27 de agosto de 2015
Em minhas andanças mineiras recentes, um feliz encontro. Eu não a reconheceria fácil. Um restaurante a quilo honesto, com tutu, canjiquinha, couve, galinha á cabidela (aqui nomeada ao molho pardo) e outras delícias da comida mineira, servida em panelas de barro num fogão à lenha. Já cruzara com seu olhar, de quem estava me reconhecendo, enquanto pesava o prato.
Saboreava a sobremesa (compota de limão cravo com requeijão), quando Rosa, tendo acabado sua refeição, dirigiu-se à minha mesa. Ela não teve dúvida de quem eu era quando escutou meu sotaque nordestino na mesa ao lado da sua. Enquanto fomos repassando o tempo e o lugar distante onde nos conhecemos, nos demos conta que isso foi há vinte anos.
Duas décadas não apagaram a fisionomia de grande parte de meus entrevistados em Boston. Rosa era uma moça linda! Já havia participado de uma das primeiras entrevistas em grupo, na qual me chamou a atenção a peculiaridade de sua atribulada travessia até chegar, desde Varginha, em Minas Gerais, até Boston, nos Estados Unidos. Marcamos uma segunda entrevista na sua casa.
Rosa foi a persona que me inspirou a entremear os capítulos de meu livro Brasileiros longe de casa (Cortez, 1999) com histórias migratórias de sete mulheres, dentre as que fizeram parte de minha amostra de pesquisa. Nesse caso, não foi o rigor da pesquisa sociológica que norteou essa escolha e sim a empatia pessoal com cada uma delas.
A história migratória dessas mulheres foi contada em três episódios: Aventura, Trabalho, Dilema. A aventura foi o forte da história migratória de Rosa (aqui mantenho o mesmo nome fictício do meu livro). Sem conseguir visto, tentou uma travessia malsucedida pelo México por duas vezes, até que conseguiu chegar ao destino viajando clandestinamente e vestida de homem em um navio.
Para escrever a Opinião da semana nesta revista, eu acabara de repassar as notícias sobre os mais recentes fluxos migratórios de países periféricos para países ricos europeus, onde os imigrantes têm que enfrentar todos os riscos de uma travessia clandestina. Encontrar Rosa me fez relembrar, junto com ela, a epopeia que, vivida hoje em tons dramáticos por cada família e cada pessoa que tenta atravessar fronteiras, foi um dia a sua. Com diferenças significativas.
O Brasil, como os Estados Unidos, o Canadá, são países com tradição imigratória, isto é, países que recebem imigrantes. Continuamos um país de imigrantes, hoje numa posição diferente daquele Brasil que, na passagem do século XIX para o século XX, recebia imigrantes de países europeus em crise que para cá, assim como para os Estados Unidos, vinham aventurando uma nova vida. Hoje, no mundo globalizado, o Brasil recebe imigrantes de países mais pobres do que o nosso: bolivianos, haitianos, africanos.
Estamos situados, no contexto das migrações internacionais no mundo globalizado, ao mesmo tempo como um país de recepção de imigrantes e de expulsão de emigrantes.
Como país de recepção, nossas leis migratórias não são melhores ou mais favoráveis ao imigrante estrangeiro do que a dos demais países que estão nessa situação. E nossa sociedade, no contexto das atuais migrações globalizadas, também não é menos xenofóbica.
Já como país de expulsão, o Brasil é um dos mais recentes. Foi somente em meados dos anos de 1980, no contexto da crise econômica que ficou conhecida como “década perdida”, que pela primeira vez o nosso país “expulsou” trabalhadores para outros países. Até então, a imensa dimensão territorial do Brasil havia acomodado apenas migrações internas.
Minas Gerais, celeiro das primeiras migrações internas ao estímulo da concentração industrial paulista e da construção de Brasília, também o foi nas migrações internacionais. Que não se confunda, porém, a nossa história como país de origem nas migrações internacionais, com o fenômeno apontado em nosso editorial da semana. Não foi um êxodo o que se deu no Brasil. Foi uma migração de trabalho, num momento em que o país passava por uma recessão e os Estados Unidos, Canadá, Europa e Japão abriam as portas para trabalhadores imigrantes.
A migração de trabalhadores tem, porém, muitos pontos de semelhança com o êxodo, na medida em que todos enfrentam a fronteira: fronteira física de uma travessia cheia de obstáculos; fronteira cultural de viver em um país estrangeiro. O drama pessoal da travessia de Rosa, relembrado em um encontro fortuito, não foi de menor peso do que os que estamos presenciando todos os dias na imprensa.
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Que interessante! Agora quero saber como e porque Rosa voltou. Foi a grande recessão americana de 2008/2009?
Tenho lido que ultimamente também tem havido um certo “êxodo”, mas legal, e de gente com alguns recursos que investe em pequenos negócios em Miami, fugindo da insegurança no Brasil. Será?
Essas migrações em massa que têm sido noticiadas todos os dias, e que mostram a tragédia humana que elas representam, provocam-me enorme tristeza e reflexão sobre como o mundo está tratando os seres, todos, humanos ou não.
Especificamente sobre nós, humanos, um pensamento me assola: se o mundo está cada vez mais globalizado, não seria coerente que ele fosse de todos, indiscriminadamente, sem barreiras nem fronteiras? Sei que é um pensamento talvez utópico, romântico. Ao contrário, parece que a globalização serve apenas para atender aos interesses e conveniências dos blocos regionais, no que tange aos aspectos econômicos, comerciais e políticos, e não humanitário, na prática da solidariedade entre os povos.
Não é muito diferente o que tem acontecido com os imigrantes que têm chegado ao Brasil, vindos de países subdesenvolvidos em busca de oportunidade de trabalho e uma vida minimamente digna. Os governos federal e estaduais jogando responsabilidades de uns para os outros e os imigrantes, no final, contando com o apoio da sociedade civil organizada e com os voluntários que, individualmente, prestam sua assistência.
Tenho consciência, no entanto, de que não é fácil receber e acolher tanta gente tão carente de tudo, sobretudo diante das crises vividas em muitos lugares, a começar do Brasil. Mas a motivação para a rejeição não vem das dificuldades materiais, mas de valores e conceitos pautados no preconceito e no egoísmo.
Entristece-me ver que a natureza humana está muito longe de alcançar um nível de convivência harmônica, fraterna e menos desigual.
Abraços fraternos.
Como sempre leio primeiro Teresa, acabei fazendo um comentário que melhor se adequaria ao editorial, por pertinência. Então, faço aqui o devido deslocamento.
Quanto ao seu texto, Teresa, sempre muito sensível e uma ótima leitura. O seu livro, que você cita, gostaria de lê-lo.
Helga, Rosa não retornou ao Brasil. Estava apenas em visita a familiares, já que agora tem o greencard que lhe permite viajar à vontade, o que era inviabilizado nos primeiros tempos de indocumentada nos Estados Unidos. Da época de minha pesquisa até hoje mudaram algumas caracteristicas do fluxo de brasileiros migrantes, inclusive na direção que você aponta, de migrantes qualificados que vão trabalhar em suas profissões. Muito embora não tenha acabado a migração de trabalhadores. Apenas arrefeceu mais, por um lado, e, por outro, espalhou-se territorialmente tanto nos locais de destino nos Estados Unidos quanto nos locais de origem no Brasil.
Jacqueline, muito pertinentes tuas observações. Sei que nesse momento você mora em Brasília, mas sei também que vez por outra vem visitar a terrinha. Quando vier, me liga que eu já separei um exemplar do livro para te dar.
Tereza, bom dia! Moro na França. Em 2009 começei um trabalhozinho comunitariro para ajudar brasileiros indocumentados por aqui.
Mais tarde, quando a situaçao melhourou no Brasil, começamos a participar da acolhida de estudantes bastante jovens que vinham por aqui com bolsas mas com pouca experiência de vida no exterior. A situaçao estando dificil novamente no Brasil, estamos vendo a onda de pessoas indocumentadas crescer de novo por aqui … você continua à interessar-se pelos “brasileiros fora de casa”?