Teresa Sales

Ontem, o sábado estava nublado. Ameaçava chuva. Que caiu, enquanto caminhava pela areia e pelos riachinhos e pequenas bacias de lavar menino. Desses, só se encontra na maré baixa. Andava devagar, contra a leve correnteza do mar, molhando seus pés e pernas, vezes alcançando a altura do joelho. A chuva veio bonita. Escorrendo, como se em telhado, pela aba do chapéu. Os pingos fortes molhando os braços cobertos por camiseta de proteção solar e as pernas nuas.

Enquanto ia na direção do Buraco da Velha, cruzou com Manuel Severino, velho conhecido das madrugadas. Um dia, parada na beira do mar, vendo a saída da jangada, chega ele, olha também, puxa conversa. O espetáculo de saída da jangada ao mar, nas primeiras horas da madrugada, céu principiando a clarear, é coisa bonita de se ver. Naquele dia, a jangada era a vela e não a motor. Os dois pescadores que iriam ao mar, e mais dois ajudantes de terra, rolavam a embarcação nas toras azuis. Aproximou-se também um pintor, apaixonado pela Aurora, que aguardava a chegada do sol para fotografar.

Vela da jangada aberta ao vento, a mulher do sétimo andar retornou para casa. O recém conhecido caminhava junto, proseando, contando em cinco palavras flashes de sua ascensão social da favela do Bode ao bairro de Brasília Teimosa, onde todos o conhecem pelo nome de Biu da Venda. Passados nem duzentos metros, chegados à altura do prédio onde mora a mulher do sétimo andar, se despediram e ele seguiu adiante.

Depois desse dia, a cada vez que os caminhos se cruzavam, o cumprimento de Biu da Venda era bom dia, princesa. Depois acrescentou, bom dia, minha princesa. Ela gostava daquilo, se lembrava das histórias de Trancoso da infância, e respondia, bom dia, meu rei. Até o dia em que os caminhos convergiram de novo na mesma direção, a prosa mudou de rumo, o que para ela era fantasia de menina, para ele era gula de homem, e ela botou os pontos nos is, e desde então, entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato, senhor rei mandou dizer que contasse mais quatro, e acabou-se a história, e a mulher do sétimo andar passou a receber, junto com o sorriso amistoso da lembrança do que não houve, o cumprimento de bom dia, minha patroa.

Se os da beira do mar já rareavam ontem, hoje, domingo, com a proibição do governo estadual de acesso às praias e às praças, eram quase ninguém. Mesmo sendo um domingo esplêndido de sol, que não se fez de rogado, e apareceu pontualmente no seu horário de abril, e da lua cheia que se aproxima, comandando as marés e os ventos. Ademais, a caminhada de hoje teve o sabor adicional do proibido. Da contravenção, burlar a lei. Sabendo do costume, de que as leis não são para serem obedecidas. Ou, como aquela mulher ouviu um dia, do pai de uma amiga, em outros tempo e lugar, ao adentrarem um parque interditado, e aquele pai dizia, com um sorriso de vencedor, proibido para os outros. Uma das mais odiosas distinções de classe, patente do país Brasil: Sabe com quem está falando? Mas diabos, por que pode no calçadão, e não na imensidão da areia de uma maré baixa?

Pela primeira vez, a mulher do sétimo andar atravessou o campo de futebol deserto, quando, num domingo como este, estaria animado por dois times e um juiz, e muita zoada de apito e palavrões, que ela ouve pelas janelas abertas no sétimo andar, um ruído de vozes humanas, melhor que de motores. E às vezes, espiando um pedaço do jogo, descia para saber o placar. Da última vez, empataram 2X2 Santa Cruz e Sport. O Náutico não veste camisa entre os jogadores do Bode e de Brasília Teimosa. Depois do jogo, jogaram-se no mar para tirar o suor do corpo, e depois ainda uma lourinha bem gelada, que ninguém é de ferro.

A mulher do sétimo andar fez o mesmo caminho do sábado, sem cruzar viv’alma. Só foi encontrar gente tomando banho no Buraco da Velha, o melhor banho de mar de toda a orla Pina/Boa Viagem/Piedade. Foi entrando. Deixou o chapéu e os óculos na imensa balaustrada de arrecifes que formam ali uma piscina. E descansou o corpo da caminhada mais puxada, pois que contra a correnteza dos riachinhos, de pés descalços. Águas limpas, sem embalagens de plástico. Deitou de costas. Fez todas as respirações costumeiras, e mais as que as mensagens de whatsapp recomendam para saber se não está contaminada pelo vírus. O corpo segurado nos braços gordos da rainha do mar. Ouvia distante o falar dos banhistas, meia dúzia, se muito, em tom maior para não chegarem perto uns dos outros. E meditava. De olhos fechados, ou mirando acima o céu e as nuvens que vão formando figuras. Hoje, parecia um rosto de cão, que foi se transformando em um sorriso desdentado de bebê.

Na volta, uma pequena garça, com seu andar de Miss Brasil, o faro afiado para a caça, o bico pontudo para o bote certeiro. Caminha quase ao lado da mulher, na mesma direção, à sua esquerda, mais à frente, em cima dos arrecifes, enquanto ela procura o ondulado da areia para caminhar. Os passos leves e lentos da mulher vão acompanhando cardumes de minúsculos peixinhos que moram nas locas das pedras e se movimentam apressados. Espia e experimenta o verde novo dos sargaços presos às pedras baixinhas, macios ao toque dos pés.

Até chegar à altura de seu prédio, onde atravessará novamente o campo de futebol vazio, são muitas as piscinas filhas do Buraco da Velha. Numa delas, um homem dá banho no seu cachorro. Ela passa ao largo. Andava aborrecida com a raça cão, desde que passaram a substituir a raça gente. Sabia que não é correto confessar isso, mas, já que hoje, desde cedo, andava mesmo errada… Ora, pensava ela, sou velha. Do tempo em que os cães eram criados no quintal das casas. Nesse tempo, ela gostava de bicho. Na sua casa, em São Paulo, criou uma Husk Siberiana que deu à luz, por duas vezes, ninhadas de cinco lindos cachorrinhos de olhos azuis. O porta retratos está bem ali para mostrar, três caras felizes e seis patinhas pousadas na janela do terraço de trás da casa. Os dois filhos pequenos, ainda de pijamas em um domingo, e a cachorra. Mas ela só entrava, na área de serviço, em dias de jogo ou do Ano Novo, por causa dos foguetes.

Melhor não mexer nesse vespeiro e comprar intriga com os defensores dos animais. Apenas continuar pintando a aquarela de uma madrugada de domingo, em que a praia estava especialmente bonita, porque sem o lixo dos sacos de plástico deixados pelos humanos.

PS: Hoje, terça feira 07 de janeiro, o calçadão do Pina-Boa Viagem amanheceu com guardas a cada cem, duzentos metros. Um batalhão distribuído de dois em dois ou três, eles mesmos sem máscara de proteção. A ordem é os caminhantes e ciclistas usarem somente a pista dos automóveis. A mulher do sétimo andar se vestiu de papangu, roupa própria para esses tempos, e foi ver de perto.

Tá certo. Confinamento. Mas … Proteger quem, Cara Pálida? Como está sendo protegida a população dos morros, do Bode, da Ilha de Deus, dos lugares onde se mora em casas, em pequenos prédios de cômodos, em barracos? A proteção seletiva não é novidade. Na Revista Será, a matéria de Teresa Sales a respeito do último filme de Kleber Mendonça, já reportava os seis guardas e duas viaturas, remunerados com dinheiro público, para vigiar, no horário das caminhadas, o hotel cinco estrelas da Avenida Boa Viagem. Dali, supostamente, sobrariam trocados do hotel para os que pagam aos guardas.

Agora já se arreganham os dentes dos que vão distribuir as esmolas com o dinheiro que cairá do céu. É uma cadeia produtiva muito bem azeitada, mais do que as moendas dos engenhos de açúcar antes da botada.
Proteger quem, Camarada? Das duas, uma. Ou esse vírus é diferente dos outros e só mata rico. Ou ele também mata pobre. E aí, minha amiga, meu amigo, será uma dengue multiplicada por mil. Mas não se iludam. Por um vírus ou por outro, estamos condenados, essa terra abençoada por Deus, a ser contaminados pela pobreza. A mesma que, no recinto do lar, são as mãos e os pés de quem dela depende para ter a roupa limpa, a casa limpa e a comida feita.

 

PS2: 09 de abril. A pandemia favorece descobertas científicas, ou faz aparece-las como explicação. O cientista Cícero Coimbra, especialista em Neurologia e Neurociência, professor universitário e pesquisador da Unifesp, declara o seguinte, ao advogado Serjei Cobra, no programa “Oito em Ponto” da Rádio Cultura FM da Fundação Padre Anchieta, São Paulo: está correta a medida de confinamento para evitar o contágio. Com isso, está-se combatendo, porém, a manifestação, não a causa. A causa, segundo ele, é a carência de um hormônio, corriqueiramente nomeado de Vitamina D, que é o grande regulador do sistema imunológico responsável em combater infeções. E a fonte de vitamina D é a exposição da pele aos raios solares. A falta desse hormônio é que torna a população vulnerável e pode transformar em pandemia o que poderia ser uma virose benigna. Ora, grande parte da população rica vive hoje sem contato com o sol. Em países como o Brasil, onde a guerra civil está solta na rua e tem o nome de violência urbana, os ricos vivem confinados em fortalezas vigiadas, automóveis, academias de ginástica, shopping certers. Já as crianças da periferia ainda brincam na rua. Seus pais, com mais sangue africano na cor do que os confinados em prédios vigiados, sem a paranoia do câncer de pele nem dinheiro suficiente para as mil marcas de filtros solares, seriam mais beneficiados pelo tal hormônio de que o corpo necessita para obter imunidade, pois, diuturnamente, caminham até os pontos de ônibus e trabalham em grande parte no setor informal. Vivem no meio da rua, como os redemoinhos de Guimarães Rosa, debaixo de sol e chuva. Os primeiros mapas de contaminação por bairros, divulgados pela prefeitura do Recife, são uma aproximação a essa hipótese. Então, dessa vez, fomos salvos pelo gongo. Ainda não é agora que seremos contaminados pelo vírus da pobreza. A pandemia vai acabar mais cedo ou mais tarde. E nós, os ricos do país abençoado por Deus, cheio de sol e cor, voltaremos ao confinamento habitual.