Helga Hoffmann

Atenas sitiada - cena do filem 300 de Zack Snyder (2007).

Atenas sitiada – Cena do filme 300 de Zack Snyder (2007).

Como a Grécia, país até agora classificado no grupo dos desenvolvidos, chegou a esta situação, em que ONGs europeias estão estudando maneiras de oferecer ajuda humanitária? O Fundo Monetário Internacional, até semana passada, ainda entendia a Grécia na categoria dos desenvolvidos, isto é, país que tem potencial econômico para lidar com a amortização de suas próprias dívidas sem chegar a uma moratória. Esses dias, pela primeira vez, o FMI já está considerando um programa de reestruturação nos moldes dos que foram aplicados nas moratórias latino-americanas dos 1980s e 1990s, que contempla abatimento da dívida e empréstimos de emergência, e não apenas prolongamento do prazo de amortização e redução de juros como tem sido com a Grécia até agora.

Algum acordo em 12 de julho, apoiado por um novo pacote do FMI, seria a melhor solução para o euro e para a Grécia. Mas quem garante que vai prevalecer um mínimo de racionalidade? E como reagirão ao FMI os extremistas eufóricos, por exemplo, os que no domingo 5 de julho comemoravam a “vitória da cidadania contra os bancos” na Place de la Republique em Paris?

Aqui nestas paragens a gente deveria saber que o processo de gestação de uma crise dessas é bem longo. Na Grécia já leva ao menos 15 anos. Mas agora que a crise da dívida na Grécia chegou a um impasse extremo e o calote anunciado estourou nas manchetes do mundo inteiro (tristemente ocupou também as páginas satíricas: quem não viu que Zeus tem no Olimpo um novo companheiro de nome Kaloteus?), será que adianta revisitar o ingresso da Grécia no euro?

As razões pelas quais a Grécia não pôde ou não soube manter os benefícios econômicos iniciais de sua entrada na Zona do Euro são história econômica. Neste momento, para uma solução do impasse sobre a saída ou a permanência da Grécia no euro não adianta nada ou quase nada conhecer tais razões, pois o teor dos novos compromissos a serem firmados nos próximos dias entre o governo da Grécia e seus credores dependerá menos da racionalidade econômica que da política interna dos países envolvidos e de geopolítica. Extremistas europeus de direita e de esquerda saudaram o contundente “não” dos gregos, ainda que as interpretações do significado daquele “não” de 5 de junho sejam variadas.  Até as intenções de Vladimir Putin já estão entrando na equação grega, ainda que a preocupação com o traçado da fronteira leste da Europa venha à tona com mais frequência entre analistas americanos que entre europeus.

A Grécia é parte da Zona do Euro desde o ano de 2000. Quando entrou já não atendia às obrigações do Tratado de Maastricht, segundo as quais os membros da Zona do Euro devem ter políticas fiscais sólidas, dívida pública limitada a 60% do PIB e déficits anuais não superiores a 3% do PIB. Sua dívida pública era superior a 100% do PIB e o serviço dessa dívida já representava aproximadamente 7% do PIB. Ainda gerava um superávit primário, mas este já não era suficiente para cobrir inteiramente o serviço da dívida.

Os historiadores explicarão os motivos dessa participação imprudente na moeda comum. Inicialmente, a adoção do euro gerou uma euforia que ocultou o risco de crédito (ou o risco de inadimplência). Investidores e mercados financeiros, por alguns anos, mantiveram a percepção (ou ilusão) de que os títulos de dívida dos vários Tesouros nacionais da Zona do Euro tinham grau de risco semelhante. Quando a ilusão acabou, depois que a crise de 2008/2009 atravessou o Atlântico e chegou à Europa, um analista explicou que funcionara nos primeiros anos um “efeito halo” do marco alemão, fazendo com que os mercados financeiros subestimassem as diferenças de estrutura entre os países membros da união monetária.

O fato é que a Grécia começou a derrapar nesses anos de baixos spreads bancários que lhe permitiam tomar emprestado a um custo comparável ao da Alemanha. Aumentou com rapidez espantosa seus gastos e seu endividamento. Entre 2000 e 2009, dobrou o gasto público primário (i.e., exclusive serviço da dívida). Até 2002 ainda havia um pequeno superávit primário, mas depois disso ele desapareceu.  A dívida bruta do país mais que dobrou no mesmo período. Ao adotar o euro, até 2004, a Grécia gerou um boom econômico, que lhe garantiu em alguns anos taxas de crescimento superiores às taxas da média da Zona do Euro. Mesmo assim subiram os gastos e caíram as receitas como proporção do PIB, gerando um déficit primário a partir de 2003. O item “benefícios sociais” no orçamento público mais que dobrou de 2000 a 2009 (de 20 bilhões de euros para 49 bilhões de euros), passando de 15% do PIB para 21% do PIB.

Dado o crescimento econômico inicial, até 2004, mesmo com o aumento dos déficits orçamentários e da dívida bruta, a dívida permaneceu mais ou menos constante como percentagem do PIB, em torno de 100% do PIB. A partir de 2004 essa proporção começa a subir, assustadoramente depois de 2007. Quando chegou a crise financeira mundial, a posição da Grécia era de vulnerabilidade extrema, com uma dívida que já superava 140% do PIB em 2010. Ou seja, a insolvência grega, para quem sabe fazer contas, foi gerada antes da crise mundial de 2008/2009.

Aí a crise chegou a Europa. A crise deflagrada nos Estados Unidos pelo estouro da bolha imobiliária inicialmente se transmitiu à Europa via sistema financeiro, atingindo algumas instituições financeiras europeias mais expostas a derivativos dos Estados Unidos, como bancos alemães. Generalizou-se a incerteza entre os bancos na Europa, que deixaram de emprestar uns aos outros, congelando o mercado interbancário. E os detentores de bônus da Zona do Euro se deram conta do “fator nacionalidade”: spreads se abriram rapidamente, propagando-se a crise no sistema bancário a partir dos bancos mais expostos àqueles títulos de dívida pública que passavam a ser percebidos como de alto risco.  Foi quando surgiu a categoria dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha [Spain é o S da sigla]), os mais endividados e mais frágeis.

Mas a crise não ficou contida no sistema financeiro, transmitiu-se à economia real, que se contraiu fortemente a partir de 2009. Quando se tornou necessário estimular as economias da Europa com políticas expansionistas, não só diminuiu a arrecadação, como o endividamento já era tão alto que gerava temores de default nas economias mais frágeis da zona.

Desde então a Zona do Euro escapou do pânico financeiro, tem conseguido conter a crise e lidar em certa medida com a heterogeneidade das economias, recapitalizou bancos, saneou boa parte do sistema financeiro, fortaleceu a supervisão bancária no BCE, que passou a expandir a liquidez de várias formas, e o crescimento econômico está voltando pouco a pouco. PIIGS já não é sigla que preocupa. Os países da Zona do Euro já estão mais fortalecidos para enfrentar, com a Grécia, uma crise de dívida soberana que, há poucos anos, ameaçaria contagiar vários de seus membros. Ainda assim, a incerteza é imensa, alimenta as especulações mais diversas e uma avalanche de palpites e análises. Quais serão os limites políticos do que os governos podem fazer em coordenação para que a Grécia se mantenha na Zona do Euro ou então para facilitar sua saída sem caos social e hiperinflação?

***