Esta crônica, com algumas velas de obituário, é culpa de João Rego. Logo, já começo solicitando ao leitor certa compaixão crítica que não precisa ser estendida a João, xará do que morreu, pois as besteiras que aqui vou verter decorrem do seu encorajamento. Pondo ordem no defunto, pois a morte é definitiva e portanto não se faz com emendas, João Rego me reprovou com razão o fato de escrever com espírito de demasiada responsabilidade. Já nos bastam a seriedade da vida e do trabalho, acrescenta ele astutamente. Desse modo, façamos a revista Será? mesclando alguns grãos de galhofa e cachaça às tolices que escrevemos. E assim, seduzido pelo Vadinho que malandramente salta das cordas do violão de João Rego, vou me aboletando sem nenhuma responsabilidade no botequim de João Ubaldo.
João Ubaldo viveu de modo perigoso para a autonomia da sua obra literária. Quero dizer, fazendo de si próprio um personagem tão sedutor e exposto à corrente mitológica gerada pela mídia, acabou sendo talvez mais importante do que a obra que escreveu, mais personagem do que aqueles tramados por sua imaginação literária. Há por certo nesse velório festivo que seguimos, transportando para o túmulo nosso defunto de botequim, muita gente que conhece o defunto sem todavia conhecer a obra que legou à nossa tradição literária. Muitos que ignoram sua obra e seus muitos personagens sabem muito bem de um outro personagem, o autor, que transportou a ilha de Itaparica para o mapa da nossa literatura.
Como nosso amigo Luciano Oliveira, que infelizmente não cedeu à insistência dos meus telefonemas para escrever esta crônica, João Ubaldo batia o ponto infalivelmente no seu “escritório” onde se misturava “ao povo brasileiro”. Embora as expressões aspeadas suponham a agregação sem fronteiras de gente procedente de todas as origens sociais, o que nelas reponta é antes de tudo o povo narrado e celebrado nas páginas de João Ubaldo e do seu padrinho literário e amigo Jorge Amado, que também já regrediu ao útero da mãe natura a quem abençoo e culpo por estar neste mundo.
João Ubaldo tanto concorria com a sua obra que foi ontem celebrado no Jornal Nacional. Do botequim de Itaparica ao fardão da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono supremo jamais abriria a porta daquela instituição vetusta para sentir o bafo de cachaça desse baiano irreverente e despachado, não se ouviu choro nem vela, mas a consagração do ser vivo, do homem João Ubaldo louvado por famosos e anônimos de muitos extratos sociais da nossa cultura. Ora, isso é justo, antes de tudo comovente, mas o leitor espera que aqui exponha alguns fiapos de razão passíveis de justificar a fama do defunto. Afinal, não foi por beber cachaça com o povo e celebrar a vida nas galhofas e estripulias dos botequins que João Ubaldo se tornou um substantivo singular ou um João indivíduo, não o João substantivo comum do Brasil.
E assim me apercebo da encrenca em que João Rego me meteu. Acenou-me um convite para induzir-me a escrever uma crônica de botequim, vertendo no texto antes cachaça do que algumas páginas suadas de cultura literária, e lá fui eu para a folia de João Ubaldo com o violão debaixo do braço e a cabeça vazia. Eis que agora me perco no labirinto que eu próprio construí com o barro da facilidade enganosa e preciso, antes que o defunto deite na vala, cavar uma vereda que de algum modo me transporte para a literatura e a estrada da vida.
Cavo então minha vereda lembrando o óbvio: ninguém, salvo Batata do celebrado Bacalhau do Batata, faz fama deitando na cama dos botequins. João Ubaldo viveu nos botequins misturado à folia cotidiana do povo brasileiro, mas suou muito decifrando os labirintos da cultura letrada. Além de nascer e se formar numa família onde essa modalidade da cultura ocupava papel central, desde cedo ligou-se por amizade e muitos modos de afinidade a gente como Glauber Rocha, prefaciador do seu primeiro romance, Jorge Amado, seu já citado padrinho e amigo, e foi ainda jovem reconhecido como escritor de primeira categoria ao publicar Sargento Getúlio. Além da carreira literária, consolidada pela composição de dois romances que se somam ao já citado para elevar o reconhecimento da sua obra (refiro-me literalmente entre parêntesis a Viva o povo brasileiro e O sorriso do lagarto), foi jornalista, roteirista, cronista prestigiado de importantes periódicos nacionais e internacionais e por fim, já que nenhum escritor vive somente de botequim e cachaça, tanto se excedeu nestes prazeres, os do botequim e da cachaça, que muita gente se enganou supondo bastarem para a consagração literária. Como reza a frase famosa, embora talvez já esquecida, ledo e cego engano que esta crônica irresponsável é a primeira a empurrar para as trevas do dolce far niente dos botequins.
Concluindo, apesar de todos os despropósitos que aqui deito e enrolo, João Ubaldo suou muito o suor de todo artista merecedor de acolhida nos reinos da arte imaginativa que ele soube honrar. Por isso sua morte desperta tantos louvores, inclusive do povo que nunca o pôde ler, mas celebrou seu mais importante romance, O povo brasileiro, convertendo-o em samba-enredo num carnaval já remoto cujo ano esqueci. Mas continuaremos lembrando João Ubaldo. Quero dizer, lembrando e lendo sua obra, pois esta é tudo que fica.
Recife, 19 de julho de 2014
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