernando, agradeço o reparo, mas esclareço: eu foquei apenas o suposto racismo dos russos em relação aos negros.
Sobre o anti-semitismo, não tenho elementos para contestá-lo, mas mantenho reserva. Em tema tão melindroso, lembro apenas que grandes líderes do Estado Soviético, como Litvinov (Ministro do Exterior antes da 2ª Guerra Mundial) e Trotsky (ou melhor, Lev Davidovitch Bronstein) eram judeus. E que talvez haja uma distinção a ser feita entre anti-semitismo e anti-sionismo. No mais, respeito o sentimento da sua hóspede, e espero, algum dia, termos todos mais luz sobre esse problema.
Caro Clemente: Notei que a ênfase do seu comentário recai sobre o racismo contra os negros. Se fiz o reparo, foi precisamente por supor que não podemos esquecer que a participação dos negros na população russa, e por extensão na Europa Oriental, é minoritária. Você tem razão ao sugerir a distinção entre antissemitismo e antissionismo. Não a ressaltei por achar que o problema mais relevante na nossa discussão é o primeiro. Você menciona, também com razão, o papel fundamental que Trotsky e outros judeus desempenharam na Revolução Russa. É verdade que nem Stalin adotou uma política de Estado contra os judeus e outras etnias. Acho que a explicação para isso consiste na defesa de fachada de um comunismo inspirado nos ideais internacionalistas de todos os teóricos que o antecederam, a começar por Marx e Engels. Bastaria lembrarmos a frase célebre do Manifesto Comunista: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”. Na prática, porém, sabemos que o stalinismo foi uma deformação nacionalista, entre outras, do marxismo original. Essa deformação ideológica é também observável em toda a periferia do capitalismo onde houve movimentos comunistas significativos, a começar pelo Brasil. Espero que a gente continue conversando, Clemente. Um abraço,
Fernando
De acordo, Fernando. Este papo está encerrado.
Vamos para outro, oportunamente!