Coruja – diabo.

 

Naquela época, meu tio-avô Lucas, o Guarda-Roupa, sempre passava os meses de agosto em um pequeno sítio —o Rancho Feliz— que ele comprara em Catolé do Rocha, no meio da mata, no rumo de Belém do Brejo da Cruz. Nele, uma pequena casa, sala, quarto e cozinha, com um grande fogão a lenha. Era ali onde preparava seus famosos lambedores, à base de mel de abelhas e essências vegetais. Esses xaropes desfrutavam de vasta aceitação entre tísicos, coqueluchentos e assemelhados de Campina Grande e adjacências. Em sua faina de cozer, dosar e filtrar suas milagrosas beberagens, meu tio estava sempre sozinho, vez que sofria de manias derivadas de um banho de chuva que havia tomado após comer uma excelente buchada de bode. Daí, passara a experimentar delírios persecutórios, acreditando que o Maligno e outras gentes de maus bofes queriam prejudicá-lo, apoderando-se de suas coisas, roupas e receitas. Por isso, as fórmulas dos lambedores ele as mantinha de cor, não se arriscando a escrevê-las ou dizê-las, mesmo para mim.

—Mas, meu tio, por que somente nos meses de agosto o senhor prepara os lambedores?

—Você é curioso! Mas, isso é bom. É o que salva a Humanidade. Veja bem, eu aprendi no livro de Galeno, colhido em Morro Feliz, que o mel das abelhas é feito do encanto das flores e das gosmas de certas plantas e, também, de mucos de insetos que sugam plantas. As abelhas pegam, misturam e combinam tudo aquilo para fazer o mel. E ainda precisam de tempo para a mirra ficar madura nos favos das suas colmeias. O produto varia, é diferente, conforme a raça da abelha, o tipo de flor que se vê na região, do clima, do solo, da umidade e, até, da altitude do lugar, tudo importando no gosto, na cor e no cheiro desse milagroso líquido. O mel, para ser do bom, precisa ser meio visguento, perfumado e doce. Isso tudo é importante, principalmente no que mais me interessa: no seu uso como parte principal dos meus lambedores. Parou, olhou para as telhas, como que procurando um pensamento, e continuou: —Porém, o mel também faz bem à alma da gente. Vou lhe contar um acontecido que me perturbou muito e me fez corrigir minha vida para melhor, em uma ocasião em que eu estava entretido, fazendo esses xaropes. Quer ouvir?

—Claro meu tio. Respondi e me acomodei melhor na rede porque sabia que estava por vir uma das celebradas histórias do Guarda-Roupa, que me surpreendiam e sempre ensinavam.

—Pois bem. Começando pelo começo, é preciso que você saiba que, para fazer meus preparados, sempre principio pegando o mel nas colmeias certas, que sei onde estão, escondidas nas matas de Catolé do Rocha. Saio de casa logo cedo, nas manhãs de agosto, quando um céu meio púrpura, meio alaranjado, sempre emoldura o alvorecer. Desço um caminho, que vai da Pedra Alta até um baixio, levemente inclinado, coberto de capim espinhento. Daí, subo a uma crista donde vejo no horizonte as encostas da Borborema como sombras, como tiras serrilhadas de papel azul-esverdeado, postas contra o céu. É um lugar oculto, bonito e sagrado, quase chegando na capoeira de Clarice com suas árvores que dão livros, onde, no verão, colho, com prazer, muita literatura de qualidade. Naquele elevado, apanho os favos, as ervas e raízes que me interessam, e que não vou dizer a você quais são porque o Maligno, que sempre está me atazanando, pode ouvir e querer ficar com minha receita. Depois, cozinho, misturando bem as plantas com o mel até ter o xarope. Mas, havia notícias de que nesses lugares bentos muitos fantasmas vagavam à noite, fazendo o quê, não sei. O que sei é que, algumas vezes, eles seguiam, escondidos, o visitante no retorno para casa. Na ocasião em que se deu o fato que vou lhe contar, cheguei de volta em minha moradia e logo fui para a cozinha acender o fogo de lenha, ver se a fumaça estava subindo direitinho pela chaminé e preparar as bateladas de lambedor, pilando, moendo e cozinhando os ingredientes. Mas, cozer um caldeirão de xarope não é um trabalho para qualquer um, principalmente para quem é preguiçoso: você tem que estar todo tempo alerta, jogando lenha no fogo para ele não apagar e prestando atenção ao ponto da calda. Se você parar o cozimento fora de hora, tem que descartar o que estava sendo feito e recomeçar tudo de novo. Pois é, eu estava em plena fervura do preparado, mexendo o caldo com uma grande colher de pau-rosa, quando ouvi um som feito um queixume, vindo não sei de onde: “Oh, Ooh! Ooh!” “É o vento”, pensei. Passou-se um tempo e, novamente, Ooh! Ooh! Ooh! Fiquei atento e logo repetiu-se o lúgubre lamento: “Oh, oh, hou, ohouou, houoo …” Deve ser o Maligno, pensei!

—Nossa!

—Também fiquei assombrado. Procurei dentro de casa e não achei nada que explicasse os gemidos. Fui dar uma olhada no lado de fora: nada de anormal, nenhuma marca ou sinal de pés de viventes, diabos ou fantasmas ao redor de casa. Voltei para seguir com o preparo do xarope. Logo, o queixume se tornou um grito lancinante e barulhos vieram do telhado, do alto da chaminé. Senti os cabelos da minha nuca se arrepiando e a boca seca. Entrei em pânico, deixei o fogão aceso, a calda pela metade e fugi dali à toda, com as pernas tremendo e a respiração curta. Dormi no meio do mato uma noite de pesadelos. De manhã, voltei à casa, dei uma geral, não vi nada de estranho. Acendi o fogo novamente e recomecei meu trabalho. Fui tocando a produção e nada de bizarro aconteceu até o final da tarde. Pensei que no dia anterior teria tido alguma alucinação por conta da fumaça do xarope que subia do caldeirão. Mas, quando a noite chegou, chegou, também, a mesma queixa sinistra: “oh, oh, oh …” Era o vento ou parecia a voz de alguém conhecido?

—De quem?

—Do gago Tolentino.

—Mas, o gago Tolentino morreu faz tempo!

 —Pois é. E nesse caso eu não estava com a consciência limpa. O gago Tolentino era meu vizinho a quem eu devia um dinheiro por conta de umas mulas que ele havia me vendido tempos atrás. Mas, o gago morreu de repente, logo depois do negócio, e eu me achei, por isso, livre daquele débito. Agora, estava percebendo que a alma do tartamudo não ia me deixar em paz a fazer meus lambedores. Vi isso quando, ao tentar acender novamente o fogo e voltar ao trabalho, as queixas e os lamentos tornaram-se outra vez presentes, cada vez mais sombrios e persistentes. O fantasma de Tolentino ia se chegando, reclamando seu direito! Não tive alternativa. Parei meu trabalho, fui dormir e logo cedo saí para a casa da viúva do gago e paguei a dívida. Pedi para ela não contar para ninguém meu atraso na remissão do encargo. A viúva, satisfeita, concordou e aceitou o dinheiro com alegria porque dele realmente estava precisada. Envergonhado, mas mais tranquilo, voltei para Fonte Feliz. Reacendi o fogão, nada de anormal aconteceu. Continuei a coletar mel e plantas e não parei de cozinhar até o final de agosto. Nos dias que se seguiram não ouvi mais queixumes ou ruídos. Quando os favos de mel começaram a rarear na mata guardei meus baldes, jarros e caldeirões. Juntei as garrafas de xarope prontas. Apaguei o fogo. Ajeitei a casa e subi no telhado para tirar algumas goteiras. Enfiei um vasculhador pela chaminé para limpar a fuligem e sabe o que encontrei lá dentro? 

—Não. O quê?

—Uma grande Coruja-do-Diabo morta!

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22/01/2022