Sei que você é dura em seus julgamentos e fosse eu me entristecer com eles, já nem respiraria. Isso porque tudo que ouço de você é reprovação. Pontuo baixo em todos os quesitos, se pensarmos bem. Da bateria à comissão de frente, para usar o jargão da época. Ter-me visto de perto, Veridiana, a fez enxergar muito além de minha anormalidade rasteira. Ter-me visto de tão perto, foi como se você tivesse entreaberto a porta do inferno onde vagam almas sanguinárias e se descortinam cenas que fariam arrepiar o próprio Lúcifer. Pelo menos é o que parece. Não a condeno, talvez eu seja mesmo esse espírito sem eira nem beira, esse sociopata egoísta e amargo que você enxerga e propaga. Já não me defendo, sei que é perder tempo e, no fundo, lamento dizer, pouco se me dá. Eu queria, contudo, que você reunisse o pouco de boa-vontade que remanesce em seu espírito com respeito a mim – o que sobrou, nem que seja aquela cota de desprezo curioso que a gente devota a bêbados clarividentes -, e entendesse alguns pontos que, nesses últimos dois dias, e à custa de pensar, tanto me afligiram. De resto, como tudo o que acontece na cidade do Recife. Parece que aqui as contrariedades me assaltam com mais força. Se as alegrias se evaporaram há muito tempo, os dissabores contemporâneos são arrebatadores. E não é mera impressão. Isso dito, Veridiana, faça um esforço e veja se entende como eu encaro a questão do emprego de nosso amigo comum:
a) Como eu posso conseguir um trabalho para Genésio se já não conheço ninguém por aqui? Se é que conheci um dia depois de adulto, é bom que se diga. Contextualize, Veridiana. A situação irrespirável de minha adolescência e o fascínio pelo mundo aberto me fizeram concentrar as forças para sair de Pernambuco pela temporada mais longa que pudesse. Eu queria distância de pai, mãe, irmãos, milicos e de uma trinca de professores de matemática que misturavam números com letras sem explicar que aqueles joguinhos se prestavam a alguma coisa que não fosse mero exercício do sadismo. Apesar de gostar muito da cidade – dos desconhecidos, praças, coretos abandonados, praias e botecos -, tudo isso se acabou. Um belo dia fiquei dois anos sem voltar aqui. Quando apareci, a cidade era outra e eu também. Revirando os escombros do afeto, só achei a Livro 7. Não sei como Tarcísio aguentava ver minha cara ali todo santo dia;
b) Quem conheço aqui, portanto? Começo com duas ex-mulheres que me olham como se eu lhes fosse devedor de um ativo intangível. Talvez até tenham razão. Logo, com elas eu não conto sequer para o enterro. Tenho ainda dois amigos do colégio de padres, e mais dois da família. Fora isso, não restou ninguém. São amizades por certo fortes e bem ancoradas. Mas elas não me autorizam a transpor certos limites e não venha dizer que foram os paranaenses que me ensinaram a tomar distância. Sempre fui mais para reservado do que para extrovertido. Nasci assim. Ademais, nunca esqueça que eu sou tido e havido como uma pessoa à deriva, um cometa fugaz que pinta no céu de vez em quando e logo some. As pessoas não gostam de seus dessemelhantes a ponto de lhes franquear certas portas;
c) E uma dessas portas atende pelo nome de pedido de emprego. É tarefa inglória tentá-lo, mesmo que eu queira muito ajudar Genésio, um companheiro de geração. Ocorre que o emprego é a cláusula pétrea do convívio pernambucano. Morando em Curitiba há tantas décadas, sempre me surpreendo quando vejo o quanto ele aqui é escasso, desestruturado, suado, mal desenhado e, não raro, desinteressante. Não obstante, é cobiçadíssimo. Estabelece-se em torno dele um vínculo mais sólido do que a paternidade. Assim, o afilhado, mesmo de longo aviso prévio, não moverá uma palha para sair do patíbulo. Dirá, se tanto, que reza pelo padrinho. Pois é função do padrinho sacar um coelho da cartola. De vez em quando ele manda uma mensagem: “Não quero importuná-lo, padrinho, mas a partir da próxima semana estou desempregado, viu? Alguma novidade?”. Ao que ele retruca: “Tenha um pouco de paciência”. O afilhado vai tomar uma cerveja num “bota-fora” e o padrinho engole um Frontal sem água. Não digo que esse seja o caso de Genésio. Mas são milhões os pequenos pactos em operação nesses termos em centenas de rincões do Brasil. Recife é ótima praça para quem ousou – e daqui da mesa do restaurante vejo um analfabeto que virou ícone de coluna social -, ou para quem empreendeu. E, nesse caso, você é um bom exemplo, Veridiana, uma mulher que forjou caminho próprio a partir de uma militância social que o Brasil aplaude. Já te disse: você é a única pessoa que eu conheço que pode ir bater na Escandinávia para receber um Nobel. Aliás, já passa da hora de lhe ser conferido o título de cidadã pernambucana;
d) Você, então, me ordena: peça à sua namorada que empregue Genésio. Ela não tem uma empresinha no sertão? Tem e já pedi. Disse até que ele topava ir morar lá e se reinventar à beira do rio. Mas Amelinha não é desse mundo. Ela é uma pessoa que vive emparedada numa dimensão mal ventilada. Num mundo onde não há sorrisos, não há irreverência, não há alegria. Imagine que ela ainda vê em mim uma fonte de cor e novidades. Que absurdo, não é? Imagino que você esteja sorrindo agora e pensando: pobre dessa mulher. Parou? Então, continuo. O mundo dela é pautado por evangélicos sisudos – desses antigos, sérios, não os golpistas da televisão – onde sequer os jovens falam o que pensam. É um mundo solene onde ela ocupa um espaço dito técnico – muito nordestino isso; é para distinguir do relacional, aqui acoimado de político – que a aliena da esfera real. Assim, ela não sabe de quase nada fora do âmbito dos prazos de entrega. Nunca indicou uma servente de café; nada entende de jogos de poder e, se instada a pensar a respeito, é acometida de vômito e enxaqueca. Daí talvez ter desenvolvido hábitos pouco ortodoxos;
e) De novo sobre Amelinha, e já concluo pois sei que falar sobre ela é uma afronta. Pois bem, as coisas mais simples viram pesadelo. Talvez devido à aversão pela palavra, ela não sabe articulá-las de forma concatenada e, muito menos, convincente. No terreno das subjetividades – e das coisas que só sejam comprováveis ao longo do tempo -, ela não saberia defender uma trincheira por dois minutos. Fazer o que um amigo togado chama de “sustentação oral”. É mais verossímil que brigue com o interlocutor e se feche no universo da pintura – onde é genial – e da maconha, que consome a intervalos regulares de segunda a sexta. Os fatos, ela sabe, terminarão por lhe dar razão – quando todo mundo já tiver esquecido a polêmica;
f) Isso dito, apesar de eu já ter pedido vinte vezes que ela arranjasse um trabalho para o valioso José Genésio B., as brumas do fumo e a inabilidade de lidar com pautas abstratas a paralisam. O cérebro manda um comando que a faz esquecer o compromisso. Faz isso com uma penca de gente, não é só com ele, logo comigo. Falo até de casos bem fáceis e que seriam do maior interesse profissional dela arbitrar. Ela não organizou uma alternativa sequer para o carpinteiro italiano – bom de serviço – e que depende de um vínculo empregatício para pleitear um visto de residência nesse depauperado Brasil. Um carpinteiro de Firenze, imagine que tesouro vivo. Um artesão da terra de da Vinci. Ela diz que vai ver e nunca mais fala no assunto. O que posso fazer? Por uma estranha razão, acho feminina essa displicência. E gosto dela desse jeitinho mesmo, a antítese da mulher-trator. Por que será?;
g) Se ela faz isso com um jovem talento da área dela, o que não dizer de um amigo indicado por mim, genericamente destinado a uma posição dita administrativa? É o fim do mundo. Não esqueça que Amelinha tem uma irmã e um irmão na sociedade. Para eles, como para você, eu sou o alienígena. Eu sou o dissidente; o dente do tubarão; a mosca da sopa; o neocuritibano; o forasteiro; o homem do mundo; o outro; a ameaça; o estranho que publica disparates; o anti-patrimônio; o não-comerciante e o não-comercial; o inimigo do Facebook; o irreverente; o mentor da subversão; a ameaça viva; o pato de Ibsen. Tirando a última, todas as expressões são deles, segundo ela me conta quando fuma um daqueles cigarros. Ou seriam dela?;
h) Mais do que isso tudo, eu sou o lobo solitário que acabou com a vida de mulheres jovens, simulacros de princesas tropicais, e que almejavam construir um futuro estruturado. Eu sou a pedra não-angular; a treva; a escuridão abissal; o esquisitão que vive só; o sem propriedades; o sem automóvel; o sem apartamento; o sem piedade; o playboy intelectual; o manipulador; o amigo de judeus; o ucraniano, o russo e o polaco; a eminência parda que gosta de frio. Como, portanto, acolher um indicado do sujeito que suscita mais indagações sinistras do que respostas tranquilizadoras? Portanto, não será naquela empresa debruçada sobre o rio que eu vou colocá-lo. Se Amelinha tentou, e acredito que tenha tentado, já recuou diante do primeiro entrave. O pior é que eu a entendo, coitada. Ela é rabo de elefante; louvo você que é cabeça de iguana;
i) Tentou na Secretaria, você perguntará. Não tenho eu tanto prestígio junto ao diretor a ponto de ajudá-lo a desenhar o futuro e vez por outra vir aqui ao estado vizinho por um par de dias? É verdade. Mas como acontece nessas afiliadas à pequenina capital – menor do que minha Curitiba de adoção -, sempre chego tarde. Tampouco tenho carteira partidária. Ademais, essas coisas comigo não funcionam. Até em liquidação de sapato, quando chego, acabaram de vender o último par de número 45. Se tem queima de estoque, não tem camisa com meu colarinho – só a preço cheio. Até nos puteiros, quando os frequentava, constatava com desalento que um mais esperto tinha acabado de fisgar a última bonitinha e eu ficava dançando com uma balofa de meu naipe que se apiedava de minha pouca sorte. “Amanhã chegue mais cedo”, sussurrava, acomodando o dinheiro do táxi dentro do sutiã;
j) Sei que essa resposta abusada em nada acrescentará à imagem que você tem de mim. Pelo contrário, só somará a esse ódio iracundo que, enquanto eu viver, permanecerá como um dos tantos mistérios que não consegui decifrar. Sei, ademais, que tenho mesmo essa capacidade de atrair ciúmes gratuitos e ressentimentos onde, muitas vezes, só tentei plantar uma árvore boa. Isso dito, saiba que você me cansa, Veridiana.
Por fim, sei que é de seu feitio enquadrar as pessoas com palavras duras e uma tremenda falta de cuidados com a linguagem. Quando era jovem e estonteantemente bela – como dizem os veteranos que era quando chegou do norte com dois filhos pequenos e os mais belos traços indígenas dos igarapés -, os homens baixavam a cabeça resignados. Então você os tomava por covardes e os destratava com rigor. Comigo isso nunca funcionou. Aliás, fosse você um homem, a vida talvez tivesse pegado mais pesado com suas diatribes que tanto contrastam com o conjunto de sua obra. Não sendo, elas se incorporaram a seu patrimônio imaterial e à sua “persona”. Pois bem, não se preocupe mais em gastar comigo seus maus bofes. Se não foram efetivos ontem, não serão nem hoje nem amanhã. Isso dito, passe bem e peça a Genésio – que vive trocando de celular – que me ligue. Vá ver que a situação não é metade tão desesperadora quanto você pinta. Você talvez só quisesse mesmo um pretexto para falar comigo, me enxovalhar e reforçar seu desprezo. Hum, então era isso? Precisei chegar à última linha dessa carta para entender tudo. Estás precisando é de uma neta, Veridiana, isso sim. E de uma aposentadoria merecida em sua linda terra onde dividirás o trono com a esplendorosa Gabi Amarantos. Não se preocupe, o comitê do Nobel saberá te localizar quando a hora soar. Mario
“Revirando os escombros do afeto” por tudo que soa verdadeiro, digo: aí está o perfil de um homem existindo no campo do “eu sou” e não no do “será”. Sem humor não se respira! Lindo texto!
Muito bom. Quem sabe o Fernando poderia se dedicar um pouco menos ao comércio internacional e um pouco mais à literatura. Não sei o quanto a globalização perderia com isso, mas a literatura ganharia um bom escritor.
Homero,
Obrigado.
Desconfio que vou ficar a meio caminho de ambos. Mas suas palavras calam fundo, sendo você a pessoa que é.
Uma conclusão e uma confidência: desconfio que sem a soma das duas dimensões – o comércio internacional, logo a experiência diária da alteridade; e o exercício de escrever para não morrer inerte -, eu atolaria no limbo. É à base desse atrito que atravesso as horas, os dias, as semanas etc. Te pergunto: e aquele café que marcamos em Porto Alegre e que nunca tomamos? O do Recife é tão bom quanto.
Pensei nisso aqui em Trier, Alemanha, onde cheguei no começo da noite varado de cansaço, mas com sede e doido por um papo.
Um abraço,
Fernando
Gostei do texto, muito bem “livel.”. Parei num parágrafo e terminei ao som de Antônico, pelo autor: http://letras.mus.br/ismael-silva/389201. Quem reler assim, penso que vai gostar.
Nossa senhora! acabou com a Veridiana! Não queria ser a pobre da índia… O que prova – não é mesmo? – que é muito bem escrito. Um feito!