João Rego

Ofélia, personagem de Hamlet, por John Everett Millais, 1852.

Ofélia, personagem de Hamlet, por John Everett Millais, 1852.

Recife, 1 de maio de 2041.

A Paulo Medeiros.

Este texto é uma tentativa de resposta ao debate suscitado pelo meu texto “Hamlet,psicanálise a e captura do sujeito pela ciência.“ publicado na semana passada na Revista Será?

Primeiro, e isso é muito importante para delimitar o foco das minhas ideias, quero deixar claro que em meu texto “Hamlet…”, em nenhum momento faço uma crítica à ciência como se na vida sem ela o homem estivesse melhor. Não se trata disso. Sou usuário de tecnologia, tenho em meu smartphone e dois tablets tecnologias que ampliaram de forma inimaginável minhas possibilidades de absorver cultura e conhecimento, e, o mais importante, produzir novos conhecimentos. Minha biblioteca, a Finis Africae, com livros herdados de pais, avós e outros, com os quais construo meu espaço de trabalho cercado por eles como um Outro Gutenbergiano sempre a me desafiar, já começa a migrar para o universos digital, onde as traças não os atingem e, com a ajuda dos “equipamentos de leitura digital” faço anotações, marcações e os salvo em uma “nuvem” que não tenho a mínima ideia onde fica.

Cuido-me bem tomando minhas sinvastatinas há anos, fazendo meu check up periódico e tenho um enorme respeito e confiança em meu cardiologista.

Embora não se saiba nem pra onde nem para que, a humanidade caminha célere na sua interação com os recursos da natureza para um progresso que nos dá a sensação (falsa) de que estamos, através da ciência, seguindo uma trajetória linear a com um excedente de riqueza e felicidade inesgotável. Lembro sempre, para fixar esta ideia, de que os homens da pré-história se relacionavam com o silício na produção de pontas de fechas, desbastando por horas e horas para chegarem a um resultado tosco de uma ponta de flecha que iria aumentar sua capacidade de caçar de forma mais produtiva e eficaz. Hoje, a relação do homem com derivados deste mesmo material é absurdamente mais ampla, profunda e complexa. É com este material que se faz o chip eletrônico, substrato da toda a sociedade da informação, essa em que espraiamos nossas demandas afetivas em redes sociais, lemos os livros digitais e temos acesso a um volume de informação quase infinito em suas combinações.

Minha crítica é à absoluta e tosca prepotência da ciência – e até que ela tem vasto histórico de resultados para se achar omnipotente, omnisciente e omnipresente, pegando um pouco das características teológicas de Deus, outro grande enigma da humanidade – para se debruçar sobre a alma humana.

Neste sentido, a ciência não está só, pois há milênios brigam o Estado, a ciência e a Religião pelo controle do espírito humano, este sempre inquieto, incompleto e inalcançável. A Ciência tem uma enorme vantagem sobre estes dois: não queima gente na fogueira para impor suas ideias, se consolida com resultados materiais que afetam nossas vidas, e, o mais importante, tem a dúvida como seu impulso primordial.

Porém uma simples frase de um poeta, um texto literário mais profundo (Há! como Shakespeare aprofundou isso!) se aproxima mais dela – a alma humana – do que os caros e sofisticados equipamentos dos laboratórios dos países desenvolvidos, posto que é afeto, é emoção, é poesia e é isto a matéria mais sutil de que somos constituídos.

O corpo é uma frágil caixa de ressonância dos desejos que nos constituem e nos fazem sofrer, criar e amar.

Procurar a cura para a angústia e a depressão escaneando o corpo do sujeito, como se este fosse uma caixinha preta com dois olhinhos a perscrutar o mundo que o cerca é a mais absoluta agressão à belíssima subjetividade humana. Teríamos aí a morte da arte e da criação humana, posto que agora uma máquina e algumas pílulas resolveriam nossas angústias.

Quando uma das histéricas de Freud – e olhe que ele era um cientista brilhante, gênio mesmo, desde pequeninho – pediu para ele parar de falar e escutá-la, ele, aí seu grande mérito, teve a humildade de ouvir, do alto da sua científica sabedoria. Foi aí que se fincou a primeira estaca a qual fundaria a psicanálise. Deixou as experiências de neurofisiologia com as enguias e foi buscar na literatura (principalmente esta), na mitologia, na filosofia, na arqueologia e na antropologia conhecimento para dar conta daquele sintoma – sofrimento neurótico – da sua paciente. Tentar decifrar as causas dos sintomas, das inibições e das angústias do sujeito foi o que ele fez a vida inteira.

Como gênio que era, mergulhou fundo e escreveu uma obra grandiosa e, como grande missivista, escreveu milhares de cartas para colegas fundando, o que ele sabia, uma nova área do conhecimento que, partindo inicialmente do sintoma psíquico, iria descontruir tudo que se pensava sobre a cultura e a civilização, com suas sólidas fundações como a religião, a guerra, a sexualidade e a morte.

Construiu a mais profunda experiência do humano, como costumava dizer, com base em apenas dois polos: a sexualidade e a morte, perpassadas pelo desejo.

Sobre sua descoberta fundamental, ou a pedra angular de toda sua obra, o inconsciente, o que obviamente não vou teorizar em espaço de poucas páginas, destacou que a humanidade sofreu algumas feridas narcísicas: a primeira, quando Kepler desconstruiu a visão omnipotente de que a Terra era o centro do Universo; a segunda, quando Darwin destruiu o que a religião durante séculos, afirmara – sempre a ferro e fogo – sermos feitos a imagem a semelhança de Deus (criado por nós mesmos), quando de fato vínhamos de uma longa evolução da espécie dos primatas. Mas aí vem a filosofia e dá uma colher de chá nessa autoimagem do homem tão abalada por estas descobertas científicas. Descartes garante: “Penso, logo existo”, num esforço supremo de garantir nossa superioridade narcísica.

Se vocês se deram ao trabalho de contar, aí vem a terceira ferida narcísica, até hoje inquietando a muitos, o inconsciente. Com a descoberta de uma instância essencial em mim, pois é causa e efeito dos desejos que me estruturam como sujeito, aos quais sou alienado, Freud destrói o último reduto de segurança do humano. E em seu lugar não coloca nada, pois não há nada para colocar. Diante de um humano fundado na angústia por sua incompletude estrutural e, aquilo que onde pensávamos que éramos – único espaço da consciência-, se revela como o universo da alienação do sujeito, o Eu.

Lacan, outro gênio, eu diria, do mesmo porte de Freud, resume essa alienação do sujeito ao inconsciente – aliás, para a psicanálise só existe o sujeito ao inconsciente, pois efeito deste-, em uma frase brilhante, parafraseando Descartes:

“Penso onde não sou (o Eu) e sou onde não penso (O Isso).”

Lacan, que se dizia freudiano, não fez outra coisa senão ir fundo em tudo que Freud descobriu. Se temos em Freud obras, que defino como seu pensamento social, aquilo que não tinha necessariamente a prática clínica como objeto, (O Mal Estar na Civilização, Totem e Tabu, O Futuro de Uma Ilusão e outras), Lacan a tudo mistura, num vertiginoso e genial fluxo de saber que durante trinta e dois anos, ano a ano, falou, sempre na posição de analisante, diz ele, em seus Seminários. Envolveu e revolveu o pensamento freudiano quase encoberto pela visão do fortalecimento do Eu da IPA (Recomendo a leitura de A questão da Análise Leiga de Freud para quem quiser entender sua briga com os médicos psicanalistas) e para isso se municiou – com uma profícua e invejável capacidade de manusear diversas áreas do conhecimento -, do Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, da filosofia de Hegel, Heidegger e outros, da literatura, da topologia, da Lógica e, talvez a fonte mais importante, se é possível ordenar esta sua trajetória intelectual, da linguística estrutural de Ferdinand Saussure.

Sempre com radical e quase obsessivo compromisso, eu diria, capturado, pelo saber de Freud.

Este seu revolvimento de conceitos que Freud, o qual deixou apenas delineado como sua obra O Estudo sobre as Afasias e outras, encontra em Lacan um poderoso intérprete que vai além, muito além do que Freud havia deixado. O Inconsciente Lacaniano é muito mais complexo e sofisticado que o de Freud.

Conceitos como a (Objeto causa do desejo), o Estádio do Espelho na formação do sujeito e a função do Outro, sem contar seus grafos e sua topologia – esforço insano de demonstrar esse Sujeito barrado e suas formações do inconsciente – elevam ainda mais essa complexa aventura do humano perpassado pela linguagem e de ser desejante-para-a-morte.

***

P.S Não falo aqui como psicanalista, mas sim como analisante que é o único lugar de onde se pode falar com propriedade dessas coisas, resultado das minhas discussões com Deus e com o Diabo em meu percurso de análise.

PS 2 Com este meu movimento, pulo e desço agarrado ao candelabro da sala principal do Castelo– tal e qual a Errol Flyn –, passando por cima dos espadachins que haviam me encurralado no final da escada. Firme de pés no chão me recomponho esperando a próxima contenda. A misteriosa Dama de Cabelos Vermelhos, ainda com seu punhal na mão, sorrateiramente tirado do espartilho (ah! as mulheres), espantada vira-se acompanhando minha trajetória no ar, quase sem acreditar.

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com