Helga Hoffmann

Haverá interrogações já a partir do título. Nova coalizão? Não é a mesma coalizão entre CDU/CSU e SPD que governou a Alemanha de 2013 a 2017? Passados quase seis meses da eleição parlamentar na Alemanha, foi assinado esta segunda-feira, 12 de março, o Acordo de Coalizão entre CDU, CSU e SPD.[1] Organizado em 14 capítulos, abrange praticamente todas as atividades de governo e a futura atuação política dos três partidos. O título é solene:

Uma nova decolagem para a Europa/Uma nova dinâmica para a Alemanha/Uma nova coesão para nosso país

Os representantes dos três partidos, Olaf Scholz, o novo Ministro das Finanças, pelos socialdemocratas, Angela Merkel, a chanceler, pelo CDU, e Horst Seehofer, novo Ministro do Interior, pelo CSU, posaram solenemente para os fotógrafos da Europa primeiro assinando e depois segurando diante do peito o Acordo de Coalizão de 177 páginas em encadernação simples. Scholz cuidou de acalmar jornalistas reiterando que protegerá o legado de seu predecessor, Wolfgang Schäuble: “equilíbrio fiscal é parte do consenso nacional”. Dois dias depois, 14 de março, o Parlamento alemão elegeu Angela Merkel para o seu quarto mandato, que começa com declarações de que “mais do mesmo não é uma opção”.

É fato que a coalizão não é assim tão nova, mas ela é certamente diferente, ainda que sejam os mesmos os três partidos. Para começar, mudou o contexto. Em 2013 esses três partidos obtiveram 67% dos votos; em 2017, apenas 53%, em conjunto o pior resultado do pós-guerra. Em 2017, o partido nacionalista e anti-imigrantes, o AfD (chamado Alternativa para a Alemanha) está pela primeira vez representado no Parlamento, com pretensões a ser o principal partido de oposição. Emergiu mesmo a narrativa alarmante de que pela primeira vez desde a II Guerra Mundial há nazistas no Parlamento Alemão, e voltaram discussões sobre identidade cultural. Em geral, mesmo alcançados alguns consensos na nova coalizão, o debate político está e permanecerá muito mais fragmentado. Muito mudou desde o histórico fim de semana de 4-6 de setembro de 2015, quando várias centenas de refugiados se amontoaram em Budapeste decididos a partir a pé para a Alemanha, e Angela Merkel, sozinha, decidiu manter aberta a fronteira, levando a que eventualmente 1 milhão e 200 mil refugiados fossem admitidos em território alemão.

O texto do Acordo de Coalizão foi acertado entre os três partidos há mais de um mês, e anunciado ao público em 7 de fevereiro, mas tinha que ser submetido à militância do partido socialdemocrata SPD, que só o referendou finalmente em 4 de março, por uma maioria de dois terços, depois de semanas de intenso debate público.  Antes dessa aprovação final, a oposição ao acordo escolheu como foco dos ataques o parceiro socialdemocrata, na expectativa de que pudessem influenciar os membros do SPD a rejeitar o acordo. Algumas forças políticas preferiam um governo de minoria, com mais debate no Parlamento.

Ultranacionalistas, que agora se autodenominam “oposição genuína”, atacaram os itens do acordo (então formalmente um rascunho) relativos à União Europeia, em particular o que se refere ao reforço da cooperação franco-alemã e a intenção expressa de, na medida do possível, desenvolver posições comuns com a França para todas as questões importantes da política europeia e internacional, e avançar naquelas áreas em que a União Europeia de 27 membros não tem possibilidade de negociação. Para os ultranacionalistas essa parte era responsabilidade de Martin Schultz e dos socialdemocratas que, ao falar em uma Europa mais democrática, mais social e com maior responsabilidade global, na verdade estariam apenas prometendo entregar de graça, no exterior, uma parte do bem-estar que os alemães haviam criado com seu trabalho, usando os impostos alemães em favor de países que acumulam dívidas.

Essa posição anti-Europa não é nova, mas neste momento é um indicativo de futuros embates no Parlamento e aparece como uma defesa do padrão de vida dos próprios alemães que estaria ameaçado pela excessiva generosidade dos socialdemocratas. A reação dos liberais do FDP, ainda antes da aprovação final do acordo tripartite, também colocou o foco no aumento de gastos. Rapidamente fizeram uma estimativa do que implicavam para o orçamento público da Alemanha os vários itens do acordo, e chegaram a um déficit de 20 bilhões de euros no orçamento, mesmo com arrecadação em alta.

No fim das contas os liberais do FDP fizeram coro com os nacionalistas do AfD contra o aumento de contribuições da Alemanha para o orçamento da Zona do Euro (prometido já na p.9 do Acordo) e em geral contra o aumento de gastos relacionados com responsabilidades globais da Europa. Está anunciado, por exemplo, mais apoio à ONU, ajuda para um Plano Marshall europeu para a África, e a manutenção do princípio da solidariedade mútua para o orçamento da União Europeia, explicitamente garantindo a manutenção dos chamados Fundos Estruturais da União Europeia. Em geral, consideradas as novas posições mais isolacionistas dos Estados Unidos e a ascensão da China, analistas registraram a frase: “A Europa precisa mais que até agora tomar seu destino em suas próprias mãos.” Foi a deixa para artigos sobre porque a Alemanha precisa gastar mais em defesa, gasto que segundo os socialdemocratas tem que ser paritário com gastos de ajuda ao desenvolvimento, mesmo admitindo que a Alemanha deve tornar-se menos dependente dos Estados Unidos no assunto defesa.

Os liberais do FDP resumiram o acordo como uma capitulação de Angela Merkel, que, para permanecer chanceler, teria feito tantas concessões ao parceiro socialdemocrata que um rombo no orçamento será inevitável. O tabloide Bild chegou a ter a manchete “Merkel entrega o governo ao SPD”. O acordo cobre miríade de questões que pouco interessam ao leitor no Brasil (até detalhes como etiquetas para alimentos vegetarianos e veganos aparecem, p.90, ou o pagamento do tempo de percurso de cuidadores de idosos e doentes, p. 96). Mas já que a responsabilidade fiscal é agora campanha da oposição alemã, vale o registro de que o acordo inclui novas medidas contra fraude e sonegação fiscal, explicitadas no Capítulo I, sobre Europa, e não no detalhado Capítulo VI, sobre a economia, “Resultados econômicos para o bem-estar no futuro”.

Vale lembrar que tampouco é nova a observação de que Merkel abraçou posições do SPD ao ponto de descaracterizá-lo: adotou, por exemplo, o salário mínimo, redução da idade de aposentadoria para certas categorias, cotas para mulheres em diretorias de empresas, a desativação das usinas atômicas. Agora analistas usando algoritmos atribuíram 70% do conteúdo do acordo ao SPD e só 30% ao CDU/CSU. Exagero ou não, talvez seja exatamente por isso que o acordo inclui promessa de maior discussão aberta sobre seus componentes, a sabatina da chanceler pelo Parlamento três vezes ao ano, e uma avaliação do cumprimento das medidas daqui a dois anos. Espera-se reforçar a democracia esclarecendo as diferenças.

Aparentemente a discussão sobre imigração e refugiados, durante as negociações do acordo, não foi tão intensa quanto antes das eleições. Os três partidos da coalizão já haviam convergido para limites à imigração, que vinham sendo exigidos pelo CSU, o partido mais a direita que também perdeu votos para o AfD. “Queremos combater as causas do êxodo, e não os refugiados”: para isso são propostas várias medidas de cooperação internacional. Mas os movimentos migratórios serão controlados e limitados “levando em conta a capacidade de integração da comunidade”… “para que não se repita uma situação como 2015” (p.103). O total da entrada de imigrantes, respeitado o direito de asilo da Convenção de Genebra para Refugiados, não ultrapassará a faixa de 180.000/220.000 por ano. Busca-se uma reforma dos procedimentos de Dublin sobre livre movimentação de pessoas, reforço do combate europeu contra transportadores criminosos (que incentivam viagens perigosas de menores desacompanhados), maior cooperação com as organizações internacionais como UNHCR e IOM e com os países de origem e trânsito dos refugiados. As entradas por conta de reunificação familiar ficam limitadas a 1000 pessoas por mês (nos termos de uma Lei de Residência que poderá ser reformulada no Parlamento). Pretende-se tornar mais rápido e eficiente o exame dos pedidos de asilo e a repatriação dos que não se qualificam como refugiados ou para permanência legal. Há muitas páginas com detalhes sobre como integrar os que chegaram, em especial relativos a moradia, educação, e distribuição pelos municípios. E um renovado apelo para uma distribuição mais justa dos esforços de acolhida entre os diferentes países.

Em geral, o acordo foi bem recebido como uma promessa de estabilidade depois de um longo período de incerteza. Mas há ceticismo sobre se esta será a melhor forma de enfrentar o encolhimento do centro e o crescimento dos extremos que as eleições de setembro mostraram na Alemanha, e que está evidente em toda a Europa desde Brexit. Timothy Garton Ash, cujas credenciais de democrata são antigas e inquestionáveis, escreveu (The Guardian, 23 de fevereiro de 2018): “Imaginem um cenário levemente pessimista porém inteiramente plausível. A economia alemã enfraquece dentro de alguns anos, e ao mesmo tempo os arranjos da Zona do Euro implementados pela grande coalizão  – atendendo Emmanuel Macron por insistência dos socialdemocratas – têm o resultado de que a Alemanha se vê obrigada a fazer transferências financeiras a um estado em crise no sul da Europa. Imagine a reação entre os eleitores alemães descontentes. Vinte por cento para o AfD?” (tradução minha) A despeito da estabilidade de curto prazo que traz GROKO, a Grande Coalizão, Garton Ash não está sozinho na sua aposta de que seria melhor no médio prazo um governo de minoria que colocasse em debate os motivos da insatisfação que levou a que o centro ficasse menor e os extremos se expandissem. De qualquer modo esse debate já está em andamento.

[1] As siglas partidárias relevantes são: cristão-democratas do CDU (Christlich Demokratische Union) que têm uma aliança antiga com um partido cristão-democrata menor e de posições mais à direita no espectro político, cuja base está na Bavária, o CSU (Christlich Soziale Union); esses dois partidos formam o que é em geral chamado a União, CDU/CSU.  SPD ((Sozialdemocratische Partei Deutschlands) é o partido social-democrata. AfD (Alternative für Deutschland) é o partido ultra-nacionalista e anti-imigrantes, que tem atacado todo o projeto da União Europeia como um desperdício dos impostos pagos pelos alemães. FDP (Freie Demokratische Partei) é o partido dos liberais em assuntos econômicos.