Sérgio C. Buarque (com a colaboração de Bernardo Sousa Buarque)

O futebol é uma atividade lúdica e criativa que desperta emoção e catarse coletiva, da mesma forma que qualquer outro esporte ou mesmo as diferentes manifestações culturais, como teatro, cinema, concerto. Mas o futebol é, muito provavelmente, o entretenimento mais popular no planeta, pela quantidade de aficionados e pelo interesse de segmentos da população de todas as faixas de renda. E o futebol é também uma atividades que mobiliza e gera volumosos negócios, bilhões de dólares que circulam em torno da prática esportiva. A simples transferência de um jogador da elite europeia de um clube para outro pode custar até 200 milhões de euros, ao que se acrescem os salários milionários que serão pagos ao atleta durante a temporada.

 

Como os clubes podem assumir tamanho custo ou investimento? No Brasil, como é sabido, a esmagadora maioria dos clubes está sempre insolvente e no limite da falência, com receita modesta e gastos inflacionados pelo mercado mundial de jogadores (para não falar de desvio e corrupção). A receita do futebol no mundo inteiro, incluindo o Brasil, tem diversas fontes. Mas, com certeza, os ingressos no estádio estão longe de ser a principal. Patrocínio, merchandising, transmissão televisiva, vendas de produtos, aluguel dos espaços e múltiplos usos dos estádios são as diversas fontes de recursos dos clubes. No entanto, para que os clubes consigam captar os financiamentos, é necessário que lotem os estádios com bom futebol e entretenimento que emociona. Menos pela renda e mais pela emoção que desperta e mobiliza em grandes segmentos da população, o que pode justificar contratos milionários de transmissão e merchandising.

 

Neste quesito, o “pais do futebol” está muito longe de ser um exemplo de sucesso. Na média, os jogos da Série A do Campeonato Brasileiro, o mais importante evento futebolístico do Brasil, atraem 12 mil pessoas por jogo (ocupação média de apenas 35% do espaço) em estádios sujos, inseguros e desconfortáveis. Mesmo com ingressos baratos, os estádios lotam apenas em alguns poucos jogos decisivos. Nas ligas inglesa e alemã, ao contrário, a taxa média de ocupação dos estádios é de 95%, com público em torno de 42 mil na Alemanha e 35 mil na Inglaterra (dados da Plurisports consultoria).Esta diferença é um retrato claro da desvantagem do futebol brasileiro, que começa com os estádios vazios e, como consequência, menor interesse de patrocinadores, merchandising, contratos de transmissão, gerando um círculo vicioso que passa pela na baixa qualidade dos jogos.

 

A reforma do futebol brasileiro não passa pela definição de um novo técnico, pela ideia estapafúrdia de proibição de exportação de atletas, nem mesmo por pesados investimentos públicos na formação de talentos. A reestruturação no futebol brasileiro deve começar com uma radical mudança nos estádios para oferecer conforto, qualidade e segurança, fatores fundamentais para atração de grande massa de torcedores. O Estado tem um papel central como regulador, fiscalizador e policiamento. Como faz para licenciar o funcionamento de um teatro, o Estado deve impor exigências rigorosas que definam condições mínimas de qualidade dos estádios, desautorizando um estádio no qual um fanático e criminoso torcedor arranca uma bacia sanitária e joga na cabeça de outros torcedores que passam na rua ou no qual as gangues se enfrentam numa guerra que ameaça a segurança e a vida das famílias que buscam entretenimento. Atualmente, milhares de torcedores, pobres ou ricos, deixam de ir aos jogos de futebol aos domingos para não se submeter a um sol desgastante na cabeça, a banheiros sujos e sem higiene, a atos de vandalismo e violência.

 

Os estádios de futebol deixados pela Copa do Mundo deveriam ser o padrão para reestruturação do esporte no Brasil e modelo para reformulação dos outros estádios existentes para os jogos profissionais. Como a operação e o funcionamento desses estádios de qualidade são caros, existe o temor de elitismo na atividade de entretenimento mais popular do Brasil. Para não correr este risco, mais uma vez se prefere que o pobre continue tendo entretenimento de pobre, pagando pouco para assistir a espetáculo futebolístico medíocre em estádios miseráveis, deixando aos ricos o “padrão FIFA” de futebol, da mesma forma que os outros serviços públicos e culturais. Para que os mais pobres possam assistir a um jogo em estádio de qualidade, os governos podem criar subsídios, como o programa “Todos com a Nota” do governo de Pernambuco, que estimula troca de ingresso por nota de compra, contribuindo também para elevação da receita pública. Em vez de elitizar o futebol, a reestruturação dos estádios, com conforto e segurança, democratiza o entretenimento, na medida em que hoje milhões de brasileiros se afastam dos campos dominados por torcidas organizadas violentas e em conflito.

 

Tudo indica que ingressos mais caros não afastam o público. Se forem compensados pelo conforto e a segurança dos estádios pode, ao contrário, aumentar a sua taxa de ocupação com expansão da população que se sente motivada a assistir boas partidas de futebol. Parte da classe média, que representa hoje parcela significativa da população brasileira, não vai ao campo porque não tem conforto nem segurança. E seguramente estaria disposta a pagar mais pelo ingresso para assistir a um espetáculo de qualidade com boas condições dos estádios. Por outro lado, o crescimento do número de aficionados nas partidas de futebol (que poderia dobrar a modesta taxa de ocupação atual), possibilita menor preço do ingresso, na medida em que se tem um importante ganho de escala: padrão FIFA dos estádios sem preço FIFA dos ingressos.

 

Parte da tão citada “revolução” do futebol europeu (principalmente na Inglaterra) foi resultado direto das exigências de condições dos estádios e da segurança do torcedor com o afastamento das gangues de torcedores fanáticos. Até o final dos anos 80, os estádios ingleses eram um campo de batalha dos hooligans que, em grande medida, afastavam os cidadãos e atraiam principalmente os fanáticos torcedores que apreciavam os combates mais do que o próprio futebol. O ponto de inflexão foi a morte de 95 torcedores esmagados contra o alambrado do estádio numa partida entre Liverpool e Nottingham em 1989. Diante desta tragédia, o governo inglês criou regras muito rigorosas para o funcionamento dos estádios e declarou guerra aos hooligans e, mesmo sem nenhum recurso público, os estádios foram reestruturados (ver Franklin Foer em Como o futebol explica o mundo), tornando-se ambientes tão confortáveis e seguros como um teatro ou um cinema. Mesmo com ingressos mais caros (nem tão mais caros por conta de promoções para sócios), os jogos encheram os estádios, aumentando a emoção e o entusiasmo dos torcedores, elevando a receita dos ingressos e ampliando os negócios do futebol. Este é um caminho para a reestruturação do futebol brasileiro.