Fernando Dourado

Cena de Amacord - Federico Fellini , 1973.

Cena de Amacord – Federico Fellini , 1973.

“Não se pode criticar um romancista pelos propósitos de seus personagens” Truman Capote, escritor, 1985

“Quem não se emocionar com “Amarcord”, pode se desconectar da vida porque já morreu” Daniel Filho, dramaturgo, 2015

EM NOITE MEMORÁVEL DA ADOLESCÊNCIA, fui ao cinema de arte do Recife ver o aclamado filme de Fellini. Meu primo e eu saímos da sessão levitando e em silêncio. Não esticamos até lupanares nem fomos tomar cerveja. Voltamos para casa sem pressa, mãos nos bolsos, no frescor da madrugada. Na frente dos correios, um ônibus elétrico descansava com os cabos arriados. Na ponte Princesa Isabel, fixamos o reflexo das luzes na água. Do cais da Assembléia, vimos o circo adormecido na altura da T.Janér. Nos bancos à beira da Capibaribe, casais se valiam da escuridão para ir o mais longe que podiam nas intimidades. A emoção nos transia os movimentos; Amarcord fora cósmico. Ele realçava, por certo, a pequenez de nossas existências, mas sinalizava com uma perspectiva trepidante: não havia vida menor. Ungido pela arte, um olhar podia reconfigurar o mundo. A experiência que acabáramos de viver selava uma cumplicidade estrelar – própria dos que tinham acabado de testemunhar um milagre que não podia ser compartilhado com muitos. Pois era possível que ninguém acreditasse nele e o atribuísse à fantasia que nos era própria. Sob o disco cheio da lua, o Recife ali foi Rimini. E, nós dois, o jovem Federico – cada um com sua narrativa, e algo entre elas comum a ambos. A mim caberia dar forma à mitologia da infância. Isso porque, naquela noite, adquirira a caixa de ferramentas para usar um dia.

Comecemos, pois. Durante bons dez anos, morei no edifício Capibaribe. Encavalado entre as décadas de 60 e 70, o endereço mítico do número 1035 da rua da Aurora – assinalado por dois prédios geminados de vinte andares -, ambientou mais do que uma infância curta e uma adolescência tortuosa. Foi, essencialmente, o epicentro da sociedade plural e cordata do Recife de então. Diferente do Chopin, de Copacabana, aristocrático até hoje, seu destino teria mais a ver com o do Baronesa de Arary, da avenida Paulista, quando este conheceu a decadência. Naquela época, contudo, ele era, na verdade, irmão do edifício Yacoubian, do Cairo, vitrine das castas amigáveis da era Nasser, no Egito. Desses anos dourados, se destacavam moradores de feição cosmopolita – franceses, japoneses, italianos, ingleses, portugueses e libaneses – que se fundiam a famílias brasileiras de extração incomum: médicos, engenheiros, políticos, músicos e intelectuais. Além deles, técnicos da Celpe proseavam no elevador com catedráticos e se fechavam diante do militar de alta patente. Forasteiros acorriam não raro da Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e São Paulo. Atento à miscelânea, eu, menino, deambulava por elevadores, garagens e escadarias – as entranhas da imensa nau. Ao cabo de certos dias, sabia qual das oitenta famílias recebera flores e quantas visitantes a república de cearenses da Sudene entretivera na véspera.

Lá fora, o mundo não era menos diverso e também encerrava atrativos. Assim, eu exultava em buscar cores e emoções naquela nesga de terra, compreendendo um casario compacto que varria a quadra até a fábrica de cerveja. A uma distância moderada, importantes prédios públicos: o Ginásio Pernambucano; a Assembléia Legislativa e o Palácio do Governo. Tudo que estivesse entre as pontes Princesa Isabel e Limoeiro me dizia respeito pois aquele era o último trecho da margem esquerda do Capibaribe – logo, de meu rio. Ali, o tínhamos diuturnamente, metros antes de ele desaguar em despedida nos costados do terminal de açúcar, onde despejava uma crônica sofrida e turva no sal marinho. Algumas das pessoas que vi por ali continuam impávidas. É o caso, por absurdo, da rainha da Inglaterra que desfilou em carro aberto e cujo iate “HMY Britannia” zarpou à noite, iluminado em festa por trás de Pilar. Papai acompanhou-o pelo binóculo até sumir no horizonte. Barbaridade, dizia. E os outros? O que foi feito dos personagens dos anos 60 – a essência mesma da pátria afetiva da infância? É desses filhos sumidos do Recife, quase anônimos, que trataremos abaixo. Eles são apenas uns poucos da vasta comédia humana que grassou na margem esquerda. Mais sofrida do que congênere parisiense – a “rive gauche” -, a glória de minha vida foi tê-las fundido num todo desarmônico, porém pictórico.

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 a) A mulher do busto – Durante muitos anos, ela ficava plantada ali, ao pé da estátua de Mário Melo, logo no fim da rua do mesmo nome, pouco depois dos enormes depósitos da estiva que, anos depois, virariam templos evangélicos. Dizer que ficava plantada, contudo, é lhe omitir a missão. Porque, na verdade, ela conversava animadamente com o homenageado de bronze. Fazia-lhe perguntas; lhe ouvia as respostas; discordava ora com escárnio, ora com respeito. Impassível, Mário Melo – de há muito partido para a eternidade – parecia contemplar com descrença os tocos de vela que ela acendia em sua intenção aos pés do pedestal e, talvez, não estivesse de todo descontente com a companhia inusitada. Quem conhece o desígnio dos mortos – ilustres ou anônimos? E ela, que horas dormia? Onde morava? Quando comia? Onde desafogava as necessidades? Nenhuma ideia. Ficava ali, de guardiã fiel. Se passássemos de carro, meu pai a brindava com uma lorota. “Vá dormir, maluca”. Já íamos longe enquanto ela ainda desfiava palavrões que ruborizavam minha mãe. Mas quando eu a cruzava a pé, na volta do Astor ou Ritz, a evitava para não ser reconhecido e bordejava o muro da escola Normal. Daquela mulher, ninguém conseguiu explicar nem origens, nem paradeiro nem a essência da pregação ao homem de interesses múltiplos a quem ela tão fortemente se afeiçoara. Vá saber;

b) A meretriz da pedra – Na mesma rua, rasgada nos anos 70, ficava sentada numa pedra uma meretriz alva de pó de arroz, alta, maquiada e bastante constante no exercício do ofício. Pois, mesmo se chovia, lá estava ela de sombrinha branca, provocando com a boca em cone e beijos estalados os motoristas curiosos. No amor à profissão, ela se destacava por uma peculiaridade. Especialista em sexo oral para motoristas, se dava a veleidades únicas. Pois, de acordo com o sabor do sêmen do freguês, adivinhava a bebida ingerida: cerveja, uísque, rum ou Campari. Numa concessão adicional que fazia à diferenciação – vital para manter tarifa cheia e fugir da concorrência predatória de despudoradas e travestis -, propunha aos mais próximos a opção dita lubrificada, ou seja, sem dentadura. Ao fazer sexo oral nas barrancas do Capibaribe, atrás de um dos postos de gasolina, podia guardar a chapa por minutos no papel higiênico e, aplicada, dava um show de ritmo e tato. Uns preferiam assim porque tinham o prepúcio mais sensível; outros gostavam mesmo do atrito para preparar o momento culminante. Hoje, daria oficinas concorridas a senhoras de meia-idade mal iniciadas nesse ritual sempre requisitado e quase nunca bem executado. Passado o orgasmo, era dispensada com uma cédula de Santos Dumont e uma palavra grosseira. Até a semana seguinte;

c) Luís Sapateiro – Como diz o nome, abraçou também um ofício milenar. Só que na Travessa do Costa, ou no ´beco`, como chamávamos a pequena artéria que ligava a rua da Aurora à da Fundição. Evangélico, Luís vinha de uma juventude de farra e penitência até casar com D. Luísa. Tinha uma escadinha de filhos, todos com nomes bíblicos: Moisés e Rebeca puxavam a linhagem que acompanhei até a pequena Raquel. Trabalhava sem camisa e gostava de dar um dedo de prosa com os passantes. Sob pretexto da religião, recrutava domésticas bonitas da vizinhança para ser ovelhas em seus templos. Paquerador, se revelava, quando de Bíblia na mão, um bode velho, incorrigível e libidinoso. Terezinha, nossa empregada, me contou de seus avanços e passei a lhe negar um cumprimento para positivar meu desagrado. Ele parecia se divertir. O lado bom era que também caía em esparrelas. Sabendo-o telespectador de um programa que prometia milhões a quem respondesse à chamada com um “Boa noite, Brasil” – ao invés de alô -, era assim que atendia o telefone na hora aprazada. Do outro lado, a voz perversa rebatia: “Boa noite coisa nenhuma, filho da puta. Teu destino é morrer pobre. Vai chupar prego, desvalido”. Os mesmos que lhe aplicavam o sofrimento, apareciam ao vivo um minuto depois para saber da vida. E, desforrados, riam da indignação dele com uns desocupados que o azucrinavam;

d) Dona Verônica – Era vizinha de frente do sapateiro, mas se tratavam formalmente e com respeito. Mulata, olhos verdes, patocas de rouge nas bochechas, voz esganiçada, estrábica, criava o neto serelepe como se filho fosse. Na época da falta de leite, a fila dava volta na esquina e ela viveu um momento de glória. Foi quando o general Paes de Lima, homem da Revolução – como gostavam de dizer -, resolveu furar a fila e exigir prioridade. Pois bem, ali a Redentora sofreu um primeiro revés. “Volte para o começo da fila e faça Vosmecê como todo mundo. Nem eu sou vaca nem isso aqui é seu quartel”, bradou ela, só restando ao militar sair bufando. Dizem que o AI-5 foi uma materialização de dezenas de provocações como essa contra a cultura castrense. Semelhante vexame sofreu um policial quando chegou à venda lhe inquirindo pelo neto. Disse que quando ele aparecesse, pretendia lhe dar uns cocorotes. Ao se descuidar, sentiu o cano do revólver na boca e a voz única: foi você que pariu aquele negrinho, filho de rapariga de zona? Pois vá dar cascudo nos seus bastardos e nunca mais apareça, ouviu? Antes de morrer – e sabendo que a hora chegara – mandou fazer um cozido, fechou as portas da bodega, se serviu de rum com Coca-Cola, tirou do alto o vestido do enterro, passou-o a ferro, comeu com gosto e ouviu Altemar Dutra até a ambulância chegar. Foi velada na mesma noite;

e) Seu Galindo – Era o jornaleiro. Estava sempre com uma camisa azul de índigo e envergava um quepe de motorneiro sobre o rosto agalegado e a boca murcha. Dele emanava um cheiro acre de suor permanente. Isso se devia ao calor próprio de quem vivia esbaforido, sobraçando um encarte duro cheio dos jornais a tiracolo. Só transitava pela Cruz Cabugá, entre a rua do Lima e a fábrica da Clíper, passando pelo Canal 6. Galindo não perdia tempo com conversa mole, sequer com homens respeitáveis como meu pai. A obsessão dele era desovar o estoque e ir pegar mais exemplares, o que se pode atribuir a tempos em que as rotativas cuspiam jornais em pelo menos dois turnos. Alguns o chamavam de Mané Galinha, fazendo troça com o sobrenome. Nessas horas, ria um sorriso triste. Um belo dia ficou doente e reapareceu semanas depois muito magro. Desde então, associo o homem descarnado a alguém cuja saúde se evaporou. Quando morreu, meses mais tarde, aquele pedaço da geografia se esfarelou. Ainda hoje o vejo chegando a um restaurante espanhol que funcionava por ali para tomar um copo d´água. Papai dizia que ele era avaro com as manchetes. Deixava entrever uma nesguinha, mas logo dobrava o exemplar para que o leitor potencial não satisfizesse a curiosidade sem pagar o pedágio devido;

f) Arigó – Morava na esquina da rua do Lima e detestava o apelido, especialmente depois que se candidatou a vereador sob o nome de Geraldo “Jesus”. Eterna cara de vítima, sonso, se soltava ao narrar o futebol no areial do Capibaribe, quando imitava de maravilha o aclamado locutor Ivan Lima. Nessa hora era insubstituível e se agigantava. Adolescente, já tinha os cacoetes necessários ao cargo público. Podemos elencar vários para cada letra do alfabeto: manhoso, melífluo e mentiroso. Viveu dia de comoção quando apareceu com um pneu roubado. Diante da prosperidade brusca, a rádio-patrulha apertou-o e, como álibi, disse que apenas atendera a uma encomenda de Luís Sapateiro. Lá foi a comitiva de dezenas para presenciar a acareação entre ambos. Diante do impasse, Luís negou – por certo peremptoriamente, como se diz em Brasília – e foram todos bater na delegacia de Costumes, na frente do comissário impaciente com tanto barulho por tão pouco. Pela rua da Aurora, Arigó rodou o pneu sob apupos de ladrão e maloqueiro. Desses episódios veio a identificação com o Nazareno, e virou Jesus – sempiterno candidato à vereança. Quando aparecia de cabelo raspado, diziam que voltara de uma temporada em Dois Unidos – cadeia que consagrou o visual Kojak. Já candidato, não resistia a dar uma tungada de dinheiro nos amigos de antanho. Sonhava em ser amado pelo povo e, a seu modo, conseguiu.

Epílogo

ANOS MAIS TARDE, CHEGANDO À BRASSERIE LIPP, de Paris, com bastante fome – para não variar -, a encontrei cheia. O garçom sugeriu que eu dividisse a mesa com um senhor gordo que tinha um “foulard” amarrado ao pescoço e mastigava com gosto. Quando eu perguntei “Est-ce que vous me permettez, Monsieur?”, ele desviou o olhar por um átimo do “boeuf-au-sel” esparramado no prato e, com forte sotaque italiano, apontou a cadeira em consentimento, com galanteio discreto. Era ele. Em silêncio, saciamos nossa glutonice. A vida era mesmo milagrosa. Fellini e eu estávamos sentados à mesma mesa. Que bom seria que meu primo visse aquela cena. Calei um agradecimento banal ao mestre, mas deveria ter ousado pelo menos lhe pagar a conta. Perto do fim, nos encaramos com a simpatia mútua dos bons de garfo. “C´était parfait, n´est-ce pas?” – ele perguntou, rolando o erre como estrangeiro no país onde estávamos. Eu assenti. Sim, perfeito. Ao sair, ele ajeitou a boina vermelha diante do espelho da chapeleira, recolheu o sobretudo, deixou uma moeda na palma da mão da mocinha graciosa e fez um aceno de despedida. Hesitante, lhe dei a mão antes que sumisse pela porta giratória. Naquele instante, me veio ao espírito uma ária de Nino Rota. Amarcord significa “eu me lembro” no dialeto de Rimini. Pano rápido para os personagens fellinianos acima. Será que um dia teremos outros?

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