Chute forte à direita. Bola rola rasteira pelo campo buscando o canto esquerdo do travessão. O goleiro pula esquio e certo, mas um pouco tarde e a bola avança a alta velocidade. Cem mil pessoas fazem um silêncio tão atordoante que permite ouvir o silvo do deslocamento da bola no vento e o ruído do seu arranhão no gramado. Excetuando o goleiro, que se jogou com fúria e desespero na espera da bola, os 22 jogadores param e observam, naqueles segundos de incerteza e angústia, o movimento em diagonal do objeto arredondado de couro.
A poucos centímetros da barra, a bola encontra uma pequena touceira de gramas irregulares e sofre um leve desvio para a direita, se afastando por milímetros do gol. Termina sua trajetória batendo no cantinho da trave que a empurra para o lado esquerdo no pequeno espaço entre a estaca de madeira e os dedos longos e finos do goleiro. A ponta do dedo polegar esquerdo toca a parte de baixo da bola em rápida velocidade, provocando uma surpreendente subida quase na vertical e apenas um pouco para trás, no vazio que se desenha entre as linhas da trave.
Ninguém mais se move no estádio lotado, nem a torcida, nem os jogadores, sequer o ponta-direita que chutou a bola com fúria de artilheiro para alterar o resultado do jogo. Até o goleiro, já caído, movimenta apenas a cabeça para o alto, acompanhando a trajetória assustadora da bola que parece ter vontade própria aproveitando os pequenos toques em diferentes partes da sua circunferência. O tempo parou. Nada se move, ninguém arrisca um som ou movimento com medo que pudesse precipitar a entrada da bola, com vontade que tudo terminasse naquele momento, a bola no ar parada e o apito final do juiz.
Mas a bola continua subindo num movimento elíptico – para cima e também para trás – como se procurasse penetrar na barra por cima do goleiro caído e incapacitado. Não se pode mais fazer nada. O resultado já está definido e tudo agora depende da curva da bola que, por sua vez, decorre da combinação da velocidade com o ponto em que o dedo do goleiro conseguiu projetar o seu movimento.
Num nível baixo da arquibancada, um jovem não conteve mais a agonia e deu um grito – não! – sufocado e estridente, acompanhado de um sopro que atravessou o campo e, chegando à bola, provocou um levíssimo impulso para o alto. Retardando o movimento para trás, a bola bateu no travessão superior, subiu mais um pouco. Como indecisa, ela ainda flutuou no ar um interminável milésimo de segundo e, finalmente, deslizou pela rede no lado de cima e por fora.
Como ao sinal de um maestro, a multidão saltou num grito único de alívio e alegria vendo a rede balançar com a bola escorrendo por fora do gol. Poucos minutos depois, acabava o jogo com a vitória e o desfile da seleção com a taça de campeão. Barbosa chorava no canto da trave enquanto a multidão gritava seu nome e glorificava a mais importante defesa da sua vida e da história do futebol. O goleiro levantou, recolheu um punhado da grama que o ajudou a proteger o gol e o projetou para a glória. Levantou os braços expondo aquele mato verde como ostentasse a sua taça de campeão.
Parte da multidão entrou no campo correndo enlouquecida pelo resultado e pela liberação da agonia dos últimos segundos de jogo. A massa carregou o goleiro nos braços, homenageando seu salto brilhante e seus dedos iluminados. Ninguém notava o jovem do decisivo grito cujo sopro deu o impulso final para afastar a bola. Ele chorava no canto, sozinho mas convencido que tinha protegido a seleção e salvo o Brasil de um desastre.
Sempre me emociono com qualquer assunto que você escreve. Quanta
delicadeza de palavras e frases para falar de coisas banais, da vida cotidiana. Quanta originalidade ao comparar uma torcida, sempre tão bruta, com a sublimidade de uma orquestra.
Que liberdade para inventar o que quer, subvertendo a realidade em literatura. E finalmente o simbolismo de se conseguir o que se deseja através de um grito.
Lindo!!!
Luciana
Beleza, Sérgio!
Pô… Sérgio.
Valeu!
a esfera desce veloz/ele a apara no peito/ e a para no ar e depois /com o joelho/ a dispõe a meia altura onde/iluminada a esfera espera o chute que/num relâmpago a dispara na direção do nosso coração.
Será que foi Ferreira Gullar o emissor do NÃO salvador?
Bela e oportuna metáfora escrita com muita sutileza. Este grito está sendo dado agora por alguém, em alguma parte do País e do Mundo, e a bola do destino histórico toma um rumo diferente. Ninguém sabe de onde sairá este grito, mas certamente está mais entre os que se manifestam fora, do lado que daqueles que torcem dentro do campo.
Cristovam
Que maravilha,Sérgio..
Excelente conto!, gostei ainda mais porque estava no Maracanã naquele fatídico 16 de julho; tinha oito anos e bem poderia ter sido o menino salvador da pátria em chuteiras. Mas infelizmente não gritei, mudo permaneci como todo o estádio, a sofrer aquele ensurdecedor silêncio.
muito bom. parabéns. bem que o título podia ser “o demaracanazo”
Só um equipamento de altíssima definição poderia mostrar em câmera lenta a emoção que você colocou no texto que, como sempre, nos enche de prazer.