Fernando Dourado

Estação Censier-Daubenton, Paris.

Há pelo menos dois inconvenientes quando se caminha com aquela máscara acoplada ao nariz e boca. Pois sendo ela de um não-tecido meio ordinário, que trouxe do Brasil em uma grande caixa de cem unidades, ela provoca uma coceirinha nas narinas que nos faz querer a todo momento esfregá-las. Ora, isso é tudo o que não pode acontecer num momento desses. Mesmo porque a vida europeia não prescinde de moedinhas. Ninguém arredonda um preço ou um troco de forma a diminuir a troca de metal. É cultural, seria quase sacrílego, pois os preços embutem justiça e respeito ao trabalho. Mas não há agente transmissor do vírus mais potente do que elas. Daí que é melhor se virar de outra forma para debelar a irritação das vibrissas. O segundo incômodo é que a respiração fica curta. E tudo o que um asmático não pode se dar ao luxo de ter hoje é uma síndrome respiratória aguda. Mesmo com o desafogamento das unidades de ventilação pulmonar, chegar a um hospital hoje é ir à ante-sala do inferno.

Era em tudo isso e mais alguma coisa que eu pensava enquanto caminhava na rue Monge, em direção aos Gobelins. A certa altura, sentindo a respiração curta, mesmo porque nesses tempos de guerra convém andar a um passo determinado, resolvi parar na escada do metrô Censier-Daubenton, uma estação de que até pouco tempo não tinha qualquer referência, contrariamente às suas vizinhas de linha em ambas as direções. Enquanto a respiração se normalizava, fiquei bom tempo em contemplação do mapa afixado bem à descida, e fui apontando com o dedo enluvado as dezenas de estações a que me liga uma pequena história, a crônica de uma recordação recente ou distante. Então me veio aquela sensação de que eu estava em qualquer lugar do mundo, menos Paris. Pois, por uma vez, aqueles pontinhos ali assinalados, plotados em linhas coloridas que já sinalizaram o atalho para as melhores fantasias, não levavam a lugar algum. Eram marcos ocos.

Foi então que me dei conta de que nunca, em nenhum momento que tenha estado em Paris nos últimos 47 anos, deixei de olhar com carinho para a estação rue du Bac. Não porque lá esteja a capela para onde vão os devotos da medalha milagrosa, senão porque foi a minha primeira. Era ali que saltava para chegar ao número 2 da rue de Saint-Simon, o endereço do primo Luciano, nos domínios de Madame Houssay, que me estendeu hospitalidade, ainda em 1973.  E pensar que tudo isso está tão perto daqui. E que a lei dura do confinamento nos deixa tão distantes. As demais estações ao longo do boulevard Saint-Germain também estão impregnadas de recordações. Em Solférino, vi as comemorações do Partido Socialista nas vitórias eleitorais. Odéon foi o epicentro de minha vida parisiense durante décadas e já nem falo de Saint-Germain-des-Prés, o marco zero das temporadas das últimas décadas. Na estação Censier-Daubenton, tudo isso de repente se diluía.

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Mas nem tudo se resume a contemplar com nostalgia os mapas do metrô, coisa que o parisiense de verdade raramente faz mesmo porque já o tem na cabeça em igual medida que orientais têm um ábaco. Para estes, basta visualizá-lo mentalmente e mexer as peças com o dedo indicador no ar, riscando o vento. Não, há mais do que isso. Sem atinar para que fazia exato um ano do incêndio de Notre Dame, desci por Jussieu com a sacola de compras e em dois tempos estava na île Saint-Louis, por muitos tido como o melhor endereço do mundo. Ali fui margeando o cais, vendo o Sena resplandecer de um azul acolhedor, agora levemente crispado pelo movimento buliçoso dos peixes que veem à superfície. E aí cheguei aos fundos da igreja, que fica a menos de 15 minutos de meu endereço. Como um imenso navio de volta ao estaleiro para reparos, lá estava ela. E então lembrei com saudades de mamãe que uma vez me disse que nunca passou tanto frio quanto naquele átrio. Que vontade de abraçá-la.

Fiz umas compras na região para ter a sacola minimamente pesada para descaracterizar uma flânerie, se interpelado. Com giz colorido, as crianças faziam grandes desenhos no asfalto que começa a esquentar. Fazendo um ziguezague pelas ruas, tirei uma foto do Tour d´Argent e imaginei a cave de 200 mil rótulos de vinhos de safra submetida a hibernação forçada, já há semanas. Na Mutualité, uma moradora de rua vestida como as babushkas do Leste escrevia num grande caderno com detida concentração, como se soubesse o que queria dizer e por quem gostaria de ser lida. De vez em quando, uma ambulância varava as ruas desertas com a sirene ligada, só para prevenir um eventual transeunte de que vai cortar o sinal vermelho. No íntimo, a sensação de estranhamento que me acometeu na véspera na estação Censier-Daubenton é similar. O cenário é o mesmo, as sendeiras estão intactas, mas a alma da cidade dorme em recolhimento forçado, como fachadas Potemkin.

No fundo do coração, quero acreditar que vou sobreviver a essa quadra embora tema que vá contar muitas baixas ao redor, quando o pesadelo chegar ao fim. Tudo em que não penso é nas rotas aéreas que já foram tão ou mais percorridas do que os deslocamentos no metrô de Paris. Quando vou voltar ao Brasil? A questão cardeal é que detestaria passar o verão na Europa, e enlouqueceria se tivesse que enfrentá-lo aqui. No verão, de elegante, Paris passa a enfeitada – como as mulheres bonitas que perdem a mão e ficam vulgares. Metáforas à parte, detesto calor. Quando tudo isso chegar ao fim, num universo transfigurado, pretendo renovar meus votos de fidelidade ao jornaleiro da place Monge e ao queijeiro da rue Mouffetard. Mais importante do que tudo, pretendo voltar à estação Censier-Daubenton, descer a escadaria e pegar um metrô em alguma direção. Só assim vou exorcizar a imagem da Paris desses dias, onde a felicidade se evaporou com a promessa de voltar. Só não se sabe quando.