João Rego, junho de 2014.
Meu pai não era muito chegado a investir em geringonças tecnológicas e a TV, para ele, era uma delas. Assim, este moderno equipamento veio chegar na nossa casa algum tempo depois que muitas famílias da Rua 13 de Maio, em Caruaru, já tinham essa coisa mágica que iria mudar a forma de vermos o mundo. Era muito comum ficarmos esticando o pescoçoe “pescando” da calçada os filmes, as primeiras novelas da Rede Tupi e outros programas nas casas dos vizinhos. Não sabíamos que a TV iria acabar com uma época onde os vizinhos saiam para conversar na praça ou colocar as cadeiras na calçada, à noite, para prosear.
Ela, ao mesmo tempo em que nos abria um enorme e fantástico universo de conteúdo, qual um monstro bigbrotheano, iria nos enclausurar em nossas casas.
Lembro, muito claramente, eu e mais outras pessoas – e aí não tinha distinção de idade ou classe social, a única coisa que nos unia era a curiosidade e a enorme cara de pau de não se incomodar em incomodar o vizinho – em pé, na calçada, diante do janelão de Seu Ernesto, assistindo a novela Redenção ou a célebre e lacrimosa o Direto de Nascer. E Seu Ernesto com sua esposa, num gesto de generosa solidariedade para com nós, pobres mortais desprovidos de TV, nos acolhia sem nenhum incômodo. A horda era inconveniente, ficava dando pitacos e só faltava pedir água, café e uma bolachinha. Era como se você estivesse lendo seu jornal com um grupo de pessoas “fungando em seu cangote” para ler junto, sem ter sido convidado
Antes da Trancham chegar lá em casa, passei a usar outro recurso, que era TV da Casa de Mano, filho de seu Luiz Monteiro. Aí era um paraíso: Filmes como Bat Masterson “No velho oeste ele, nasceu, e entre bravos se criou…”; Bonanza, com sua bela música de abertura; O Homem do Rifle e a bem produzida série sobre a segunda guerra mundial, Combate. Como Combate era mais tarde, acabava entre às dez e onze da noite, saía cambaleando de sono para andar uns trezentos metros de calçada que separavam as nossas casas.
Com a compra da TV Trancham —, segundo mamãe, papai, por pirangagem, comprara a marca mais barata do mercado —, ganhei meu canal de acesso àquele fantástico conteúdo que trazia o mundo para dentro de mim. Ficava excitado esperando aparecer aquele sinal de ajuste na tela com a cabeça de um índio, que demorava, às vezes, uns vinte minutos ou mais parado com uma musiquinha que se repetia, e eu ali firme, de olho grudado, só esperando a sessão vespertina começar.
Assisti, embora já fosse fã dos Beatles, a Jovem Guarda nos Domingos à tarde, Roberto Carlos e sua turma: Erasmo, Wanderléia, Leno e Lilian, Martinha, Renato e seus Blue Caps; A Grande Família com Golias e Jô Soares no papel de mordomo, que era o ponto máximo dos domingos à noite. Um grande momento era o Concurso de Miss que galvanizava a cidade, formando, inclusive, torcidas. Foi através do Repórter Esso que recebemos as notícias das mortes de João XXIII e John Kennedy. Jota Silvestre, programa de desafios do conhecimento (A Noivinha da Pavuna!); Flávio Cavalcanti, tirando e botando os óculos com cara de brabo; Você faz o Show, produzido em Recife e apresentado por Fernando Castelão e o show de Rita Pavone em Recife. Momentos como o de Gilberto Gil, tendo os mutantes (ah! Rita Lee) como back vocal, cantando a, até hoje, revolucionária Domingo no Parque, são momentos perenes que inundaram, com intensa emoção, meu universo infantil ávido por novidades.
Emoção mesmo, porém, foi o impacto dos Beatles! Aquela música, o grupo e seu comportamento. Eles vieram para anunciar o fim de uma era e o começo de outra, livres das amarras estéticas e bem comportadas dos anos 40 e 50. Lembro da emoção de, aos treze anos, em 1967, ouvir na minha eletrola portátil Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band com sua misteriosa capa, quase como uma revelação divina, abrindo – como diria Aldous Huxley -, “as portas da minha percepção”. Era o som! Era o som que causava aquele efeito arrebatador em meu espírito, pois não sabia inglês e não entedia as letras.
No final da programação diária da TV – que, por sinal, anunciava o que iria passar no outro dia, com o nome do programa e seu horário rolando na tela-, acho que acabava lá pelas onze e meia da noite, eu ficava assistindo e cochilando até aparecer a cara do índio da TV Jornal do Commercio com a música Acalanto de Dorival Caymmi “E tão tarde a noite já vem, todos dormem a mamãe também…” acordava, muitas vezes, com meu pai, gentilmente me chamando e me conduzindo para a cama.
Com a morte dele, em maio de 1969, de enfarto fulminante, tudo se dissolveu como num filme em que a fita queima – assim como em Cinema Paradiso – e todo aquele universo infantil se esvaneceu num passe de mágica. Marcados pela dor abrupta da perda do pai migramos, sob a liderança da bela e brava Dona Teresa Rego, para o Recife. Hoje, já chegando aos sessenta anos, tenho ainda o hábito-, que por sinal nunca me abandonou-, de ficar à frente da TV cochilando e zapeando, talvez numa tentativa inútil e plena de desamparo infantil, esperando que o pai venha me acordar e, sob sua proteção, ser levado para a cama; ou, quem sabe? Seja uma busca vã de encontrar no meio destes inúmeros canais de TV a cabo, assim, por encanto, um que me leve à infância mágica onde o tempo e o espaço eram como um caderno em branco, nos esperando para escrevermos a felicidade dia após dia.
DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
Amigo João Rego…uma viagem quase psicodélica.
Sorte sua ter conseguido assistir em casa Jovem Guarda e Beatles…eu, com outros menos afortunados, trepados na grade da Loja José Borges, muitas vezes puxados para baixo pelo vigia, víamos também extasiados em preto e branco as lindas pernas da Ternurinha Wanderléa e sua doce voz e, ouvíamos atônitos, mimicando palavras para She loves you, I want to hold your hand, From me to you…valeu, Yes it is.
Sóstenes me lembro do impacto de ter ouvido She loves you, no beco da Estudantil, acho que era a loja de Djalma, era tudo novo e arrebatador.
Excelente! Quando sairá o livro com essas reminiscências? Um abraço do Tôrres
Caro José Torres:
Estes textos são uma despretensiosa prestação de contas com um passado. Daí para um livro é um passo grande. Bem, de qualquer maneira fica registrada a sua demanda.
Um forte abraço.
Belo texto João Rego, independente dos laços(fortes) de amizade de nossa família, me vi pequenino diante de tantas lembranças!!! Grande abraço!!!
Flávio:
Seus pais, que eram muito amigos dos meus, são uma forte a agradável presença em minhas lembranças. Lembro-me da alegria de encontrar Zé de Melo caminhando na praia, creio, dois anos antes de sua morte. Foi uma emoção muito grande.
Na nossa casa a primeira TV foi uma philco 3D. 3D naquela época? Até hoje não sei porque. Foi comprada na loja A PALMEIRA que ficava ao lado do SANDU e era muito bonita com gabinete em madeira, contornada com frisos dourados e um vidro cobrindo toda frente, e em destaque em letras douradas o tal 3D. Certa vez perguntei pra minha mãe o que siguinificava o 3D e ela respondeu “treis vezes da Déborah” devido ao “sacrifício” para pagar aquele carnê em suaves prestações mensais.
Marco
O 3D era exatamente aquele vidro que tinha uma curvatura e era meio colorido. Ou seja, não era 3D no sentido holográfico de hoje mas quebrava um galho. O problema era a qualidade do sinal, muito ruim, com muito ruídos.
Muito boa a resposta da sua mãe!
Um abraço.
Qual o destino final da TV Trancam? Nos meus bem vividos 60 anos desconheço totalmente essa marca. Lembro da Telefunken, Philco, Philips, ABC, Zenit e outras.
Quando tiver disposição vou pesquisar nos sites especializados, mas aposto que não vou encontrar nada parecido. Não seria uma fábrica de TV tupiniquim de Campina Grande?
Ney:
Acho que a Tracham nos acompanhou até Recife. Durou ainda algum tempo, feliz que só, pois agora o sinal de Recife tinha intensidade e qualidade muito superior aquele de Caruaru, que, coitada, levava toda a culpa.
Com licença povo de Caruaru, de antanho. Aqui em Olinda nunca apareceu uma Trancham. Deve ser coisa da Feira quando tinha tudo no mundo para se vender. Hoje quem tem tudo é a Bodega de Véio.
Para não perder essa seção “No meu Tempo” deflagrada pelos do agreste portadores de carteira do idoso, nesta postagem sem a menor importância, conto que vi televisão pela primeira vez numa vitrine na Copacabana, esquina com Santa Clara e o programa foi uma longa diatribe de quem? Do indefectível Carlos Lacerda.
Em tempo, para os saudosistas: Há um canal chamado TCM que passa Bonanza e dia desses rolava aquele chinês do velho oeste, kungfuzeiro, que tinha um mestre cego ( êpa! portador de deficiência cia visual) queo chamava o discípulo de Gafanhoto
João Rego
Graças a um amigo, conheci o site da Revista Será? Pude então ler seu artigo A TV trancham e o pai –João Rego, artigo que me tocou bastante por termos coisas em comum, especialmente porque morei em Caruaru durante alguns anos. De fato, colega de turma do Doutor Rodolfo Veloso de Araujo, criamos juntos a Clinica Psiquiátrica de Caruaru em inícios de 1965.Aliás, foi nesta época que Gilberto Gil foi cantar em Caruaru, mas o Senhor não deve se lembrar deste fato porque tinha apenas uns 10 anos de idade. Eu encontrei o cantor e, com um amigo que trabalhava na emisssora de rádio da cidade, Romildo, conseguimos levá-lo para uma entrevista.
Antes disso, fui presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFPE e candidato derrotado das esquerdas nas eleições para a presidência da União dos Estudantes de Pernambuco, em 1963. Quando houve o golpe militar, fui intimado pelos jornais a comparecer ao IV Exército, tendo sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Contratei um advogado para me defender, preparei minha saída do Brasil e fui morar em Paris. Depois, encontrei trabalho em Orléans, onde resido há décadas.
João, estou em lágrimas. Suas lindas lembranças são tão minhas que é difícil dizer se não éramos irmãos e morávamos na mesma casa. Assisti aos mesmos filmes, novelas programas etc. Que transporte magnífico. A diferença é que vc estava na 13 de maio e eu na Evaristo da Veiga em frente a uma ABC A Voz de Ouro. Também tenho uma admiração profunda por seu enorme amor filial. Continue a nos transportar nesse magnífico túnel do tempo. É um grande deleite ler o que escreve. Grande abraço.
João,
Nessa noite de sexta-feira, estou sozinho com minhas reminiscências na distante Chaves, no norte de Portugal, a dez quilômetros da fronteira espanhola. Arrependi-me um pouco de levar o isolamento a extremos tais porque a cidade é demasiado remota, tudo fecha às oito da noite e o centro velho – onde estou instalado – desafia qualquer ermitão com seu silêncio e imutabilidade. Mas devo ter alguma razão interna insondável para gostar dessa experiência.
Entrando no site da revista, achei esse teu artigo – outra pérola – e ele me trouxe um pouco de calor humano à noite desolada. Então me vieram à memória os programas de auditório do canal 2 de que eu tanto gostava. Como eu morava a um virar de esquina de lá, na rua da Aurora, tinha fins de semana em que eu ia a todos os programas ao vivo: Noite de Gala, Você faz o Show, Tia Linda, Jorge Chau e até o do vereador Alcides Teixeira.
Imagino bem hoje o que a televisão em Caruaru representou para as relações humanas na época. Da mesma forma que me distraio hoje com um computador, encapsulado numa solidão que é uma provação aos nervos dos mais frios, ela devolveu todo mundo para casa e lá se foram os serões de bate papo na calçada. Um veneno que terminou acendendo o rastilho de uma desagregação oriunda, no fundo, da tela. Ou do écrã, como eles dizem aqui – um galicismo.
Mas nem tudo é monotonia na bonita Chaves, uma cidade cheia de barbearias e famosa por seu presunto cru – o mais reputado de Portugal. Isso porque o ramerrão de senhoras conversando de suas janelas nos becos estreitos, foi sacudido pela aparição de um cachorro com um pé humano dependurado na boca. Então cercaram a casa de um feirante que trabalha em Verín, do outro lado da fronteira, em cuja casa o cão achou o acepipe. Como vês, nem tudo é monotonia.Tudo isso para dizer que adorei teu texto. Escrever debela a solidão absoluta.
Boa noite e um abraço,
Fernando