Quando subia a escada da estação de metrô Saint-Placide, Mário acusou uma pontada aguda do lado esquerdo do peito e foi acometido de súbita falta de ar. Foi como se tivesse sido desconectado de um tubo de oxigênio do qual dependesse. É claro que sentiu o suor frio porejar na testa e no pescoço e, antes de arriar o corpo na calçada como um animal lancetado, em meio a dezenas de passantes, só lembra de ter visto uma grande placa onde se lia a palavra “Numismatique”. Apesar do ar fresco, a camisa ficara empapada de suor em segundos. Foi então que um par de mãos que pareceram experientes e reconfortantes, lhe apoiaram a cabeça numa espécie de sobretudo dobrado e uma voz lhe pediu que se mantivesse calmo pois o socorro estava a caminho. No fundo da rua, ele divisou o enorme edifício que os parisienses chamam de Torre Montparnasse e, pela primeira vez em mais de quarenta anos, achou-o bonito com suas bordas iluminadas. Já trabalhara tanto ali. Voltaria um dia?
Olhando o céu, na tentativa de ver que cara poderia ter naquela circunstância a morada dos bons, não conseguiu enxergar quase nada, salvo as muitas cabeças que o contemplavam com expressão neutra. Uma só mulher lhe sorria, mas parecia ser de pena, o que era compreensível. Um homem negro se ajoelhou e ele o reconheceu: o senhor vai se recuperar, disse com ar brincalhão. O jeitão era inconfundível e o sotaque idem. Sim, era o bilheteiro do cinema “Les 7 Parnassiens” – as salinhas pequenas que ele frequenta quando em Paris. “Merci”, balbuciou. Ainda ontem vira lá “Jauja” e comprara pipoca doce. Será que o reconhecera? Mas a farmacêutica da rue de Rennes, esta sim, se apresentou e até brincou: está vendo no que dá o senhor não ter vindo comprar suas pílulas de Circulymphe? É o remédio para a circulação do sangue nas pernas. Ele sorriu com meia-boca enquanto ela lhe tomava o pulso. Sabia-lhe o nome, logo afloraria, se sobrevivesse. Tudo estava condicionado a isso doravante.
Ouvira uma sirene ao fundo? De súbito, a respiração quase se normalizou. Então viu o caixa da livraria FNAC que o atendera e com quem discutira por um desconto de três euros que lhe fora negado. É que não trouxera o cartão-fidelidade e o moço disse que não conseguiria dar o abatimento com o número do passaporte. Furioso, ele foi injusto e disse que tudo era fácil na hora de aderir, mas difícil quando era para gozar dos benefícios. Apesar da fila longa, o rapaz tentou explicar as limitações do sistema e, mesmo assim, ele saiu bufando. Pois ali estava ele, bem ao lado das duas chinesas do “Traîteur et Pâtisserie Sino-Française”, onde adora tomar a sopa ‘wonton’ – que elas afrancesaram para caldo de ravioli de camarão. Logo também reconheceu o jovem altão, tipo varapau, que é atendente no L´Exky, do boulevard Montparnasse. Ele é dinamarquês e está sempre sugerindo as novidades da comida orgânica primorosa que fazem lá. Será que um dia voltará a tomar a sopa de cenoura com “croûtons”?
Era hora de se perguntar: como coincidira que os comerciantes do bairro estivessem de passagem ao mesmo tempo em que ele agonizava? Quando o colocaram na maca confortável, viu que a farmacêutica Dominique- era esse o nome da loirinha – murmurava coisas para o enfermeiro de bata branca que comandava a ambulância. Ele ainda pôde distinguir o tunisiano simpático que o rouba quase toda noite quando compra mexericas de Israel. Ele vende-as a 4,99 euros o quilo, quando o patrício que fica só trezentos metros rua acima, oferece a mesma origem e em melhor estado a quatro euros e trinta. Mas como ele sempre compra bastante, prefere a conveniência. Mesmo porque também leva água e outros itens pesados, logo a proximidade do hotel tem seu valor. Naquela hora, o olhar do fruteiro traduzia desalento e compaixão. Parecia pensar: não podia perder um freguês desse naipe na véspera do Dia do Trabalho. Quanto a ele, Mário, pensava no cuscuz marroquino do Omar a que faltaria mais tarde.
Quando fecharam a porta da ambulância, lhe aplicaram uma injeção no braço e uma moça gentil foi fazendo perguntas em rápida progressão sobre alergias, diabetes, hipertensão e medicamentos. O barulho da sirene chegava filtrado à cabine fechada e, pelo trajeto, ele sentiu que se encaminhavam na direção de Denfert-Rochereau, a monumental praça dos leões. De lá, teriam muitos hospitais a escolher num raio mínimo. Morrer em Paris, quanta ironia. Anos antes, de gaiato, Mário escrevera um artigo sobre o sonho de ser enterrado na Cidade-luz. Fora até a funerária procurar entender direito como era o procedimento, mas fora desencorajado. O cemitério do Montparnasse estava cheio e, ademais, para ser sepultado em Paris, a primeira condição era morrer em Paris. Ora, ele jamais morreria ali. Tudo indicava que morreria no Brasil por volta de 2040. Ademais, Paris era lugar para viver, ora essa. Será que depois de um dia de tanta decepção na torre imensa, a história lhe pregaria seus caprichos?
Agora, por ironia, desde que caíra na calçada da rue de Rennes, a condição faltante estava mais próxima de ser atendida do que nunca. Pois a respiração ficou curta na altura do boulevard Arago e o sinal do monitor acelerou a um ponto insuportável. Exausto e com falta de ar, sentindo a boca seca e o desespero do fim, Mário então despertou na cama do hotel da rue de Vaugirard. A língua era uma lixa e ele enfiou o gargalo na boca deixando a água cítrica escorrer pelo queixo, só interrompendo a hidratação para resfolegar. Vendo-se no espelho, parecia um fantasma. Na cabeceira, as tangerinas Jaffa; em cima da mala, a sacola da FNAC. O sol ainda não aparecera e ele custaria a dormir de novo, de tão assustado. Uma coisa era certa: não tomaria mais o metrô em Saint-Placide. Transitaria por qualquer outra, menos por lá. Saint-Sulpice ou mesmo Montparnasse-Bienvenüe. Que começo de dia. Urinou sentado e esfregou o rosto. O ouvido zunia, mas o cuscuz com carne de carneiro do Chez Omar estava salvo.
***
Fernando:
Sua crônica tem um inusitado modo de nos apresentar o melhor de Paris, que são os personagens do cotidiano, aqueles que o turista capturado pela pressa e a obrigatoriedade de ver tudo em poucos dias, não tem o prazer de desfrutar. Nunca se sofreu tanto por conta da tentativa de realizar um desejo, como essa de Mário por um Cuscuz Marroquino.
Parabéns!
Meu caro Fernando.
Como não conheço nada dos locais e das guloseimas citados, fico a rir pelo seu bom humor no relato dessa sua quase passagem para o sepultamento em Paris. Mas,
e na verdade, passarei a conhecer locais e comidas, mesmo via internet. E lembrar que, nos deixa uma impressão interessante. Existirão pessoas tão interessante e tão propensas a ajudar o próximo?
Prezado Nealdo,
Quer saber? Cabeça de gordo pensa em comida até em pesadelo. Esse tal Mário deve ser um bicho bem encorpado.
Quanto à audiência em torno, amigo, nem tudo é ajuda e solidariedade. Em Paris, dizem, até a agonia é espetáculo.
Abraço,
Fernando
Beleza de texto. Fiquei matutando: Será? Sempre ouvi dizer que parisiense não é nada gentil com turista. Verdade que não é relato de um turista, mas sim de um imigrante já integrado à paisagem. É ficção, suponho. Mas é assim mesmo esse mundo na ficção?
Prezado Dourado,
Às vezes temos a impressão que a ficção é realidade.
Às vezes, a verdade é que a realidade pode ser ela sim, ser uma boa ficção.
Isso me faz recordar, recente jantar agendado por um amigo muito próximo, com um casal dele conhecido e recomendado, em Paris.
Para surpresa dos convidados, eis que surge, no meio do jantar ( um magnífico pernil de carneiro ao forno, com batatas cozidas na graxa do mesmo ), esse amigo, que matreiramente se insinuou estar no Brasil naquele instante, mas que da França havia articulado o inesquecível e surpreendente encontro.
E por mais das inimagináveis coincidências que nesse universo pudéssemos supor, lá estávamos todos juntos, no dia seguinte, desgustando um magnífico cuscuz marroquino, no incomparável Chez Omar, rue de Bretagne, no Le Marais, antigo bairro dos judeus de Paris.
Só faltou citar, para que a ficção se tornasse a mais perfeita realidade, o bom restaurante japonês, já na noite seguinte, no bairro de Montparnasse.
É a ficção virando realidade e vice versa.
Dourado; cada vez mais surpreendente .
Um brinde à Jean Francois e Anne Marie.
Com alegria,
Hélio Masur
Fernando,
Só agora li, encantada, seu sonho do Mário. Logo na rue des Rennes!! Se tal piripaque fosse em 1985 seguramente eu poderia ter sido mais uma passante a confortar o Mário na calçada… Naquele ano frequentei a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na Maison des Sciences de l`Homme-MSH, que fica no Boulevard Raspail, paralelo à rue des Rennes, após a Aliança Francesa. Caminho diário pelas imediações, FNAC, lojinha tipo armazém que vendia artigos feitos à mão do Marrocos onde, sempre que voltei a Paris nos anos seguintes, anos ímpares, renovava os confortáveis e belos chinelões de couro marroquinos que custavam 10 Francos, uma pechincha… Indo sentido Montparnasse, seguia pela rue des Rennes, ou sentido Saint German, pelo próprio Bd. Raspail, vez ou outra parando no Bon Marché que ninguém é de ferro, mesmo com Bolsa apertada da CAPES.
Uma região cheia de história, como aliás seria qualquer outra onde tivesse vivido o Mário porque Paris é história. Vai ver ele visitou, bem em frente à MSH, o luxuoso Hotel Lutecia onde se hospedaram os oficiais da Gestapo durante a Ocupação da França na II Guerra. Caso folclórico, mais para lamentável, nesse episódio foi o da famosa Coco Channel, a do tailleur e dos movimentos feministas, que manteve apartamento ali durante todo aquele período cinzento, regalia só concedida ao alto escalão nazista. Como? Envolvimento com um oficial SS, fato bem explorado pelos biógrafos.
Outro lugar de interesse nas proximidades, é a casa onde viveu Simone de Beauvoir, infância e juventude. Fica numa pequena rua perto do metrô Saint Placide, entre o Bd. Raspail e a rue des Rennes, fico devendo nome e número, prédio velho de 6 andares, grades de ferro que mais parecem um bordado, como são em todos os quarties. Quem me dera ao menos uma chambre de bonne em alguma cobertura no sétimo, mesmo com os pombos… Ela morava no 1º andar. Conta, em biografia, das carroças e carruagens que passavam em sua rua sem calçamento, vendedores de comidas, frutas, até animais e o cuidado que se devia ter ao jogar da varanda da janela água usada da bacia evitando atingir pessoas. Isso já no comecinho do século XX, imagine, e depois das intervenções urbanísticas do Barão Haussman!! Bom, o Mário foi socorrido e levado na direção de Denfert. Se a ambulância que o atendeu preferisse lugar mais próximo poderia ter cortado o Bd de Montparnasse, seguido pelo oitão da Torre, ele trabalhou ali , até o Hospital Universitário, ainda no 14ème, nas bordas do charmoso parque Montsouris, onde Lenin costumava passear. Fica prá outra… Outra, não comigo diria Mário.
E chega de intromissão no seu conto meu caro Fernando. Desculpe. Mexeu em lembranças. Boas lembranças. De bons tempos. Grd abraço
Rosa
Rosa,
É um prazer acordar com suas reminiscências sobre a rue de Rennes. Vê-se claramente que Hemingway estava certo ao dizer que ninguém jamais sairá impune de uma temporada em Paris. E que a levará no coração pelo resto de seus dias como um ativo de valor intangível. Suas palavras, sua intensidade, o detalhamento das lembranças, enfim, se lhe atestam a veracidade.
Em 1985, teria sido difícil nos encontrarmos na região. Mas em 1973, 1975 e 1976 teria sido mais verossímil já que meus endereços de referência eram na área. Te falo das estações de metrô rue du Bac, Vaugirard, Dupleix e Sévres-Babylone onde, lá atrás, um telefone avariado fazia a delícia dos que queriam falar com o Brasil. Para não dar na vista, a fila se organizava por ordem de chegada e as pessoas ficavam circulando.
Entre 1983 e 1998 – quinze longos anos -, eu tive que me distanciar de meus bairros favoritos. Não que não fosse visitá-los regularmente. Mas meus deveres corporativos me obrigavam a gravitar num circuito excessivamente chique: na rue de la Paix, Boulevard des Italiens, Place Vendôme e região da Étoile. A vida de um alto executivo não lhe pertence, mas à corporação que é cheia de caprichos de representatividade. Não foi grande sacrifício, mas essa não era a Paris que eu aprendera a amar quando jovem. Sou um agrestino de alma arredia ao consumo e crescido na beira do Capibaribe. Não é fácil me arrastar para as Galeries Lafayette ou o Printemps – onde acho que nunca entrei em 42 anos de vistas regulares à cidade. Meus fetiches publicáveis são livros, vinho e gastronomia – nessa ordem.
Mais tarde, voltaria a ser mais assíduo na Paris do coração que, para mim, sempre será Saint Germain – rue de Saint Simon – e Montparnasse. Numa viagem de despedida de meu pai dessa vida, ficamos no Lutetia – ironicamente hoje pertencente a um grupo empresarial israelense – e papai passou a noite insone. Quando perguntei porque ele não dormia, ele respondeu que estava pensando nas cenas quentes que aquelas paredes tinham testemunhado. Envolvendo oficiais SS e fogosas francesas colaboracionistas, nem por isso menos tentadoras. Então fui eu que perdi o sono.
De nossa querida Simone de Beauvoir – que amei desde que li “Les mémoires d´une jeune fille rangée” -, as recordações são muitas. Da casa de nascimento no boulevard Raspail ao hotel de refúgio de guerra com Sartre na rue Cells, o endereço que mais me agrada é o apartamento de solteira da rue Sclocher, que dá sobre o cemitério de Montparnasse, onde os dois hoje descansam, a dez metros à direita do portão principal da Edgard Quinet.
Certa época, no metrô Cambronne, tive um cliente num prédio da place Alexandre Cabanel. Ora, lendo “A lebre da Patagônia”, de Claude Lanzman, constatei que ele se encontrava com Simone ali mesmo, naquele endereço, para tórridas tardes a dois. O pacto pedia que ela contasse tudo a Sartre. Se não contasse, então sim seria adultério. Cheguei a vê-los um dia na “Closerie des Lilas”.
Por fim, tempo desses um casal amigo, irremediavelmente enlutado pela perda brutal da filha única de 25 anos, me chamou depois do jantar para dar uma volta no parque para levar o cachorrinho que era dela para um passeio. Pois bem, era no parque Montsouris – o do camarada Lênine -, a dois passos da rue Alésia, metrô do mesmo nome.
Por fim, o MSH saiu do velho endereço e o cara do café – onde já joguei muito xadrez no tabuleiro que fica à disposição dos comensais – me disse que recebeu ali por anos Roger Bastide e Alain Touraine, afora muita gente da América Latina. Da última vez que estive no Lutetia, foi para conversar com Fernando Henrique Cardoso juntamente com um amigo. Era a continuação de uma conversa que começara em Tel Aviv na semana anterior. Com FHC, a seu turno, minhas recordações remontam a 1976, em Cambridge, cuja casa frequentei muito. Mas essa realmente já é outra história.
Quer saber, Rosa? Um dia que começa assim não pode terminar mal. Essa cidade para mim sempre foi trabalho e missão. Mas foi ali que vivi alguns dos bons pedaços da vida. E, por ironia, calhou desse tal de Mario me sair do controle para ter um troço justamente onde mais o autor foi feliz. Como explicar uma ironia dessa? Qualquer hora dessa elaboramos mais a questão. E, então, tomaremos um Côtes du Rhône que trarei do Bon Marché.
Pode me cobrar.
Bisou,
Fernando
Fernando,
Com atraso em retomar os comentários da rue des Rennes, você já deve estar além da Margem esquerda do Capibaribe, talvez nem chegue a ver esta continuação.
Em todo caso: D`accord, vinho aceito. Em volta da mesa com Sartre/Beauvoir pode-se falar facilmente da vida alheia, deles próprios e, por exemplo, da entourage intelectual recifense que os acompanhou, nos anos 60, à Faculdade de Filosofia na rua Nunes Machado, onde eles fizeram intervenções num Seminário Internacional de Literatura. Eu, estudante do curso de Filosofia, colegas e professores improvisamos uma mesa redonda para ouvi-los. Aceitaram prontamente. Ousei perguntar a Sartre, que havia visitado recentemente Cuba e União Soviética, como ele explicava a conciliação entre existencialismo e socialismo real. Nessa época você estava aprontando na rua da Aurora no cais da margem esquerda do querido rio.
Falaremos também de outras vidas alheias que apareçam. Da última vez em Paris, hà dois anos, vi com tristeza a MSH fechada, abandonada. Numa livraria próxima me informaram que foi transferida para um anexo da nova Biblioteca às margens do Senna. Você falou no Café, me deu realmente saudade, aquele simpático e acolhedor jardim interno com mesinhas. Roger Bastide não conheci. Touraine era o Diretor da École na minha época e cheguei a participar de alguns seminaries dele. Vi que Lutetia é mesmo com t do bom e velho latim. Que maravilha deve ter sido sua estada com seu pai. Reconfortante para você.
Abraço Fernando,
Rosa
Oi Rosa,
Sobre o prédio da Nunes Machado, tome saudades também. Lá funcionou durante anos o Ginásio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco, onde fui estudar em 1970, no finalzinho do funcionamento da Fratelli Vita.
Sobre a visita do casal Sartre e Beauvoir, se especula que Jean-Paul teria se encantado com a tradutora que lhes foi designada: uma ruiva chamada Cristina Tavares Correia, conterânea minha e sua. Ela estava lá nesse dia?
Outro endereço inesquecível desse pedacinho é o 27 rue de Fleurus onde vivia Gertrude Stein, sua companheira Alice Toklas e um gato. Hemingway passava lá para um dedo de prosa e a imortalizou no “A moveable feast”.
Beijo,
Fernando
É isso aí Fernando. A Fratelli Vita foi até 1970? Tomava sempre uma garrafinha pequena de guaraná antes das aulas numa barraca que eles mantinham ao lado da fábrica. O Ginásio de Aplicação funcionava num prédio atrás da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, como escola modelo, agregado à Faculdade, com professores muito qualificados . Que bom saber que teve continuidade no prédio da velha Faculdade. Vc teve então um ensino de excelência. Funciona ainda hoje?
Sobre o encantamento de Sartre por Cristina não só houve como teve desdobramentos. Quando me referi acima a falar da vida alheia com Sartre/Beauvoir à mesa, incluía também esse fato. Cristina não era tradutora, ela conheceu o casal como jornalista e irmã de Lúcia Tavares, professora de literatura espanhola na Faculdade, Depto. de Letras, e uma das organizadoras do tal Seminário. Na verdade não vi Cristina por lá. A coisa se deu em eventos paralelos e foram muitos. Imagine a efervescência desses dias! Muitas histórias.
Recife foi uma festa, parafraseando Hemingway.
Abr. Rosa
Rosa,
Lembro tão bem de Cristina. Lembro dela a cavalo passeando pelo Sanatório Tavares Correia e saindo rua afora até o parque dos eucaliptos para uma cavalgada. Era uma cena quase inglesa. Já adulto, estive com ela umas poucas vezes. Ela era correligionária política de tio Ivan Rodrigues. Hoje deploro não lhe ter perguntado mais sobre aqueles dias. Será que ela voltou a vê-los em Paris para um drinque no Deux Magots?
O fato é que eu me apego muito aos endereços. Dizem meus detratores que até mais do que às pessoas – como os gatos. Assim, fiquei tão feliz em saber por você que o local das palestras foi o amado prédio da Nunes Machado que pesquisei mais. Então, achei o trecho abaixo, publicado na revista Continente, quase quinze anos atrás. Não descobri o autor, mas imagino que possa ter sido Homero. Ele corrobora sua tese. Convenhamos: o eixo Recife-Paris ainda tem uma história a ser contada.
“No Recife, ficaram no Grande Hotel, onde hoje é o fórum não sei o quê, ali na margem do Capibaribe, já bem próximo do ponto onde nosso rio se entrega ao mar. Fizeram palestras, conferências, deram entrevistas publicadas com grande destaque pelos jornais da cidade e se preparavam para partir de regresso a Paris, quando Simone de Beauvoir adoeceu com febre tifo. Foi hospitalizada e ao ter alta o médico recomendou que ficasse alguns dias em convalescência no Recife, antes de regressar à França nos ronceiros aviões de 50 anos atrás. A professora de espanhol Lúcia Tavares, irmã da jornalista Cristina Tavares, havia sido cicerone dos dois escritores e se tornado amiga de Simone. Por isso, convidou-a para ficar em sua casa enquanto convalescia. Durante o dia Sartre fazia companhia a Simone e à noite voltava ao hotel.
Sartre, cheio de amantes em Paris, há muitos dias não tinha mulher. Estava no Brasil desde algumas semanas e visitara outras cidades antes de escalar no Recife. Daí, talvez, ter se apaixonado pela jovem Cristina e lhe feito insistente assédio, chegando até a brandir uma proposta de casamento. A diferença de idade entre Sartre e Cristina era grande e ele, apesar de toda a aura de intelectual mundialmente famoso, não impressionou a futura deputada federal e brava combatente da ditadura. A “história de amor” de Sartre e Cristina ficou nisso e foi narrada com bom humor por Simone de Beauvoir em suas memórias. Mas o folclore da passagem do filósofo pelo Recife foi muito além”.
Fernando,
Conversa puxa conversa. Pinço, por cima, 3 pontos do seu escrito:
Ivan Rodrigues. Amissíssimo do meu pai. O conheci eu ainda criança. Lembro de muitas coisas da convivência,a serem comentadas oportunamente.
Cristina. Não sei se chegou a ir ao Deux Magots, ao Le Coupole ou ao, esqueci o nome, o mais conhecido…,em Saint Germain antes da Igreja. Estive sempre com as três irmães, Dna. Mercês e Paulo enquanto morei em Recife, até 1965. Depois só fui retomar contato com Cristina na famosa eleição de meados de 70 quando chegaram a Brasília pelo MDB como deputados, de uma só vez, Cristina, Robertao Freire e Marcus Cunha. Uma baita comemoração. Outra história e outras histórias. Mais perto de Cristina quando ela foi presidente da Comissão de Tecnologia da Câmara e eu trabalhava na temática no IPEA. Nunca tocamos no assunto Sartre. E passou em brancas núvens na sociedade recifense. Mesmo que se falasse hà muito tempo da existência de uma caixa de correspondência entre os dois. Ela está em algum lugar. A abrir e publicar o conteúdo. Hoje só estão vivos do clã Paulo e os sobrinhos. Lucia esteve no aniversário de 90 anos da minha mãe em 2010, mas eu soube depois que faleceu.
Não tenho ideia de quem é Homero mas o texto é ótimo. A febre tifo de Simone foi exploradíssima. Conversa para depois.
Eixo Recife Paris. Você já conversou com Brennand? O pintor, não o primo que tb tem muitas histórias. Passou uma vez mais de hora comigo e uma amiga só falando de sua formação em Paris.
Grande Hotel. Outras tantas histórias. Ficam prá outra hora. Estou correndo.
Rosa,
O local a que você se refere, o favorito de Sartre, certamente é o Café de Flore, onde os garçons lhe reservavam uma mesa de canto e não deixavam que tietes e admiradores o perturbassem enquanto escrevia. Fica exatamente na frente da Brasserie Lipp, de tantas outras histórias. O casal também gostava muito de frequentar alguns pontos em Montparnasse. Além do já citado La Coupole – famoso pelo “dancing” no subsolo que fervilhava nas tardes de domingo e pela voracidade das “panteras” em laçar rapazes jovens -, eles ainda iam bastante ao Closerie des Lilas e, em torno da estação de metrô Vavin, eram vistos no Select, no Le Dôme e, no caso de Simone, na época da “aggrégation”, no La Rotonde. Detalhe: Sartre só andava com dinheiro vivo no bolso. No Brasil, já teria sido esfaqueado na rua.
Folgo em saber que Paulo Tavares ainda está vivo. A última vez que estive com ele foi, por mero acaso, na recepção do hotel do Sol, em Boa Viagem, então de sua propriedade. Rememoramos, então, uma passagem que já parecia remota, mas que foi divertida. Eu caminhava pela Via Veneto quando dei de cara com ele e D. Suzana. Eles estavam no hotel Excelsior e me convidaram para jantar no Mamma Leone. Encantado com as massas da matrona romana e embalado pelo vinho em profusão, Paulo me pedia para traduzir para a Mamma que a queria em Garanhuns, cozinhando no hotel principal da rede, no Sanatório. Abri a agenda para mostrar à cozinheira onde ficava a cidade. Ela, agastada com a insistência, repetia que tinha netos para cuidar e que já não tinha idade para aventuras. D. Suzana assistia resignada a nossa argumentação. Nem o bom clima de Garanhuns a demoveu.
Não fui próximo a Cristina, mas Pedro, meu primo, foi. Nos tempos da Ciência e Tecnologia, lembro dela dando declarações de que sonhava em ver e viver o mundo depois do ano 2000. Mas não deu. Lembro da alegria genuína do velho Ulysses ao vê-la e abraçá-la. Era um carinho só. Paris é isso, Rosa, basta começar que, para cada “arrondissement”, haverá uma história que levará inevitavelmente a outra. Sobre impressões de franceses no Recife, contudo, acho que poucos depoimentos se comparam ao de Camus. As linhas que escreveu sobre o frevo são de uma energia tão trepidante quanto o próprio. Mas se formos nesse diapasão, quando é que termina essa história? No número de Será? que está para sair, de repente encontrarás algumas reminiscências da rue des Écoles. Para começarmos tudo de novo.
Fernando
Salve Clemente!! Novamente caí na esparrela ortográfica. Escrevo direto como cantiga de grilo, na madrugada, sem me ater aos devidos cuidados. Claro que é amicíssimo. Sem desculpas. Ou não é?
Fernando,
Para encerrar esse ping-pong franco recifense, só duas coisinhas tocadas por você, novas à conversa, sem falar dos cafés e locais frequentados pelo casal Sartre/Beauvoir que vc lista com competência: Lipp e Camus. Além da Brasserie, que fui apenas duas vezes, a Lipp da minha atenção e que me tomou muito tempo de leituras e entrevistas foi a fábrica de relógios Lipp que se tornou autogestionária após a mais famosa greve operária do século XX. Aí pelos anos 60.
Li muita coisa sobre a visita de Camus ao Brasil, mas não sabia desse depoimento dele sobre o frevo. Vc teria isso? Sou fissurada em Camus, até visitei seu túmulo, bem maltratado aliás, protestei, e vi a casa onde ainda hoje vive sua filha, na bela cidadesinha de Lourmarin, na Provence. Foi daí que ele saiu de carro pra Paris e 40 minutos depois aconteceu o desastre que o matou. Romântico como era, possuia uma pequena gleba de terra onde plantava uva e chegou a produzir algum vinho.
Fico por aqui, nos vemos em outros textos. Bj
Rosa
Rosa,
Acho que é mesmo hora de nos despedirmos nesse espaço e marcarmos encontro em outros. De outra forma, a fila não anda. E pensar que tudo começou com a síncope de Mario na estação de metrô Saint-Placide. Mas não queria deixar de assinalar que o Diário de Pernambuco de 6 de novembro de 2013 trouxe uma matéria completa e ilustrada sobre essa passagem de Camus pelo Recife, assinada pelo jornalista Paulo Goethe.
Nela pontificam pessoas como Aníbal Fernandes, Lula Cardoso Aires, Edson Nery da Fonseca, Pai Apolinário, Baby Salgado e Ascenso Ferreira. Gilberto Freyre os coordenava e instruía do Rio. Tal como aconteceu com Simone de Beauvoir, Camus também caiu doente. Menos mal que nos deu um galardão extra: “Positivamente, gosto de Recife, Florença dos Trópicos, entre suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas”.
Tenho o “Diário de Viagem” em algum lugar. No dia que achá-lo, será seu. Mas leia o DP e curta as ilustrações que acompanham a matéria singular e caprichada. Em tempo: não sabia que Lourmarin estava ligada aos últimos momentos dele. De lá lembro da “tapenade” untuosa, do pão crocante, do vinho gelado, do cheiro de alecrim e lavanda, e das cigarras do entardecer.
Fernando
Fernando,
Era prá encerrar, e vc me vem falar das comidinhas e cheiros de Lourmarin. Não experimentei essa tal de tapenade, mas degustei bons vinhos nas vinículas familiares, com o sabor da descoberta e da aventura pelos caminhos de terra batida da região do Luberon.
Edson Nery da Fonseca viveu até o ano passado em Olinda, próximo à minha mãe. Vou procurar o DP. Grata pela lembrança e se prepare que não esquecerei de cobrar a jóia “Diário de Viagem”!que não li.
Atë,
Rosa
Rosa,
Uma amiga sevilhana que tem acompanhado essa troca de impressões parisienses disse que nossa correspondência ganhou o diapasão de uma pedra atirada no meio do lago. E que as pequenas ondas – já que não se pode mais falar de marolinha no Brasil sem evocar uma triste lembrança -que agora nos levam a Camus bem que poderiam servir de guia turístico e sentimental da Paris de ontem, hoje e sempre.
Sem chegar a tanto, tive acesso a uns trechos do diário brasileiro de Camus e destaquei para um eventual leitor – especialmente para ela que não ousa comparecer aqui porque teme cometer erros em português – quatro passagens que muito dizem da forma de se viajar. Sobrou até para Dorival Caymii, aqui rebatizado.
“Modo fácil de conhecer uma cidade é procurar saber como os indivíduos se comportam no trabalho, no amor, na morte.”
“Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar.”
“O contraste mais impressionante é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos prédios modernos, com as favelas, às vezes a cem metros do luxo, agarradas ao flanco dos morros, sem água nem luz, onde vive uma população miserável, negra e branca. As mulheres vão buscar água no sopé dos morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua provisão em latas de alumínio, que carregam na cabeça como as mulheres kabiles. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira ininterrupta, os animais niquelados e silenciosos da indústria automobilística americana. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados. É bem verdade que, segundo um dos meus companheiros, ‘pelo menos, eles se divertem muito’.”
“Depois do jantar, Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido.”
Não é legal?
Fernando
Fernando,
Adorei as citações de Camus. Estão no “Diário de Viagem” que vou ganhar quando e se vc achar? Mas, do que gostei mesmo foi a sua amiga sevilhana compartilhar nossos comentários…
Abs, Rosa
É sinal de que o bom trato que Joao Rego dá a “Será?” ignora fronteiras nacionais e promete levar os passageiros dessa nau pernambucana muito mais longe do que o planejado.
Em duas postagens recentes, encontrei uma amiga de Belém e outra de Porto Alegre. Quanto à nossa espectadora de Sevilla – já está saindo da concha, deixou até uma mensagem em castelhano dia desses no site -, não está só.
Isso porque uma pessoa nos acompanha à distância e qualquer hora dirá a que veio. Trata-se de minha associada na Suécia, Charlotta B., de Gotemburgo. Além de trabalharmos juntos em projetos de internacionalização na Escandinávia e aqui (ah, esses aviõezinhos Gripen), ela integra um grupo que se originou na Inglaterra e que congrega mais seis malucos, dos quais sou só mais um.
Charlotta ama Paris e também é fluente em várias línguas: sueco, inglês, alemão, dinamarquês, norueguês, holandês, castelhano, italiano e francês. E olha que o português já está bem embalado. É essa a gente que nos espreita. É um Big Brother de bom gosto, pelo menos. E com o tempero de Pernambuco.