A história bíblica é de adultério e homicídio. Em Jerusalém, depois de mandar cercar a Rabá, Davi levantou-se do leito à hora da tarde e, andando pelo palácio da casa real, viu uma moça nuinha no banho (aqui eu peço emprestado de Bandeira): alumbrou-se. Era Batsebá, filha de Eliã, mulher de Urias, o heteu, que servia às forças expedidas ao cerco de Rabá. Mandou-lhe então, à bela, mensageiros, e a trouxe ao seu leito e com ela se deitou. Batsebá concebeu um filho de Davi que chamou a Urias da frente de batalha para ver a mulher e descer a sua casa, pretendendo assim escapar da paternidade (por óbvio, não sonhavam com exames de DNA naquela época). Urias não quis deitar-se com a mulher e sim, voltar à refrega, por amor a Davi. O rei, então, despachou-lhe outra vez ao front, mas com uma carta para Joabe, orientando expor Urias a batalhas valentes, para que ele morresse. E assim foi. Depois, desolado e arrependido, Davi implorou perdão ao Senhor, mas cumpriu a penitência de ver morto o filho que dele Batsebá concebera. Pois bem. Levado pela mão amiga de João Recena, meu companheiro de viagem profissional, à hora morta de trabalho, que também era a nona hora do dia frio de Amsterdã, a dizer, madrugada para mim, que sou notívago, insone de carteirinha, mas, ainda assim, não podendo resistir à proposta da visita ao Rijks Museum para a exposição denominada Late Rembrandt, os quadros dos últimos anos do artista. De todas as obras maravilhosas do pintor, detive-me exatamente em Bathsheba with King David´s Letter (Batsebá com a carta do rei Davi), o preciso instante em que ela recebia a mensagem e deveria decidir deitar-se ou não com o rei, manter os compromissos com Urias ou ceder ao chamado real. Como precisava o catálogo, habitualmente, a história é representada com o rei, o mensageiro e Batsebá chocada, mas Rembrandt preferiu concentrar-se no conflito interior da mulher. É o olhar dela que domina a pintura. Rembrandt consegue transmitir o mistério dos sentimentos interiores sem revelá-los, deixando-me, a mim, pobre homem aflito com a madrugada fria, uma tarefa a que, decididamente, me propus. Estava ela tentada, mas com sentimento de culpa? Ou simplesmente enlevada pelo convite, mas fiel a Urias? Perpassou-me o sentimento de resignação: doce encanto, o da mulher que se disputa por dois homens, e sabe que nenhum deles resolverá nela o profundo dilema do amor. E fica resignada, porque ela própria não consegue entendê-lo. Gritei-lhe: Batsebá, e ela me olhou com o mesmo abrangente olhar da tela, sem alteração. Resignei-me eu, então: a beleza da pintura estava no devaneio do próprio artista, que captara o mistério da mulher e o deixava para a eternidade. Pouco importa que, depois, Batsebá tenha desposado Davi e concebido outros filhos, um dos quais Salomão. Toda a glória de Salomão é nada diante da beleza do olhar de Batsebá na tela de Rembrandt.
A Batsebá de Rembrandt – João Humberto Martorelli

João Humberto,
O que muitos tentam, você consegue. Uma pérola, seu texto. Também notívago, faz uma hora que estou mergulhado no olhar dela e, em plena madrugada, namoro a isca que João Rego pendurou no anzol.
Abraço,
Fernando
Prezado Martorelli: O mundo é grande mesmo, e não se sabe nem o que vai no mundo que está do lado da gente. Essa crônica, só, vale uma viagem, vale acordar de madrugada, no frio de Amsterdam. Um abraço, João Recena