Sérgio C. Buarque

Bolsonaro em uma camisa de força.

O ministro da Defesa e os comandantes das forças militares do país ocupavam lugares reservados na mesa de reuniões do palácio presidencial, conversando em voz baixa enquanto esperavam a chegada do Presidente. Inquietos e curiosos com a inesperada reunião, os generais especulavam sobre as intenções do imprevisível chefe de Estado, reunindo a alta cúpula das Forças Armadas, sem pauta definida e num momento particularmente delicado do país. O tema central da atualidade era a pandemia mundial de um perigoso vírus, que tinha intensificado as tensões políticas no país, com as declarações e manifestações exaltadas do presidente. As Forças Armadas não gostariam de se envolver em nenhum dos dois temas, menos ainda na agressividade política do presidente. Mas alí estavam eles para ouvir e seguir, disciplinadamente, as ordens da autoridade política máxima da nação.

Do lado de fora, os jornalistas que fazem a cobertura do Palácio perceberam a movimentação de tantos generais do mais alto escalão, e correram excitados para a sala de imprensa, quase ofegantes de curiosidade e espanto. Em poucos minutos, a sala de imprensa estava completamente lotada de jornalistas de todos os veículos de comunicação, acotovelando-se com câmaras e microfones, celulares tocando e conversas excitadas.

Quando o presidente entrou na sala de reuniões do Palácio, acompanhado dos assessores mais próximos, militares se levantaram e saudaram o presidente com a convencional continência, numa demonstração de subordinação ao Chefe de Estado. O presidente estava muito bem disposto e, mesmo alegre, enquanto caminhava para a cabeceira da mesa. Mas os seus auxiliares pareciam assustados, rostos contraídos e tensos, como se antecipassem desdobramentos desagradáveis da reunião.

O presidente abriu um largo sorriso e iniciou sua fala, agradecendo a presença de todos e afirmando, com gestos largos, que ali estava a sintese da nação, o mais alto poder em defesa dos interesses nacionais. Depois da saudação, entrou direto no assunto: “Como grandes estrategistas, os senhores sabem, mais do que eu, que o nosso país está vivendo um estado de guerra, com a ameaça deste vírus terrível que está matando os nossos concidadãos. Esse vírus, meus generais, é uma arma dos chineses, um instrumento de guerra biológica, para me destruir, tirar do poder o presidente que foi eleito pelo povo. Os senhores devem se lembrar de várias declarações minhas, desde a campanha, de que os chineses estavam comprando nossas riquezas e que, quando fosse Presidente da República, acabaria com esta invasão amarela. Eles não me perdoam e, por isso, querem me derrubar, abrindo o caminho para ocupar nosso território, roubar nossas riquezas minerais, comprar nossas empresas, subjugar nosso povo”.

Fez uma pausa, olhando para os presentes com ar petulante, e se vangloriando do nervosismo daqueles homens treinados para as tensões das guerras e de intensos conflitos. Saboreando o momento, ele retomou a palavra, para completar sua mensagem que, tinha certeza, era a mais brilhante estratégia de combate ao coronavírus.

“Pois bem, se eles querem guerra, vamos à guerra. Não, não se assustem, não estou propondo guerra contra nenhum país, mas ao seu exército invisível, formado pelos bilhões de coronavírus que se espalham pelo país. Só quem entende de guerra neste país são os senhores e as tropas, mais de 300 mil homens, que estão nos quarteis à sua disposição para o combate. Por isso, decidi convocá-los para a guerra total contra o coronavírus”. No meio de uma agitação na sala, o presidente concluiu sua fala direta e sem arrodeios: “Quero que preparem as tropas, que saiam às ruas, com competência estratégica e habilidade operacional, para esmagar o vírus.  Atirem para matar. E como eles são invisíveis, podem atirar a esmo, que vão acertar aos milhões”.

O espanto dos generais ao redor da mesa gerou um tumulto surdo, contrastando com o silêncio dos assessores presidenciais que, de cabeça baixa, não conseguiam esconder a vergonha pelo discurso patético do chefe. O presidente estendeu a mão exigindo silêncio, e continuou a detalhar a sua ordem. “Como se trata de um ataque de outra nação, o coronavírus deixa de ser uma questão de saúde pública para transformar-se num problema militar. Ordeno, portanto, que os senhores mobilizem todas as forças militares do país, todas as armas para a guerra total: artilharia, cavalaria e infantaria, aviação e força naval. Espero que, em poucos dias, tenhamos livrado a nossa querida pátria desta arma invisível de um inimigo bem conhecido”.

Quando o presidente parou, fez-se um profundo silêncio de perplexidade na sala. Alguns generais pensavam que só poderia ser piada, chegaram a insinuar um sorriso, mas a maioria parecia catatônica, paralisada pelo absurdo e inusitado da situação. Passados alguns constrangedores minutos, o presidente sorrindo para o alto, alguns generais perceberam que o homem estava delirando.  Um general pediu autorização para falar, e questionou o poder de fogo das forças armadas diante de um inimigo minúsculo e invisível, e que sequer tem vida própria, existindo apenas quando infiltrado em hospedeiros humanos.

O presidente levantou-se, quase espumando de raiva do questionamento do seu subordinado, e gritou: “Então, general, atirem nos hospedeiros, devem ser traidores vendidos ao imperialismo amarelo”.

– “Isso é uma loucura presidente, o senhor está brincando com coisa muito séria”, ousou questionar outro general, ao que o presidente retrucou ríspido.

– “Mantenha o silêncio enquanto eu falo, general, e submeta-se às minhas ordens, com a disciplina militar que aprendeu nos quartéis. Quando eu era capitão ….”

– “Tenente, senhor presidente, o senhor era tenente”, corrigiu o general.

– “Que seja. Quando eu era tenente, os senhores mandavam em mim. Mas agora eu sou o comandante em chefe das Forças Armadas e os senhores são meus subordinados, me devem obediência e respeito. E eu estou agora dando uma ordem de comando. A ordem é clara. Vão pra rua. Se o povo quer ficar em casa, melhor, vão pra rua e mandem bala nesse virusinho vagabundo, como tudo que vem daquele país comunista”. O presidente concluiu sua ordem e declarou encerrada a reunião. Completamente aturdidos, inicialmente paralisados, os generais foram, aos poucos, se levantando e retirando da sala, murmurando sons de indignação e irritação.

O presidente continuou na sala, exultante pelo seu poder, e se vangloriando da decisão acertada para acabar com aquele vírus comunista que atormenta a vida do planeta, demonstrando a sua superioridade, como líder de uma nação. Os seus assessores mais próximos permaneceram na sala, observando o presidente, visivelmente assustados com o andamento e, principalmente, com a conclusão dramática daquela reunião. O Ministro da Defesa retirou-se junto com os outros comandantes das Forças Armadas, igualmente desnorteado, e tentou conversar com seus amigos da caserna.

Meia hora depois, o Secretário do Presidente entrou na sala com uma carta nas mãos trêmulas e, ofegando, murmurou: “Os generais dominaram a guarda e controlam o Palácio, presidente, despacharam ordens para todos os quartéis, e exigem que o senhor assine esta carta”. O presidente deu um salto de susto e revolta. “Que absurdo! Não vou assinar nada, não me submeto a generais traidores. Chame o Ministro da Defesa!”, ordenou.

– “O ministro se aliou ao levante militar, presidente”, informou o secretário.

– “Ele está demitido. E vou trocar todos os comandos das Forças Armadas. Ningúem tira o poder que o povo me concedeu”. Pegou o celular para mandar uma “live” para suas bases, mas foi impedido pelos seus assessores, inclusive alguns militares, que permaneciam na sala. O oficial de mais alta hierarquia empurrou, delicadamente, o presidente de volta à cadeira, e num tom amigável, trouxe-o de volta à realidade: “O senhor não entendeu ainda, presidente. Se não assinar, o senhor sairá daqui preso”.

– “Isso é um golpe, um atentado à democracia. Vocês estão pisando na Constituição e tentando derrubar o líder nacional, único capaz de enfrentar os comunistas. Vocês estão loucos. Meus filhos vão botar minha tropa na rua e vai correr muito sangue para me tirarem o poder”, gritou o presidente.

– “Seus filhos estão presos, presidente, eles e seus comparsas”, avisou um general. “O senhor precisa entender a realidade, presidente, acabou, assine a carta, deixe o país livre das suas loucuras e vá se cuidar”.

No meio desse tumulto, o Comandante do  Exército entrou na sala com uma folha de papel na mão, provocando um curto silêncio e, pela primeira vez, olhar de terror do presidente. O general  aproximou=se do presidente, estendeu o papel e, antes que ele lesse, informou que se tratava da minuta de um atestado de insanidade e incapacidade mental, que seria assinado por uma junta médica de renomados psiquiatras que já haviam sido conectados e concordaram com o diagnóstico. “O que o senhor prefere? Renunciar por interesse pessoal, ou ser afastado do cargo por insanidade mental?”

O presidente baixou a cabeça, com um tremor involuntário dos músculos do braço e o rosto vermelho de ódio e impotência. Resmungando – “traidores, canalhas, vão entregar a pátria aos comunistas” – assinou a carta com o pedido de demissão. Empurrou o papel sobre a mesa e mergulhou num choro apoplético.

Da sala de imprensa, os jornalistas observavam a movimentação de militares e escutavam os gritos do gabinete presidencial, sem entender nada e numa enorme agitação e falatório. De repente, entrou o general. Numa sala envolvida numa profundo silêncio e ansiedade, falou: “Quero informar aos senhores e a toda a nação que o Presidente da República acaba de assinar pedido de demissão do cargo, e me cabe agora levá-lo ao Congresso para os procedimentos normais de transição. Boa noite”. A sala explodiu com gritos de surpresa, de mistura com alegria, com a bombástica e inesperada notícia. Num primeiro momento, os jornalistas ignoraram o vírus e se abraçaram numa confraternização, pelo fato que logo seria notícia de grande impacto em todo o mundo. De repente, excitados com a informação, pararam a confraternização e mergulharam na produção das matérias que anunciavam uma virada na História do país, mesmo que ainda carregada de incertezas.