Alguém teve acaso a curiosidade de ler as frases escritas na fachada dos ônibus das seleções participantes da Copa do Mundo? O que atraiu minha curiosidade foi ver hoje numa reportagem do Jornal Nacional, ainda sobre a humilhante derrota do Brasil para a Alemanha, a que escolheram para o ônibus da seleção brasileira: “Preparem-se! O hexa está chegando!” Cotejei-a com as das demais seleções. Quase todas invocam o espírito de orgulho nacional, unidade nacional, exaltação mítica da nação, espírito competitivo e guerreiro, valores enfim previsíveis em um contexto de competição esportiva entre nações.
Embora grande parte dos atletas participantes de fato já não representem seleções nacionais, diluídas pela expansão do capitalismo global (basta pensar na seleção brasileira, integrada por muitos jogadores desconhecidos da nossa torcida), o fato é que a Copa desperta um sentido de orgulho nacional que sobrevive antes de tudo como ideologia. Quero dizer, os valores nacionais que celebramos, ou nossas projeções míticas, não mais correspondem aos fatos que regem o futebol global. Dizendo melhor, grande parte dos jogadores não representa de fato suas nações de origem. São uma legião estrangeira. Se quiserem uma expressão mais forte, são como um exército mercenário, ávido de vestir a camisa do clube que paga melhor. Acabada a Copa, com ou sem título, cada um volta para o seu clube, que no geral nada tem a ver com a nação de origem dos jogadores. E convenhamos: o sonho de todo Neymar, de todo craque brasileiro, é jogar na Europa para conquistar fama e fortuna. Defender a seleção brasileira é apenas a cristalização desse sonho.
Voltando ao mote inicial, a frase adotada pelo Brasil é muito significativa pelo que contém de previsão arrogante. É a única que dá como favas contadas o grande vencedor, o campeão supremo. O hexa foi anunciado antes mesmo de a Copa começar. Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor. É por isso que mergulhamos sempre no apagão e afundamos na perplexidade quando sobrevém alguma derrota decisiva. Não bastasse tanto, a mídia, de forma praticamente absoluta, despreza a mais elementar noção de critério ético, isto é, de isenção informativa. Por mais discutível que seja a ética regente da ação da mídia, investida de força persuasiva e manipulativa num mundo unificado pela revolução comunicativa, ela precisa atender a um ponto mínimo de consenso irrefutável: a isenção informativa.
É claro que os profissionais do esporte, em qualquer lugar do mundo, cultivam suas paixões individuais irredutíveis, sobretudo as que envolvem competições nacionais. No entanto, o fato de torcer não anula a possibilidade, diria mesmo o dever ético, de preservar na medida do possível o caráter isento da informação. Galvão Bueno, locutor simbólico de todas as participações da seleção brasileira em competições internacionais, desmente de forma deslavada o critério de ética midiática elementar que aqui invoco. Este fato está tão entranhado na nossa mentalidade futebolística que nunca ouvi ninguém, nem o mais isento e consciente dos torcedores, dizer uma palavra sobre essa aberração nacionalista, com freqüência levada ao extremo da incitação à arrogância e desapreço pelos adversários.
No fundo, desde pelo menos o tri-campeonato de 1970, trocamos nosso espírito de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues, pelo do “melhor futebol do mundo”. Um pouco de humildade, ou pelo menos realismo, não faz mal nem ao maior dos vencedores. Nesse sentido, a seleção alemã e várias outras nos dão uma lição que não sei se somos efetivamente capazes de aprender, ou sequer perceber. Eis o que diz a frase adotada pela Alemanha: “Uma nação, uma equipe, um sonho!” Talvez eles, os alemães, tenham ainda memória do que lhes custou, também ao mundo, sua utopia racista de cujas entranhas irrompeu a maior catástrofe da história da humanidade. Sei que a analogia é um tanto descabida, mas nos dois casos ela tem a ver com o que o nacionalismo agressivo e arrogante tem de pior, seja no futebol, seja na política. Felizmente nossa arrogância, nosso orgulho nacional, tantas vezes acintoso, fica confinado à esfera do esporte. Mas só um fanático ou um inconsciente encara o futebol, e o esporte em geral, como mera expressão gratuita e louvável do prazer lúdico inscrito na natureza humana. Embora o futebol esteja longe de ser uma guerra, nem por isso deixa de ser uma guerra domesticada pela civilização.
Queria por fim ressaltar duas coisas: 1-Minha convicção, reiterada durante toda essa histeria das massas orquestrada por uma mídia privada de qualquer critério de ética informativa, de que o irracionalismo do rebanho está entranhado no psiquismo humano; 2-O caldeirão do inconformismo popular vai voltar a ferver, infelizmente de forma anárquica, no geral como expressão de revolta sem nenhuma organicidade política. A desintegração humilhante do sonho do título, num país cujas carências são cotidianas e extremas, vai concorrer para agravar a rebelião reativa. Prevejo tais desdobramentos baseado apenas na minha percepção da realidade. Gostaria sinceramente de estar errado, tanto que espero ser desmentido pelo que virá. Mas é isso sinceramente o que prevejo isento de qualquer presunção de adivinho ou derrotado ressentido. Aliás, como ser um derrotado ressentido, se sempre vi e vivi o futebol como ele é para mim: apenas futebol? Minha convicção foi sempre e é a busca das reformas democráticas, que nunca interessaram aos que governam um país cujo povo nunca foi qualificado para adotá-las e defendê-las.
Recife, 9 de julho de 2014
Faltou incluir a cartolagem da CBF neste desvario.. Regulação da mídia já.
Caríssimo Fernando,
Assinaria seu artigo de alto a baixo, não fosse um bemol que gostaria de introduzir em tão oportuno texto.
Um bemol, não, dois.
O primeiro: Galvão Bueno. Afirmar que nunca ouviu ninguém dizer uma palavra sobre essa “aberração nacionalista” é injusto. Injusto porque inexato. Que ele tenha se tornado o “Louro José” do mais tacanho nacionalismo da nossa classe “mérdia” (estou citando alguém que não lembro), tudo bem. Mas o Brasil não é feito só de mediocridades. Não vou fazer nenhuma pesquisa empírica para demonstrar que tem muita gente, sim, que diz e publica cobras e lagartos sobre tão ridícula figura. Para me refugiar só numa lembrança rápida, lembraria que no último mundial, onde também estivemos longe de apresentar o “melhor futebol do mundo”, apareceu na internet, com grande sucesso, uma grande onda conhecida como “cala a boca, Galvão!”. Se colocar no Google, vai aparecer tanta coisa, professor!
O segundo bemol. A referência, no final, ao nosso “povo” que nunca foi qualificado para adotar ou defender reformas democráticas. Uau! Dependendo do que você chama de povo, acho que ele está muito certo… Já pensou no que é ser “povo” no Maranhão de Sarney?… Tem mesmo é que se acomodar e tratar de arrumar um lugarzinho na Casa-Grande atualmente ocupada por uma senhora chamada Roseane…
Como diria João Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro!
Luciano
há hora que o povo tiver educação vira com certeza A DEMOCRACIA.
Meu caro Luciano:
Vamos ao bemóis do seu comentário. Quanto ao primeiro, dou a mão à palmatória, embora minha ênfase recaia não sobre a adesão generalizada ao nacionalismo boçal de Galvão Bueno, mas ao fato de ninguém, que eu saiba, invocar o princípio de isenção informativa que ressalto no artigo. Quanto ao segundo bemol, confesso que sua justificação do povo privado de democracia efetiva (e penso antes de tudo em democracia social) me cheira a populismo. Talvez não seja à toa sua alusão ao romance de João Ubaldo, afilhado dileto de Jorge Amado. Nunca subscrevi esse paternalismo romântico, tão caro às nossas camadas letradas e privilegiadas (das quais somos parte, não preciso dizer). Nunca comprei nem vendi essa história de que o povo é vítima inocente da opressão, deslize paternalista que leio em gente que muito admiro. Com jeitinho, no Maranhão e noutros brasis, o povo se arruma do jeito que pode e continua sob os tacões dos Sarneys, ACMs e outros coronéis do Brasil. Por isso, entre outras, o futebol, o carnaval e outros circos continuam consolando e sustentando nosso atraso.
Apontar os coronéis do nordeste é indispensável, mas não é suficiente. E ainda nem é suficiente apontar os pecuaristas do Goiás e Mato Grosso. Que tal apontar os magnatas da mídia televisiva, como, por exemplo, Luciano Huck?
Prezado Fernando Lima, essa frase em destaque parece equivocada no espírito: “Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor.” Não me parece que a estrutura de sentimento que você quer atingir seja própria da “arrogância”, mas sim da EMPÁFIA. Empáfia de pretensos campeões antecipados; como em 1950. EMBÓFIA, SOBERBA e VAIDADE de tontos, de simplórios e de dirigentes sem noção. O “povo brasileiro” não é arrogante. O que temos que lamentar é ter deixado nas mãos de celerados irresponsáveis a realização de um trabalho necessário e esperado por todos. A CBF e a mídia infantilizada contribuíram para o desastre; isto sim.
Caro Alex: Muito grato pelo comentário. No contexto em que usamos os termos arrogância e empáfia, não identifico nenhuma discordância entre nós. Arrogância é desdém ou desprezo pelos adversários. Este é o sentido preciso do termo no contexto do meu artigo. É um sentido muito similar à empáfia. Portanto, não sei onde está nossa divergência. Talvez esteja na extensão da arrogância, que você restringe aos dirigentes do futebol. Aqui eu discordo. Acho que a arrogância é também do povo, que usa a hegemonia do futebol brasileiro também como compensação para nossas profundas frustrações e carências como povo e nação. Um abraço.
Caro Alex: Aparentemente minha resposta se perdeu. Tento portanto reescrevê-la. O sentido que empresto ao termo arrogância no meu artigo é o de desdém ou desprezo pelos adversários. Neste sentido, é bastante similar ao termo que você prefere: empáfia. Portanto, não sei onde está a divergência. Divergimos, sim, quando você afirma que o povo não é arrogante. No futebol, não tenho dúvida de que aprendemos a ser. Nada mais banal do que o clima de “já ganhou” quando o Brasil compete. Para não me repetir, encurto a resposta, pois defendo este mesmo ponto de vista na minha resposta para Xico, que vai abaixo. Escrevi primeiro para você. Como no entanto minha mensagem sumiu, acabei voltando para lhe dar a devida atenção. Muito grato pelo comentário.
Se me permitem, também gostaria de apontar um terceiro bemol nesse angu…. É quanto à suposta arrogância do “povo”….também depende do conceito de povo….tal arrogância é bem mais vista, ouvida e palpada nos terreiros da elite (aeroporto, teatro, cinema, Shopping, TV, etc)….é lá que ela, a arrogância, vive e se manifesta cotidianamente….não, nos terreiros do povo (rodoviária, barzinho, favela, etc)….
Caro Xico: Indo ao seu bemol, usei o termo povo no seu sentido mais amplo, já que o futebol é sem dúvida a grande força unificadora da nação. Note que o povo, neste sentido, não se reconhece nas grandes datas políticas: Independência, República, Abolição da Escravidão etc. Isso é muito significativo e seria bom assunto para um artigo. O povo não se reconhece nestas datas porque não foi protagonista dos fatos políticos a elas associados. O povo se reconhece enquanto unidade nacional no futebol e no carnaval, por exemplo. E nesse sentido eu diria que o sucesso no futebol mundial há muito nos subiu à cabeça. Por isso sustento meu argumento de que no futebol somos sim arrogantes. O “já ganhou” quando o Brasil compete é uma banalidade. Não fosse assim, o povo não se identificaria tanto com o nacionalismo boçal de Galvão Bueno. Quem no geral o ridiculariza é uma minoria crítica. Nesse sentido, dou razão ao comentário de Luciano Oliveira.Precisamos ser sacudidos por campanhas como esta da última Copa, ou por derrotas como as que sofremos da Alemanha, para cair na real. Muito grato pelo comentário, Xico.