Fernando da Mota Lima

Alguém teve acaso a curiosidade de ler as frases escritas na fachada dos ônibus das seleções participantes da Copa do Mundo? O que atraiu minha curiosidade foi ver hoje numa reportagem do Jornal Nacional, ainda sobre a humilhante derrota do Brasil para a Alemanha, a que escolheram para o ônibus da seleção brasileira: “Preparem-se! O hexa está chegando!” Cotejei-a com as das demais seleções. Quase todas invocam o espírito de orgulho nacional, unidade nacional, exaltação mítica da nação, espírito competitivo e guerreiro, valores enfim previsíveis em um contexto de competição esportiva entre nações.

Embora grande parte dos atletas participantes de fato já não representem seleções nacionais, diluídas pela expansão do capitalismo global (basta pensar na seleção brasileira, integrada por muitos jogadores desconhecidos da nossa torcida), o fato é que a Copa desperta um sentido de orgulho nacional que sobrevive antes de tudo como ideologia. Quero dizer, os valores nacionais que celebramos, ou nossas projeções míticas, não mais correspondem aos fatos que regem o futebol global. Dizendo melhor, grande parte dos jogadores não representa de fato suas nações de origem. São uma legião estrangeira. Se quiserem uma expressão mais forte, são como um exército mercenário, ávido de vestir a camisa do clube que paga melhor. Acabada a Copa, com ou sem título, cada um volta para o seu clube, que no geral nada tem a ver com a nação de origem dos jogadores. E convenhamos: o sonho de todo Neymar, de todo craque brasileiro, é jogar na Europa para conquistar fama e fortuna. Defender a seleção brasileira é apenas a cristalização desse sonho.

Voltando ao mote inicial, a frase adotada pelo Brasil é muito significativa pelo que contém de previsão arrogante. É a única que dá como favas contadas o grande vencedor, o campeão supremo. O hexa foi anunciado antes mesmo de a Copa começar. Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor. É por isso que mergulhamos sempre no apagão e afundamos na perplexidade quando sobrevém alguma derrota decisiva. Não bastasse tanto, a mídia, de forma praticamente absoluta, despreza a mais elementar noção de critério ético, isto é, de isenção informativa. Por mais discutível que seja a ética regente da ação da mídia, investida de força persuasiva e manipulativa num mundo unificado pela revolução comunicativa, ela precisa atender a um ponto mínimo de consenso irrefutável: a isenção informativa.

É claro que os profissionais do esporte, em qualquer lugar do mundo, cultivam suas paixões individuais irredutíveis, sobretudo as que envolvem competições nacionais. No entanto, o fato de torcer não anula a possibilidade, diria mesmo o dever ético, de preservar na medida do possível o caráter isento da informação. Galvão Bueno, locutor simbólico de todas as participações da seleção brasileira em competições internacionais, desmente de forma deslavada o critério de ética midiática elementar que aqui invoco. Este fato está tão entranhado na nossa mentalidade futebolística que nunca ouvi ninguém, nem o mais isento e consciente dos torcedores, dizer uma palavra sobre essa aberração nacionalista, com freqüência levada ao extremo da incitação à arrogância e desapreço pelos adversários.

No fundo, desde pelo menos o tri-campeonato de 1970, trocamos nosso espírito de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues, pelo do “melhor futebol do mundo”. Um pouco de humildade, ou pelo menos realismo, não faz mal nem ao maior dos vencedores. Nesse sentido, a seleção alemã e várias outras nos dão uma lição que não sei se somos efetivamente capazes de aprender, ou sequer perceber. Eis o que diz a frase adotada pela Alemanha: “Uma nação, uma equipe, um sonho!” Talvez eles, os alemães, tenham ainda memória do que lhes custou, também ao mundo, sua utopia racista de cujas entranhas irrompeu a maior catástrofe da história da humanidade. Sei que a analogia é um tanto descabida, mas nos dois casos ela tem a ver com o que o nacionalismo agressivo e arrogante tem de pior, seja no futebol, seja na política. Felizmente nossa arrogância, nosso orgulho nacional, tantas vezes acintoso, fica confinado à esfera do esporte. Mas só um fanático ou um inconsciente encara o futebol, e o esporte em geral, como mera expressão gratuita e louvável do prazer lúdico inscrito na natureza humana. Embora o futebol esteja longe de ser uma guerra, nem por isso deixa de ser uma guerra domesticada pela civilização.

Queria por fim ressaltar duas coisas: 1-Minha convicção, reiterada durante toda essa histeria das massas orquestrada por uma mídia privada de qualquer critério de ética informativa, de que o irracionalismo do rebanho está entranhado no psiquismo humano; 2-O caldeirão do inconformismo popular vai voltar a ferver, infelizmente de forma anárquica, no geral como expressão de revolta sem nenhuma organicidade política. A desintegração humilhante do sonho do título, num país cujas carências são cotidianas e extremas, vai concorrer para agravar a rebelião reativa. Prevejo tais desdobramentos baseado apenas na minha percepção da realidade. Gostaria sinceramente de estar errado, tanto que espero ser desmentido pelo que virá. Mas é isso sinceramente o que prevejo isento de qualquer presunção de adivinho ou derrotado ressentido. Aliás, como ser um derrotado ressentido, se sempre vi e vivi o futebol como ele é para mim: apenas futebol? Minha convicção foi sempre e é a busca das reformas democráticas, que nunca interessaram aos que governam um país cujo povo nunca foi qualificado para adotá-las e defendê-las.

Recife, 9 de julho de 2014