Fernando Dourado

Caminhando na Rue des Rennes (autor desconhecido).

Caminhando na Rue des Rennes (autor desconhecido).

Quando subia a escada da estação de metrô Saint-Placide, Mário acusou uma pontada aguda do lado esquerdo do peito e foi acometido de súbita falta de ar. Foi como se tivesse sido desconectado de um tubo de oxigênio do qual dependesse. É claro que sentiu o suor frio porejar na testa e no pescoço e, antes de arriar o corpo na calçada como um animal lancetado, em meio a dezenas de passantes, só lembra de ter visto uma grande placa onde se lia a palavra “Numismatique”. Apesar do ar fresco, a camisa ficara empapada de suor em segundos. Foi então que um par de mãos que pareceram experientes e reconfortantes, lhe apoiaram a cabeça numa espécie de sobretudo dobrado e uma voz lhe pediu que se mantivesse calmo pois o socorro estava a caminho. No fundo da rua, ele divisou o enorme edifício que os parisienses chamam de Torre Montparnasse e, pela primeira vez em mais de quarenta anos, achou-o bonito com suas bordas iluminadas. Já trabalhara tanto ali. Voltaria um dia?

Olhando o céu, na tentativa de ver que cara poderia ter naquela circunstância a morada dos bons, não conseguiu enxergar quase nada, salvo as muitas cabeças que o contemplavam com expressão neutra. Uma só mulher lhe sorria, mas parecia ser de pena, o que era compreensível. Um homem negro se ajoelhou e ele o reconheceu: o senhor vai se recuperar, disse com ar brincalhão. O jeitão era inconfundível e o sotaque idem. Sim, era o bilheteiro do cinema “Les 7 Parnassiens” – as salinhas pequenas que ele frequenta quando em Paris. “Merci”, balbuciou. Ainda ontem vira lá “Jauja” e comprara pipoca doce. Será que o reconhecera? Mas a farmacêutica da rue de Rennes, esta sim, se apresentou e até brincou: está vendo no que dá o senhor não ter vindo comprar suas pílulas de Circulymphe? É o remédio para a circulação do sangue nas pernas. Ele sorriu com meia-boca enquanto ela lhe tomava o pulso. Sabia-lhe o nome, logo afloraria, se sobrevivesse. Tudo estava condicionado a isso doravante.

Ouvira uma sirene ao fundo? De súbito, a respiração quase se normalizou. Então viu o caixa da livraria FNAC que o atendera e com quem discutira por um desconto de três euros que lhe fora negado. É que não trouxera o cartão-fidelidade e o moço disse que não conseguiria dar o abatimento com o número do passaporte. Furioso, ele foi injusto e disse que tudo era fácil na hora de aderir, mas difícil quando era para gozar dos benefícios. Apesar da fila longa, o rapaz tentou explicar as limitações do sistema e, mesmo assim, ele saiu bufando. Pois ali estava ele, bem ao lado das duas chinesas do “Traîteur et Pâtisserie Sino-Française”, onde adora tomar a sopa ‘wonton’ – que elas afrancesaram para caldo de ravioli de camarão. Logo também reconheceu o jovem altão, tipo varapau, que é atendente no L´Exky, do boulevard Montparnasse. Ele é dinamarquês e está sempre sugerindo as novidades da comida orgânica primorosa que fazem lá. Será que um dia voltará a tomar a sopa de cenoura com “croûtons”?

Era hora de se perguntar: como coincidira que os comerciantes do bairro estivessem de passagem ao mesmo tempo em que ele agonizava? Quando o colocaram na maca confortável, viu que a farmacêutica Dominique- era esse o nome da loirinha – murmurava coisas para o enfermeiro de bata branca que comandava a ambulância. Ele ainda pôde distinguir o tunisiano simpático que o rouba quase toda noite quando compra mexericas de Israel. Ele vende-as a 4,99 euros o quilo, quando o patrício que fica só trezentos metros rua acima, oferece a mesma origem e em melhor estado a quatro euros e trinta. Mas como ele sempre compra bastante, prefere a conveniência. Mesmo porque também leva água e outros itens pesados, logo a proximidade do hotel tem seu valor. Naquela hora, o olhar do fruteiro traduzia desalento e compaixão. Parecia pensar: não podia perder um freguês desse naipe na véspera do Dia do Trabalho. Quanto a ele, Mário, pensava no cuscuz marroquino do Omar a que faltaria mais tarde.

Quando fecharam a porta da ambulância, lhe aplicaram uma injeção no braço e uma moça gentil foi fazendo perguntas em rápida progressão sobre alergias, diabetes, hipertensão e medicamentos. O barulho da sirene chegava filtrado à cabine fechada e, pelo trajeto, ele sentiu que se encaminhavam na direção de Denfert-Rochereau, a monumental praça dos leões. De lá, teriam muitos hospitais a escolher num raio mínimo. Morrer em Paris, quanta ironia. Anos antes, de gaiato, Mário escrevera um artigo sobre o sonho de ser enterrado na Cidade-luz. Fora até a funerária procurar entender direito como era o procedimento, mas fora desencorajado. O cemitério do Montparnasse estava cheio e, ademais, para ser sepultado em Paris, a primeira condição era morrer em Paris. Ora, ele jamais morreria ali. Tudo indicava que morreria no Brasil por volta de 2040. Ademais, Paris era lugar para viver, ora essa. Será que depois de um dia de tanta decepção na torre imensa, a história lhe pregaria seus caprichos?

Agora, por ironia, desde que caíra na calçada da rue de Rennes, a condição faltante estava mais próxima de ser atendida do que nunca. Pois a respiração ficou curta na altura do boulevard Arago e o sinal do monitor acelerou a um ponto insuportável. Exausto e com falta de ar, sentindo a boca seca e o desespero do fim, Mário então despertou na cama do hotel da rue de Vaugirard. A língua era uma lixa e ele enfiou o gargalo na boca deixando a água cítrica escorrer pelo queixo, só interrompendo a hidratação para resfolegar. Vendo-se no espelho, parecia um fantasma. Na cabeceira, as tangerinas Jaffa; em cima da mala, a sacola da FNAC. O sol ainda não aparecera e ele custaria a dormir de novo, de tão assustado. Uma coisa era certa: não tomaria mais o metrô em Saint-Placide. Transitaria por qualquer outra, menos por lá. Saint-Sulpice ou mesmo Montparnasse-Bienvenüe. Que começo de dia. Urinou sentado e esfregou o rosto. O ouvido zunia, mas o cuscuz com carne de carneiro do Chez Omar estava salvo.

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