O pato, ave aquática, caminha mal. Se o imaginamos manco, sua inabilidade em terra ainda se agrava. Não há melhor alegoria para o desenvolvimento econômico nos dias atuais, que é dissecado, desmistificado e condenado pelo Senador Cristovam Buarque, em seu livro mais recente: “O Erro do Sucesso”.
Acompanho o evoluir da luta e das ideias de Cristovam há mais de vinte anos. Cheguei até mesmo a criticá-las em ensaio publicado nos dias 14, 15, 22 e 23 de dezembro de 1994, no Jornal do Commercio (“A Modernidade e os seus Paladinos”). Hoje, curvo-me diante do refinamento, da abrangência e da disseminação internacional que suas formulações atingiram. Mas volto, atrevidamente, a comentá-las.
O nosso senador, político atípico e de intenso trabalho intelectual, é audacioso em suas análises da atualidade do seu país e do mundo. Não se inibe em teorizar sobre as deformações que o chamado desenvolvimento econômico vem causando à humanidade e à natureza, nem ao propor categorias novas e rótulos para expressá-las. Assim, denuncia a tendência de acentuação da desigualdade social como um processo de “apartação”, que, no limite, poderá levar a uma “dessemelhança” entre seres humanos, como se divididos entre espécies distintas: os ricos, “incluídos”, e os pobres, marginalizados. Estes, além de tudo, nem sequer compõem o “exército operário de reserva” de que falava Marx, pois já não podem ser mobilizados para a atividade industrial moderna, por falta de habilitações.
É interessante observar que entre os “incluídos” estão os operários industriais qualificados, cujo domínio da técnica lhes assegura o conforto da moradia salubre, dos eletrodomésticos, do automóvel, do seguro social, da escola para os filhos. A técnica, ao lado do capital, seria um novo instrumento de dominação das massas exploradas, configurando uma situação de “mais-valia triangular”. Uma irreverência para a ortodoxia marxista. (Lembro que, em curso de marxismo, nos anos 60, um colega levantou tese semelhante, e foi tachado de revisionista, isto é herético. Mas hoje outra é a realidade, e outras são as consciências).
OS ERROS DO SUCESSO
Os “erros do sucesso”, seja nos países ditos desenvolvidos, seja nos periféricos, são, portanto, em resumo, o aumento da desigualdade, o desemprego estrutural crescente, a degradação ambiental, o esgotamento dos recursos naturais do planeta, o crescimento da criminalidade e da violência, a instabilidade econômica. Todas essas deformidades são esmiuçadas por Cristovam, sob vários ângulos, e com riqueza de detalhes. E resta demonstrado como as duas alternativas de estruturação da sociedade e de condução da economia falharam em suas metas de prosperidade e de bem estar para todos os homens.
As economias de mercado falharam por não conseguirem eliminar as crises econômicas cíclicas, decorrentes, no fundo, da contradição entre forças produtivas e relações de produção, entre o caráter social da produção e a natureza privada da apropriação dos seus frutos (velhas categorias marxistas que não perderam sua validez explicativa). A isso acrescenta Cristovam, inteligentemente, uma nuance evolutiva não prevista por Marx: a atividade produtiva capitalista, no afã do lucro, não se limitou a atender às necessidades dos consumidores por bens essenciais a uma vida confortável, mas passou a fomentar novas necessidades, de todo o tipo de produtos suntuários e supérfluos, agravando a desigualdade e a predação da natureza. O mercado, embora insubstituível, é imperfeito, e nada tem de ético.
Quanto às economias de comando, fracassaram em sua escolha de centralizar o controle da produção, abolindo os sinais do mercado que a orientam e fazem evoluir, e assim gerando rigidez e imobilismo. Erraram também pela ineficiência inerente às grandes burocracias. E por último, e mais importante, na frustração do sonho de transformação dos homens, da criação de um “homem novo”, não movido pelo interesse material, mas pelos sentimentos de solidariedade e altruísmo. 70 anos de “socialismo real” foram suficientes para demonstrar que a sociedade alternativa com que tantos de nós sonharam não funciona.
E então, como ficamos? A indagação é de uma das últimas entrevistas de Celso Furtado, e ainda permanece. Onde está a porta de saída, para não mergulhar no abismo? As propostas são preliminares, imperfeitas, vagas, sobretudo no aspecto de sua viabilização, no plano internacional. Falemos um pouco sobre elas. Mas antes quero fazer um reparo pontual, que julgo importante, ao trabalho de Cristovam, mesmo não invalidando, no fundamental, as suas análises e proposições.
INCENTIVOS FISCAIS
No capítulo do seu livro sobre a “desorientação da economia”, ao contrapor os “incentivos sociais” aos incentivos fiscais, Cristovam afirma que estes “pouco adiantaram para reduzir ou erradicar a pobreza” e que, no Brasil, “serviram para provocar migração do campo para as cidades, agravando o quadro de pobreza”. E não é bem assim que se passam as coisas, em especial no caso dos benefícios para empreendimentos industriais.
Em primeiro lugar, há tempo que não se tem mais a ilusão de que a indústria vai resolver, por si só, o problema do emprego e da pobreza. Mas nem por isso ela deixa de ser indispensável, pelo seu efeito multiplicador, pela contribuição em impostos ao Estado, pelo apoio à agricultura, através da oferta de equipamentos e fertilizantes e da criação, para a produção agrícola, de mercados estáveis – caso das agroindústrias.
Em segundo lugar, as pessoas não deixam o campo pela atração das indústrias urbanas, mas simplesmente porque a estrutura do campo as expele. Fosse assim, as cidades nordestinas pouco industrializadas não teriam também “cinturões de miséria”. Para o camponês sem terra, a população das cidades oferece, pelo menos, a oportunidade dos biscates ou das esmolas.
Por outro lado, se admitimos a imperfeição da “mão invisível” do mercado para distribuir a riqueza entre os indivíduos, reconheçamos, mais que isso, a sua completa ineficiência quando projetada no espaço geográfico. Aí, todas as forças levam à concentração, e só a “mão do Estado” pode contrapor-se a essa tendência perversa, sendo o incentivo fiscal regional o melhor instrumento para isso.
Tenho acompanhado, ao longo de muitos anos, e em diferentes postos de observação – executivo de empresa, técnico de Governo (federal e estadual), consultor privado – a saga do desenvolvimento nordestino, com apoio nos incentivos fiscais, e posso falar dos seus méritos. Para começar, reconheçamos: toda a indústria não tradicional do Nordeste – química, petroquímica, de papel e papelão, metalúrgica, de fertilizantes, de confecções, naval, automobilística e outras – está aqui por indução dos incentivos fiscais federais e estaduais. E é difícil imaginar o que seria hoje o Nordeste sem ela.
Pude ver de perto, como executivo, o que representa uma unidade industrial geradora de algumas centenas de empregos numa cidade pernambucana de porte médio, inserida numa sub-região estagnada e decadente. (Hoje, três décadas depois, a fábrica é duas vezes maior do que no meu tempo). E como consultor, conheci em detalhe a contribuição, em oferta de oportunidades de trabalho, de um grande fabricante de calçados em meu Estado de origem: mais de dez mil (exatamente, 10.313, em fevereiro de 2015). Além disso, em colaboração com o Governo Estadual, que lhe ofereceu alguma infraestrutura, a empresa implantou, em pequenas cidades do interior, unidades satélites, onde parte da produção é realizada. Assim, aos 6.600 empregados da fábrica-mãe de Campina Grande, aos 2.000 da de Santa Rita, somam-se 341 em Mogeiro, 349 em Alagoa Nova, 186 em Serra Redonda, e outras semelhantes.
Se quem me lê conhece essas três cidadezinhas, pode avaliar melhor o benefício social que essas fábricas representam, agindo em contrário ao que supõe Cristovam: retendo no interior, com ocupação regular, gente que, em sua falta, possivelmente migraria para as grandes cidades. E acabo de saber que, com a mesma preocupação, diferenciando o incentivo em favor do resto do Estado, o Governo de Pernambuco conseguiu levar para fora da Região Metropolitana do Recife, em 2014, empreendimentos que projetam quatro vezes mais empregos que os aprovados para a RMR.
Como se vê, a condenação dos incentivos fiscais não pode ser categórica, embora isso não diminua, em nada, a importância dos “incentivos sociais”, do tipo “bolsa escola”. Não temos aí uma relação de alternância, como parece supor Cristovam, mas de complementaridade. Quandoque bonus, dormitat Homerus.
A PORTA DE SAÍDA
Mas voltemos às propostas de solução para o impasse. Como o problema se apresenta em escala mundial, só um governo mundial poderia enfrentá-lo de maneira eficaz. E isso não temos, nem teremos tão cedo. As organizações internacionais não têm força sequer para fazer cumprir suas tímidas propostas na linha do ecodesenvolvimento. Só nos resta, portanto, a pregação sistemática das teses de sustentabilidade, na esperança de uma conscientização progressiva dos indivíduos, das organizações, das estruturas de poder, e por fim daqueles que, circunstancialmente, detêm o comando dos botões ou das teclas que podem destruir o planeta.
Podemos começar, como bem entende Cristovam, com a bandeira do “educacionismo” (outra categoria de bom valor explicativo). O despertar intelectual é também um despertar moral, na expressão de Herbert A. Simon. Através da educação, poderemos melhorar a consciência humana, formar novos combatentes da causa “planetária”, evitar a “apartação”, a marginalidade, a violência, o fanatismo religioso. E acrescento: os “incentivos sociais” devem estar sempre amarrados ao estudo e à formação, para que não sejam reduzidos à condição de esmolas, que envergonham ou viciam, como é dito na canção de Luiz Gonzaga. Essa luta pode começar de pronto.
Mas há outro problema, mais complicado: o do emprego. Mesmo com a habilitação de todos para as tarefas da produção moderna, é certo que serão exigidas cada vez menos pessoas para produzir os bens e serviços necessários a toda a humanidade. Recordo a conferência de Henry Kissinger no Recife, anos atrás, quando lhe perguntaram qual a solução para o problema do emprego, em escala mundial, e ele teve a honestidade de responder que não sabia.
De fato, num quadro de economia puramente liberal, não há solução à vista. Mais uma vez, só o Estado pode ocupar e remunerar os que sobram no processo. E até a concepção de trabalho deve ser revista: ele não precisará mais ser produtivo, no sentido tradicional da palavra, bastando-lhe apenas proporcionar conforto psicológico às pessoas e dar-lhes titularidade para o acesso aos bens e serviços necessários a uma vida decente.
Por último, encaremos a questão do sistema financeiro internacional, e seus perniciosos efeitos. Com a volatilidade extrema do capital, em nossos dias, as aplicações especulativas podem desestabilizar um país. Como observa Cristovam, é como se o destino dos países fosse jogado numa roleta de cassino. Nesse caso, pouco adianta um Estado, isoladamente, impor restrições à ciranda financeira: ele será posto à margem pelo “sistema”, inclusive para investimentos produtivos e empréstimos. A única saída será a regulamentação internacional, a exemplo do que foi feito no pós-guerra. Que tal pensarmos em uma nova conferência de Bretton Woods? Esperemos que, em algum momento do futuro, a instabilidade econômica crescente crie condições políticas para isso.
PERORAÇÃO
Ao autografar o meu exemplar do seu livro, Cristovam escreveu: “Para Clemente Rosas que, talvez sem querer, ajudou a formar algumas destas ideias”. De fato, nos conhecemos há meio século, em breve período estudamos juntos e, a seu convite, o substituí como professor de economia na Universidade Católica. Naquele tempo, eu o encorajei a emigrar para estudo na Europa, pois, recém-formado e inconformado com a ditadura militar, corria o risco de perder-se na luta quixotesca que destruiu tantos amigos jovens e brilhantes. Depois, só tivemos raros contactos, e algum debate ideológico, pela via de textos publicados.
Merecer agora essa honrosa referência, sabendo-o, por seus méritos intelectuais e políticos, divulgador de suas teses em escala internacional, é mais do que poderia esperar o seu velho companheiro de sonhos e lutas juvenis.
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