Sérgio C. Buarque

Uma possível história sobre a origem do universo.

Uma possível história sobre a origem do universo.

 

Deus flutuava no meio do nada, entediado com a eternidade inútil e vazia, padecendo de uma grande solidão. Para passar o tempo, se movia para os lados, criava sons divinos ou soprava o ar provocando tempestades e agitando o espaço; quebrando a apatia, levava a vida como podia e cabia a um ser superior e perfeito.

 

Em certo momento desta madorna divina, Deus juntou nas mãos uma parte do nada e, como quem não quer nada, cuspiu entre os dedos formando uma pequena massa pastosa; enquanto olhava sem entusiasmo para o infinito, brincava com a pasta entre os dedos. Apertando, foi criando uma minúscula esfera que, aos poucos, se fazia sólida e muito dura. Deus abriu a mão e observou, com admiração, aquele objeto raro que tinha acabado de criar; apertou mais um pouco, com tanta força que a esfera quase desapareceu.

 

De repente, uma explosão. A poderosa pressão empurra e abre a mão de Deus, logo projetando pedaços para todos os lados em uma velocidade excessiva e com uma força incontrolável. Assustado, Deus recuou e observou o movimento de matéria em expansão provocada pela explosão da pequena esfera que tinha formado e apertado na mão, junção de nada acumulado com o catalisador do seu divino cuspe.

 

Do susto, o senhor dos tempos passou à admiração, quase alegria, com a quebra daquela insuportável e eterna rotina. A beleza de luz e cor que se expandia criando o espaço, explosões de múltiplos pedaços de matéria em choque e formando novas e estranhas formas, tudo era uma novidade que enchia Deus de grande euforia. Finalmente novidades seguidas e encadeadas, surpresas e inesperados movimentos. Ele sentia que tinha criado um universo. Mesmo que dissessem que foi meio sem querer, quase um acidente, foi o seu poderoso cuspe sobre o nada e a sua pressão sobre o resultado deste amálgama que deu origem a tudo aquilo, aquele majestosa movimentação de luzes, cores e pedaços de matéria em colisão.

 

Durante muito tempo, orgulhoso e excitado, Deus observava a contínua agitação do universo e as novidades que geravam no espaço, quebrando a monotonia e acabando com o vazio que agora se enchia de grandes e crescentes massas. Algumas poucas vezes, o criador deste universo brincava com as massas flutuantes dando uns pequenos petelecos que alteravam a trajetória e, provocando novas colisões, formavam agrupamentos diferentes em forma e tamanho; e também em cores, o que enchia de emoção o poderoso criador. Deslumbrado com o resultado da sua brincadeira, Deus ainda tentou repetir a criação daquele fenômeno majestoso. Sem sucesso. Já não era mais possível juntar os mesmos elementos que originaram a massa adensada pela sua grossa e criativa saliva.

 

Muitos e muitos milhares de momentos ocorreram e agora Deus não sofria do mesmo tédio. Mesmo ainda solitário no imenso universo que criara e que se movia diante dos seus olhos, admirava cada novidade e algumas surpreendentes alterações dos corpos celestes em intenso movimento. O senhor do espaço vivia alegre e animado naquela imensidão brilhante que se expandia em alta velocidade e que se agitava como se tivesse vida. Vida? Não, não parecia ter vontade, como o próprio Deus! Apenas se movia e se chocava como tendo um destino fixo e inevitável, embora com seguidas alterações de forma e de cor, de tamanho e de brilho. Não tinha escolha aquele universo de múltiplas massas e partículas que apenas seguiam o impulso original e os resultados dos impactos e de novos impulsos e pressões da matéria.

 

Passados milhões de momentos, Deus já não encontra emoção naquele universo quase previsível; várias vezes tentou recriar algo do nada com suas mãos poderosas e sua saliva criativa. Fracassava e se irritava. Percorria o olhar pelo espaço na busca de novas formas e cores, descobrindo a beleza contida nas imperfeições dos bilhões de corpos em movimento e choques. Em certo momento deste olhar panorâmico, Deus percebeu algo diferente em um pequeno bloco de matéria perdido no meio do nada e cercado de muitos outros corpos celestes. “Estranho!”, pensou Ele, se aproximando e observando algumas figuras que se deslocavam sobre a base da pequena esfera; corpos alongados e com saliências, bem diferentes dos grandes blocos de matéria, quase sempre arredondados.

 

Deus experimentou uma nova inquietação e uma enorme curiosidade diante daquelas figuras que, ao contrário de todo o universo, não seguiam um padrão; algumas estavam imóveis enquanto outras se deslocavam em diferentes direções e mesmo alternando o caminho; se tocavam sem violência e podiam mesmo ficar coladas por algum momento. “Não obedecem a nenhuma regra, não têm rota, unh!”, pensou Deus. Daquele momento em diante, Deus perdeu o interesse pelo infinito universo e dedicou toda sua atenção àquele bloco de matéria repleto desses pequenos seres que, apesar de insignificantes no imenso cosmo, se distinguiam por um simples detalhe: pareciam decidir seus movimentos e sua direção. “Parecem ter vontade!”, pensou Ele.

 

E ao longo de muitas observações, o Senhor ainda acumulou várias e seguidas surpresas na medida em que percebia os comportamentos das minúsculas figuras no pequenino corpo celeste. Aos poucos foi percebendo que nunca estavam sós, eram muitos seres semelhantes que formavam grupos, se comunicavam e se tocavam; Deus invejou aquelas ridículas figuras que, no entanto, não tinham a mesma solidão que o perseguia desde sempre.

 

Entre a alegria diante das surpresas que este grupo de pequenos seres proporcionava, Deus sentiu uma melancolia na imensidão em que vivia, solitário e vazio. Teve o impulso de esmagar com sua força os pequenos seres que denunciavam a sua infinita solidão no universo. Condescendente e autocomplacente, lembrou que essas figuras eram também parte da sua criação, ocupando e vivendo naquele corpo celeste formado do seu modesto empreendimento criativo. “Ao gerar a grande explosão criativa”, pensou Deus, “fiz tudo isso. Mas agora, parece que a minha criação vive melhor que o seu criador, ainda perdido nessa infinita solidão”, lamentou resignado.

 

Deus se aproximou daquelas estranhas figuras; não o viam e ignoravam sua presença e superioridade. Pegou uma delas com as mãos e enquanto examinava a textura e a forma, tentando entender a criatura, sentiu a agitação dela entre seus dedos com um movimento aleatório mas cadenciado como que buscando se soltar da pressão divina. Percebeu que a figura tinha uma forma comprida e irregular e que seu corpo era móvel e instável, bem diferente dos grandes blocos de matéria que se espalham no espaço. “Mais do que forma”, refletiu Deus, “esta figura tem alguma coisa própria, não sei bem o que, algo como uma expressão, é isso, ela tem expressão, vou chamar assim a alteração da forma indicando algo mais que apenas matéria”.

 

Intrigado com a incomum criatura, Deus continuou observando e acompanhando por muitos momentos mais os seus movimentos e as suas atitudes; experimentou dar um sopro sobre um grupo que se movia no terreno bruto e se divertiu quando todos caíram e tentaram se levantar, acelerando seus movimentos na tentativa de fugir; provavelmente nem sabiam de que fugiam porque não pareciam ver Deus na sua imensidão e poder soberano no espaço. Não viam nem ouviam a presença de Deus, mas sentiam suas manifestações, principalmente o sopro que os jogou no solo duro e provocou uma grande corrida.

 

De formas e tamanhos diferentes, aquelas figuras conviviam na superfície do corpo celeste, porém, em alguns momentos se chocavam em movimentos bruscos que provocavam destruição. Nestes movimentos se assemelhavam aos grandes blocos de matéria nos choques explosivos no universo. No entanto, concluía Deus, esta era a única semelhança. No mais, eram elementos totalmente diversos e principalmente, pareciam ter vontade, esta qualidade exclusiva do Deus, ser superior e criador de toda aquela matéria universal. “Como podiam ter vontade?”, se perguntava Deus, “decidir e escolher o movimentos e as atitudes?” Duvidava. Logo, quando se convencia desta qualidade, lembrava que eram sua criação e que, portanto, eram devedores do seu poder criador. “Se eu não tivesse provocado aquela explosão primordial, estas figuras não existiriam”, repetia Deus para si mesmo cada vez que se emocionava com as manifestações peculiares de criaturas que pareciam também criar.

 

Longas e pacientes observações permitiram a Ele acompanhar a criação de novas criaturas que saiam de dentro das mesmas e que, incrível, tinham características semelhantes às figuras alongadas com vontade. “Além de vontade”, como Eu mesmo, pensou Deus, “elas também podem criar e, estranhamente, criam seres iguais que saem deles e não de uma simples explosão”. Deus estava agora humilhado por uns miseráveis e frágeis seres, que não suportam um sopro, mas são capazes de uma criação mais difícil do que Ele mesmo realizara. “Como se fossem Deuses”, pensou Ele com uma incontida raiva. Na verdade, não queria completar o assustador pensamento de que aquelas figuras feias e indefesas pudessem ser mais criativas que o próprio Deus.

 

“Mas eles só existem porque Eu criei tudo isso que está em torno deles e mesmo este corpo sobre o qual vivem e caminham”. Era este o pensamento com o qual Deus se defendia daquele sentimento de inferioridade diante da insignificância das figuras alongadas. Não por muito tempo. Cada vez que confirmava que a criatura criava e que o fazia como uma separação de seu próprio corpo, novas criaturas que se expandiam, elas mesmas, ganhando altura e forma; cada vez que percebia a admirava este poder que era negado a Ele, explodia da divina ira, provocando tormentas e destruições que derrubavam as frágeis e assustadas figuras.

 

As milhares de figuras aterrorizadas com as tormentas não viam Deus. Apenas olhavam para o alto como se suspeitassem da sua poderosa força e da fúria que estava manifestando com a destruição. Mediam a presença de Deus pelos sinais que chegavam com as revoltas do corpo celeste, jogando rios de fogo e larva, abrindo a superfície em profundos abismos, diante dos quais não tinham defesa.

 

Quando a natureza serenou daquela explosão de revolta divina, de todas as partes do corpo celeste, as figuras se ajoelharam e olharam para o alto numa postura respeitosa e humilde como se quisessem falar com Deus, gestos e movimentos que indicavam a compreensão da sua inferioridade diante da vontade de alguma coisa que, sem entender, parecia superior a eles. Naquele momento, Deus percebeu que tinha o poder de destruir todos os objetos e corpos no universo, mais ainda aquelas pequenas figuras perdidas em um dos menores blocos de matéria. Mas sentiu uma profunda tristeza pela convicção de que nunca teria condições de criar um ser igual a si mesmo, como só aqueles minúsculos seres faziam em larga escala e com a maior facilidade (e quanta alegria!), sem recorrer a explosões ou destruições. Mesmo assim, melancólico, Deus se emocionou com as novidades e surpresas do universo e com a força criativa dos muitos e diferentes corpos que gerou na sua brincadeira original. “Que belo cuspe”, pensou Deus sorrindo de Si mesmo.