Teresa Sales
24 de maio de 2015
Eu já andava do meio para o fim da leitura do meu livro de cabeceira dessa viagem, “Del amor y otros demônios”, de Gabriel Garcia Marquez, quando chegamos a Cartagena. Tinha grande curiosidade em conhecer o hotel Santa Clara em seu “edifício cuadrado frente al mar, com tres pisos de numerosas ventanas iguales, y uma galeria de arcos de médio ponto alredor de um jardín agreste y sombrio”. Um almoço no restaurante do hotel nos permitiu ter acesso a esses maravilhosos arcos e ao jardim agreste e sombrio, tal e qual a descrição.
O escritor colombiano fazia suas primeiras letras como repórter de um periódico local em outubro de 1949, quando foi encarregado pelo chefe de redação de cobrir as escavações do antigo convento de onde retiravam as criptas funerárias para proceder à construção de um hotel cinco estrelas. “Date uma vuelta por allá a ver qué se te ocurre”.
A notícia que saiu no diário do dia seguinte se referia à lápide que continha uma enorme cabeleira viva, cor de cobre, que media vinte e um metros e onze centímetros e estava ainda presa a um crânio de criança nomeada na lápide sem sobrenome: Sierva María de Todos los Ángeles. Havia a explicação científica para o crescimento dos cabelos mesmo após a morte. Para o gênio criativo de Garcia Marquez, contudo, fez lembrar uma história contada por sua avó quando ele era ainda menino, de uma marquezinha de doze anos cuja cabeleira se arrastava como uma cauda de noiva e que havia morrido do mal da raiva pela mordida de um cão e era venerada pelos povos do Caribe por muitos milagres. Era só o que precisava para um romance onde ele retoma com a mesma força de Cem Anos de Solidão o seu realismo mágico que a mim me fascina completamente.
Chegamos a Cartagena ao entardecer. A delicadeza própria das flores de Bogotá continuava. Porém ali o seu colorido era mais intenso, mais vivo, insinuando-se de todas as varandas coloniais para o caminhante nas calçadas centenárias. Tivemos também o conforto do bem estar que se sente no clima familiar – tropical, ao nível do mar. (Para hipertensas, muito melhor que a altitude de Bogotá, que nos obrigou a aumentar betabloqueadores, diuréticos e que tais.)
O sol esmorecendo, as ruas começam a ser iluminadas por lampiões. E as calçadas se vestem de animação: gente caminhando, moças e rapazes anunciando os cardápios, aqui e acolá mesas na calçada. Portas e janelas abertas. (Penso no Pina, meu bairro no Recife, que vai se tornando lugar de bons restaurantes, de lojinhas especiais, do começo de uma vida cultural. A comparação é inevitável e faz uma tremenda diferença: lá, passeia-se nas calçadas noturnas como parte do prazer da boa mesa, da boa música, das compras. Aqui o prazer fica pela metade. As calçadas são descuidadas, desertas, e o caminho percorrido é tão somente do carro para o lugar escolhido.)
Atrás do antigo Convento das Clarissas, que continua hoje o hotel mais luxuoso e caro da cidade, numa rua cheia de restaurantes, escolhemos um com mesas na calçada. Não tardou a chegar um conjunto de música e dança local, que vinha se apresentando na rua para os vários restaurantes, a troco das gorjetas oferecidas para o que passava o chapéu. Eu já sabia por leituras e pela cor das pessoas com quem cruzamos na rua, da forte presença negra naquela região da Colômbia, originária do tráfico de escravos para as plantações de cacau, algodão e fumo do tempo em que o país era colônia da Espanha. Cadê a influência negra na música, tão forte nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil? O que ouvimos ali foi uma música rudimentar, herança apenas do pobre repertório musical dos indígenas. Nada muito diferente das músicas típicas de outros países latino-americanos como o Perú, a Bolívia, o Chile, o México. Música tão sem graça.
Os negros foram chegando aos poucos às visitantes curiosas. Primeiro, num comércio pobre de ruas que se misturam às mais turísticas e de comércio sofisticado e restaurantes para turista. Pela pobreza dos produtos oferecidos, lembra o comércio das ruas centrais do Recife – Rua Duque de Caxias, Largo do Livramento, todo o entorno do Mercado de São José – nos anos de 1960. A essas ruas não faltam vendedores ambulantes com seus tabuleiros de frutas, verduras e outros produtos de venda fácil. Comércio para os locais. Essa mistura de uma vida local intensa com o turismo é uma marca forte em Cartagena.
No entorno da Torre do Relógio e Praça Centenária, pontos centrais de onde partem as charretes e os típicos ônibus de turismo, os “shivos”, chega-se à Igreja de São Pedro Clever, que se notabilizou em Cartagena por ser negro. Além do precioso órgão e outras artes sacras, a igreja é um museu dedicado a vários artefatos da cultura negra, como as máscaras e seus significados. Dali fomos ao museu do ouro, com pouca informação a mais para quem já conhecera o de Bogotá. Porém foi lá que comecei a desvendar o mistério da cultura negra local pela conversa longa e descontraída com o responsável pela lojinha do museu. Esclareci finalmente o que são os Palenques e um pouco de sua história.
Seria o nosso Quilombo. Com uma grande diferença. O movimento de fuga dos escravos lá foi de tal monta que a Coroa Espanhola promulgou um decreto em 1691 declarando libertos os africanos do Palenque de São Basílio, que foram portanto os primeiros africanos livres na América. E São Basílio foi apenas uma das muitas comunidades fundadas por escravos fugitivos do século XVII.
Ao sair à rua, já sabia que as palenqueiras que tanto lembram as negras de acarajé da Bahia eram originárias de lá. Em vez das roupas brancas de nossas baianas, vestem-se com as mesmas saias rodadas, blusas soltas e grandes lenços fazendo verdadeiras obras de arte na cabeça, porém tudo muito colorido. Cores que combinam perfeitamente com as frutas tropicais que vendem em seus tabuleiros para os turistas. O sorriso e o acolhimento, os mesmos das baianas de acarajé.
Mas já era nosso último dia na colorida Cartagena. De lá até chegar a Palenque gasta-se cerca de duas horas por transporte terrestre, devido às más condições da estrada. Ficou o propósito de voltar a Cartagena para visitar o Palenque de São Basílio ou São Basílio de Palenque. Não tanto porque, devido às características únicas em sua história, cultura e lingüística, o Palenque foi declarado pela Unesco como “Patrimônio Intangível da Humanidade”, mas pela sua música de origem africana que somente fui ouvir na minha volta ao Brasil, pesquisando na internet. Diferentemente da pobre música de origem indígena de nossa primeira noite em Cartagena, é em Palenque que está a Rumba, o Son, a música Afrobeat.
A ver ainda se foi mesmo Benkos Bioho quem comandou a revolta dos escravos africanos de Cartagena, ou não terá sido alguma princesa angolana, tal como Aqualtune, a avó de Zumbi aqui no nosso Quilombo dos Palmares.
Estimada escritora Teresa Sales.
Antes que tudo, é preciso agradecer pelos “bigus” que tens me dado em tuas viagens. São aprendizados maravilhosos e, hoje, com a lembrança de Gabriel Garcia Marquez, que sempre nos deslumbrou.
É de se agradecer, ainda pela tela que encima o artigo, que nos mostra a beleza que é quase desconhecida de alguns locais da Colômbia, nos dando a ideia, de como é Cartagena.
Trovabraço