A filosofia não é privilégio dos filósofos. Todos nós, simples mortais, habitualmente a praticamos. Ainda que de maneira um tanto simplória, no modelo de M. Jourdan, o burguês fidalgo de Molière, que, diante do seu professor de literatura, deslumbrou-se ao deduzir que, quando pedia os chinelos ao seu criado, estava fazendo prosa, mesmo sem o saber.
Pois é. Quando nos interrogamos sobre o que estamos fazendo nesta terra, de onde viemos e para onde vamos, por que devemos ser bons e moderados e não simplesmente instintivos, ou como um ser todo-poderoso pôde criar e pode tolerar este mundo injusto, estamos filosofando.
No meu compêndio de filosofia do curso “clássico” (isso mesmo, estudávamos a matéria no 2º grau!), aprendi que ela se ocupava das “causas primeiras e razões mais elevadas de todas as coisas”. E mais tarde, no livro “Curso de Filosofia” do marxista George Politzer, encontrei conceito ainda mais simples: a diferença entre a filosofia e as ciências consistia apenas em que aquela tratava das questões mais gerais, comuns a estas e, de certa forma, situadas acima delas. Bem ao gosto do tempo, o autor argumentava que complicar a filosofia era manobra burguesa, para mantê-la afastada das massas operárias.
Assim, desinibidamente, proponho começarmos com uma questão transcendental: qual o sentido da vida? E espero não surpreender os que me leem com uma pronta resposta: a vida, em si, não tem sentido. É simples fenômeno químico, como o fogo (não direi bioquímico para não ser redundante). A metáfora da “chama da vida” é perfeita.
Em defesa da minha tese, não recorro aos cientistas, pois esse campo axiológico extrapola o seu ministério. Valho-me dos poetas, com o seu dom de captar a realidade de forma intuitiva, e dos aventureiros e exploradores, que se medem com os obstáculos naturais e com eles aprendem, segundo a lição de Saint-Exupéry, de que “mais coisas nos ensina a terra sobre nós do que todos os livros”.
E o que nos dizem eles? Fernando Pessoa, pelo seu heterônimo Alberto Caeiro: “Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas é elas não terem sentido oculto nenhum… As cousas não têm significação: têm existência”. Fridtjof Nansen, explorador polar norueguês: “Life has no meaning. There is nothing called meaning in the nature. Meaning is a purely human concept which we’ve put into existence”*.
Sendo, portanto, a vida obra do acaso, e sobretudo a vida multicelular, e mais ainda a vida inteligente, de ocorrência altamente improvável no universo, fora deste “pequeno ponto azul”, não há por que especular sobre o seu sentido intrínseco. Melhor lhe atribuirmos um.
Pois – e para que não me acusem de niilismo – entendo que a vida pode ter um sentido. E mesmo deve tê-lo: aquele que lhe atribuirmos. Para alguns pode ser o de servir a Deus, para outros o puro hedonismo. O que proponho é o de servir à humanidade, para o bem dos nossos contemporâneos e dos nossos filhos e netos.
A vida não é, afinal, o “absurdo ontológico” de que falam os filósofos irracionalistas, nem, no dizer do poeta persa Omar Khayyam, “um bem que me deram sem me consultar e que restituirei com indiferença”. É verdade que não fomos consultados, mas me parecem poucos os humanos ansiosos em devolvê-la. A melhor receita é curti-la sem inquietações, saindo de si para pensar nos outros, como fórmula segura de felicidade.
Meu caro Clemente: é sempre com prazer que o leio, mas o prazer não exclui eventuais discordâncias. Embora concorde no geral com suas observações relativas ao sentido da vida, acho que você simplifica demais as coisas quando conclui o artigo propondo que a gente curta a vida sem inquietações e ao mesmo tempo renuncie ao egoísmo constitutivo da nossa espécie para pensar no outro. Não bastasse tanto, você acrescenta ser esta a receita segura da felicidade. Quando de fato nos movemos para fora do nosso eu inspirados pela intenção de pensar e cuidar de algum modo do outro, é fatal nos inquietarmos, Clemente. Não acredito que o ser humano seja moldado em qualquer sentido para ser feliz. A felicidade é apenas um estado e bem poucos têm o privilégio de fruí-lo. Não é para ser felizes que precisamos cuidar do outro. Cuidamos do outro (quantos de fato o fazem?) movidos pela necessidade de amor, nunca isenta de egoísmo, pela compaixão e outras razões igualmente louváveis do ponto de vista ético. Se isso nunca foi muito comum, pensar e cuidar do outro, hoje muito menos. Hoje, dentro da cultura hedonista e consumista que rege a vida da maioria das pessoas, duvido que muitos efetivamente cuidem do outro. E essa, não tenho dúvida, é uma das fontes da infelicidade e da aridez humana correntes. Desculpe a filosofice apressada, Clemente. Um abraço.
Meu caro articulista Clemente Rosas.
Longe de mim a intenção de comentá-lo ou criticá-lo.
Como todo ser humano, hei de discordar de algo que, propositadamente
os filósofos escreveram para essa finalidade. Assim, vão fazendo ” uma guerra póstuma”. Mas de uma coisa fique certo. Concordo totalmente com o que você diz
no final da crônica.
Trovabraço
Perfeito! Eis a “chave” e o auge da Sabedoria Humana! O sentido da vida é…. ”
O que proponho é o de servir à humanidade, para o bem dos nossos contemporâneos e dos nossos filhos e netos. E o nobre homem conclui …” A melhor receita é curti-la sem inquietações, saindo de si para pensar nos outros, como fórmula segura de felicidade. Pronto. Está aí a chave para a chamada “Felicidade Absoluta”. Cada um de nós, seres ditos, racionais e com capacidade filosófica, nos dedicarmos ao Autoaprimoramento e ao Servir ao “outro”, vez que, “o outro”, somos nós mesmos! Parabéns pela “descoberta”!
Caro Clemente, vc. faz filosofia como literatura. E faz literatura filosofando. Um prazer pra quem lê. No plano pessoal, estou com Santo Agostinho: o sentido da vida é dado no livre arbítrio. Então, a vida pode e deve ter o sentido que dermos a ela.
Agradeço aos que comentaram meu texto.
Amigo Fernando: Você parece ter uma visão da criatura humana bem mais cética do que eu, otimista por princípio filosófico, como costumo me rotular. E justifico minha posição: não me parece possível ter uma atitude solidária, compassiva e construtiva para com nossos semelhantes, sem uma postura esperançosa em relação à espécie.
Contesto o entendimento de que somos moldados para o egoísmo. Tal posição parece a dos “sociobiólogos” americanos, que afirmam sermos escravos da nossa genética, pouco podendo fazer nossos princípios éticos contra ela. A posição é refutada por Stephen Jay Gould (naturalista que reverencio), com a observação de que temos potencial genético tanto para o egoísmo como para o altruísmo. Este pode sere explicado como uma projeção do simples instinto de conservação, além do indivíduo, sobre a sua espécie.
Admito que a felicidade tem fortes componentes psicológicos e subjetivos. Mas insisto na minha fórmula, aprendida talvez com o meu pai, homem simples, agrônomo de profissão e falecido aos 95 anos, que, em seu cinquentenário festivo, perguntado sobre o que fazia para não envelhecer,respondeu apenas: não se preocupe com você próprio, pense nos outros.
E quanto ao amor, encontrei em um conto de Carson McCullers (A tree. A rock. A cloud) a sua forma mais perfeita: aquela que não espera retribuição. Vale o esforço para alcançá-la.
Senhora Rosangela Dantas Lima:
Confesso não ter entendido nem a motivação nem o tom de seu comentário. Não concorda com a minha modesta proposta de dar sentido à nossa vida dedicando-nos aos outros – aos próximos, para identificar ainda mais a “dica” com o principal mandamento do Cristianismo? E por que a ironia? Não há fórmula de “felicidade absoluta”, é claro. Apresentei apenas a minha sugestão. V. Senhoria discorda dela? Seria bom que apresentasse a sua própria, sem amargor e sem rebuços.
Clemente: acho que boa parte da nossa divergência, por mim introduzida no meu comentário, deriva das generalizações talvez inevitáveis impostas pelo espaço. Você aborda questões humanas filosoficamente complexas tendo que espremê-las em poucas linhas. Fiz o mesmo ou pior no meu comentário, pois evitei alongar-me temendo ocupar mais espaço do que o seu artigo. Dito isso, tem sido um prazer conversar com você, também ler você. Penso que concordamos quanto à perspectiva humanista, mas sem dúvida a sua é bem mais otimista do que a minha. Por isso acho que você subestima o egoísmo na natureza humana. Você pode retrucar afirmando que superestimo seu otimismo. Não são pontos de vista puramente subjetivos, mas novamente ressalto que é difícil discutir adequadamente uma questão tão complexa dentro dos limites em que somos forçados a conversar. Quando você cita o exemplo do seu pai para justificar seu argumento em defesa do cuidado altruísta com o outro, sou o primeiro a concordar. Discordei da generalização, Clemente. As poucas pessoas velhas que conheço e vivem bem com a vida são significativamente altruístas, dedicam tanto de sua vida ao outro e a questões impessoais que assim reduzem o peso dos seus próprios males. Não tenho dúvida de que o egoísmo e todos os males a ele associados estão na raiz da nossa infelicidade e do mundo injusto e cruel que criamos. Não posso expor isso melhor, mas prometo enviar para a revista um artigo cujo título é Egoísmo no qual esclareço melhor o que penso. Falei, falei e ainda assim sei que não disse o necessário, Clemente. Que fazer senão confiar no leitor que lê nas entrelinhas e se contenta com a parcialidade dos meus argumentos? Um abraço.
Se entendi bem, o texto de Clemente contem cinco questões distintas e que estimulam à reflexão:
1. Num plano mais geral, considerando o “sentido da vida” como um “propósito” ou uma “intenção” realizada por alguém externo à natureza e à vida, claro que a vida não tem qualquer sentido. Nem a vida das espécies e dos humanos, nem a vida singular de cada um de nós.
2. No nível singular de cada pessoa, percebe-se um esforço para inventar ou criar um propósito nas suas vidas particulares (cada ser humano) na tentativa de fugir da angústia existencial da ausência de sentido. Como não existe, cria. Desta forma, as pessoas buscam algo que dê sentido às suas vidas. Não se trata de propósito ou sentido para a vida em geral, da natureza e do universo, mas de dar um sentido à vida singular, cada um com sua estratégia. Ora, se cada um procura “dar um sentido”, e são muitos diferentes, evidente que a vida não tem, a priori, um sentido. Tem que ser criado ou inventado, como uma espécie de “auto-engano” nem sempre muito eficaz.
3. Clemente propõe a adoção de um determinado sentido da vida das pessoas – “servir a humanidade” e “sair de sí para pensar nos outros”- proposta tão generosa quanto excessivamente genérica e imprecisa para não dizer romântica. Em que consiste servir à humanidade? Ajudar os pobres como Teresa de Calcutá? Dedicar a vida à luta pela transformação social? E afinal, de qual humanidade estamos falando, considerando a enorme diversidade social e cultural? Fernando já disse muito bem no seu comentário: todas estas posturas de serviço à humanidade contêm, no final das contas, um desejo secreto realização e satisfação interna; “Cuidamos do outro (…) movidos pela necessidade de amor, nunca isenta de egoísmo”.
4. Clemente acrescenta que curtir a vida sem inquietações, “saindo de si para pensar nos outros” seria uma fórmula segura de felicidade. O que parece implícito nesta afirmação é que o sentido da vida seria, por último, a busca de uma felicidade segura e não o serviço à humanidade que, segundo sua interpretação, serve apenas como um meio para alcançar a egoísta felicidade. Na verdade, a proposta contem dois aspectos diferentes: curtir a vida sem inquietações pode ser o oposto de sair de si para pensar nos outros. São duas orientações diferentes e mesmo, quase sempre, antagônicas.
5. Finalmente, a felicidade, independente do que se conceitua como tal, não é privilégio de quem “pensa nos outros e cuida da humanidade” como propõe Clemente. E, ao contrário do diz Fernando Mota, ela não privilégio de bem poucos. Penso que a felicidade é um estado de espírito que tem mais a ver com a postura de cada um diante da vida e do mundo que propriamente de algum privilégio (se o entendo como condição e posição na sociedade). Além do mais, a felicidade como esse estado de espírito é fugaz e se alterna com a melancolia e mesmo a tristeza. A felicidade só é boa porque é fugaz. E tristeza só é suportável porque, além de também fugaz, deverá sempre ceder espaço para novos momentos de felicidade.
Fernando, estamos entendidos, a limitação de espaço é que nos leva a supostas divergências.
Quanto a Sérgio, devo esclarecer dois pontos:
1) Pouco importam as motivações das pessoas para as suas ações. O que interessa é o resultado efetivo dessas ações. Admito que haja razões egoísticas para aqueles que dedicam suas vidas a uma causa nobre: eles querem se sentir felizes com isso. E daí? Essa motivação desvaloriza o seu trabalho? Pensemos na distinção weberiana entre “moral de convicção” e moral de “responsabilidade”.
2) A proposta simplificada de “servir à humanidade” como fórmula (uma delas, a minha, em particular, que não posso impor a ninguém) para ser feliz, é abrangente, e fui apenas sintético ao apresentá-la. Envolve a caridade, a solidariedade, o engajamento político, o amor ao próximo dos cristãos, o trabalho orientado para o bem comum, como exigência anterior à da riqueza pessoal. E ao falar em “curtir a vida” (já me arrependo da expressão “modernosa”) não me refiro ao hedonismo. Sem desprezar os prazeres individuais, a que todos temos direito (“Deus é pai, não é padrasto”), para mim, a vida não se completa sem a perspectiva social.