Teresa Sales

Peixe zangado.

28 de setembro de 2016

E fomos passar uns dias na praia de Tamandaré. Chegamos direto ao centro da cidade, em busca de uma peixaria. Um sábado. O sol já se despedia do mar quando mergulhamos. Mal começou a primavera, e as praias de minha terra já foram oficialmente inauguradas, pelo credo dos pescadores, no dia sete de setembro. Qual nada! É preciso esperar o verão, o sol escaldante, areia que queima a sola dos pés. Só então, o mar quentinho, um ofurô.

A casa onde nos hospedamos foi se enchendo de cheiros: mangas espadas, cajus, abacaxis, a cor de vinho tinto recobrindo jambos do Pará, o verde escuro das pinhas maduras. Jambos e pinhas de branco sabor. A cachaça é a Seleta, de Salinas. Caju, umbu-cajá, frutas que ela pede. Enquanto preparo a comida de santo.

Primeiro, lavar as postas e a cabeça do pargo. O rapaz da peixaria não tratou o peixe como devia. A mulher agora, em casa, enfia dedos e mãos nas peles e restos de vísceras e sangue. Nunca fez isso antes. E sente um estranho prazer. Mexesse em suas entranhas? Lavar cada posta. Secar em papel de cozinha, que não tem nessa precária cozinha, e o papel higiênico serve. Quem não tem cão caça com gato, é o que diria José Saramago, que tanto gosta dos ditos populares.

Limpas, enxutas e dispostas biblicamente numa fôrma de pirex, são agora besuntadas com sal e limão. Se tivesse, pimenta do reino. A mulher deixa as postas a descansar nessa salmoura, esfrega o que restou dos limões em suas mãos, também lavadas e enxutas. E se dirige à sala, para colocar um disco. Escolhe Dorival Caymmi.

O balcão de aço inoxidável da cozinha não conseguiu resistir à maresia. Está em péssimo estado, com manchas de ferrugem, afora ser por demais pequeno para os adereços da comida de santo. A mulher queria alguidares onde só há alumínios. Improvisa, pois, afinal, quem não tem cão…Uma panela para a cabeça, outra, tipo frigideira, para as postas.

A cebola, mestre de cerimônia em tantas comidas no mundo, aqui também começa o ritual. Para as quatro postas de tamanho médio, duas cebolas grandes, que serão cortadas, com boa faca, em rodelas. As mais bonitas, do meio da cebola, para as postas, que estas são as rainhas da festa. As feiosas, cascas, que não vão aparecer, para a panela do caldo que se fará da cabeça do peixe, o primeiro a ir ao fogo e o último a sair, em forma de pirão. As rodelas mais fininhas, do cabo e do rabo da cebola, essas ficam reservadas para a farofa.

Enquanto a mulher prepara o peixe, ouve música. Ela gosta de música, e elas têm horas na sua vida. Pela manhã, grandes orquestras, piano, violinos, os clássicos, os barrocos. A tarde combina com a música popular brasileira, como o Dorival que ouve agora. E a noite, a noite é do jazz.

Espera seu homem. Exu que faz tarefas de rua.

Obrigação, celebração. Nessa praia que lembra meu tempo de menina.

Quatro rodelas finas de pimentão verde. Caberiam também o vermelho e o amarelo, o colorido perfeito. E tomates em rodela, que cobrem por inteiro a frigideira de vermelho sangue. Cebolinha e coentro à vontade. Antes de ir ao fogo, é uma bandeira lusitana, sem os rigores da separação das cores. Numa mão, a frigideira (ah! tivesse aqui minha panela de barro comprada no Espírito Santo), onde são postas as postas, na mesma posição simétrica em que descansavam na salmoura. As melhores postas, mais bonitas, mais bem cortadas, vão para as rainhas da festa. A panela do caldo, gata borralheira, receberá os pedaços rejeitados, cabeça de pimentão, coentros com talos, tomates mal cortados.

Desligaram seus celulares. O pouco que os desuniu um dia, não tinha agora importância alguma. A obrigação de Iemanjá e de Oxum vai ser cumprida. À mesa, a moqueca, acompanhada de farofa de dendê, pirão, arroz branco. Nas duas redes do terraço varrido pela brisa fizemos a sesta. A cozinha ficou para trás, perfeitamente arrumada pelos dois.

Ao acordar de um sono leve, quase um enlevo, trazemos para o terraço as mangas espadas. De meu norte ao seu sul, o mesmo ritual menino de chupar manga: primeiro, amolega com carinho, para não perfurar algum ponto preto imiscuído no seu verde bandeira. Um cuidado inútil. São feridas sem cicatrizar.

Manga espada não se come à mesa. É fruta de quintal. Improvisamos um. Depois de amolegada com todos os dedos da mão, basta uma leve pressão dos dentes e faz-se o bico de seio farto por onde fluirá o precioso líquido amarelo. Difícil alguma manga que não tenha sua ferida não cicatrizada, por onde escorre o leite amarelo que vai lambuzar mãos e braços. É hora de começar a despi-la. Com cuidado, para a casca ou o caroço não escorregarem para a areia. Melhor descascar como se fosse banana, um pedaço de casca de cada vez. Os fios do líquido amarelo, que escorreram e se grudam nos braços, vão se transformando numa espécie de fita brilhosa de amarrar presente.

Cada fatia da casca, antes de ser jogada fora, será chupada em seus fiapos grudados onde guarda o mesmo sabor. Tudo ao redor da boca ficará tão lambuzado, como os braços e as mãos. E se chega finalmente ao melhor: chupar o caroço. Hermafrodita fruta, com gozos de corpo de mulher e de corpo de homem.