O inverno está chegando à Europa, e alguns países europeus estarão preocupados com a calefação nos abrigos de emergência em que está grande parte dos refugiados. E essa não será a maior das preocupações. Como aprovar nos orçamentos dos países receptores os recursos para a segurança da população e a moradia de emergência para os refugiados? Assim, por exemplo, o governo francês anunciou semana passada, a uma opinião pública reticente, que seriam criados 900 postos suplementares para policiais civis e gendarmes, e que 600 milhões de euros de verbas suplementares em três anos serão destinados à acolhida dos refugiados, além de 250 milhões de euros para moradias de urgência em 2016.
Como ajudar os países de frente que sofreram um influxo desproporcional e onde o impacto tem sido maior, como a Grécia assoberbada em Lesbos e Kos, sem estrutura de recepção, ou a Itália com tantos náufragos nos seus mares? Como restabelecer o controle (temporariamente perdido) das fronteiras externas da área de Schengen, condição para que se mantenha o acordo entre 26 países que aboliram entre eles passaportes e outros controles em suas fronteiras comuns? Como manter as regras comuns da União Europeia para a concessão de asilo político e a proteção a refugiados que estão consolidadas no chamado sistema de Dublin?
Além de que será preciso enfrentar os extremistas que ameaçam o consenso do qual nasceram a União Europeia e a Zona do Euro, nas duas caudas do espectro político: desde os que clamam por abertura total das fronteiras, culpam a “globalização neoliberal” (sic) por tudo o que acontece nos países de origem dos migrantes e rejeitam a distinção entre refugiados e migrantes econômicos, até grupos anti-imigrantes que incendiaram prédios que as autoridades acabavam de designar para abrigo de refugiados.
Não será fácil distinguir entre refugiados e imigrantes. Há até os que acham a distinção impossível, pois os próprios migrantes que solicitam asilo têm dificuldade em separar as razões políticas e econômicas que, por assim dizer, foram o gatilho de sua partida. O antropólogo Michel Agier, que estudou acampamentos de retenção de migrantes, alega, em figura de retórica, que há “uma parte de migrante econômico em todo refugiado político” e “uma parte de ‘refugiado’ em todo migrante econômico”.
Mas agora estamos diante de algo mais nítido: guerra, bombardeios, medo de recrutamento forçado para um ou outro lado de exércitos e milícias que se defrontam, ameaça imediata à vida. Os países têm obrigações legais e morais em relação a refugiados. Pessoas que estão fugindo de perseguição ou outros perigos que põem em risco suas vidas, inclusive guerra ou outras formas de violência, são tratadas segundo acordos internacionais sobre o direito de asilo de maneira diferente daquela relativa a migrantes que fogem da pobreza. A Convenção das Nações Unidas relativa ao Status de Refugiado, de 1951, e seu Protocolo de 1967, prevê inclusive o princípio de não devolução, isto é, as partes contratantes não devem expelir o refugiado de volta para territórios em que sua vida e sua liberdade estariam ameaçadas.
No caso dos refugiados não estamos diante de uma discussão sobre as vantagens e desvantagens da imigração para países de destino e de origem. Pode-se até argumentar que refugiados proporcionarão benefícios econômicos aos países recipientes (como fez Demétrio Magnoli em artigo na Folha de São Paulo, apontando para as baixas taxas de natalidade e o envelhecimento da população europeia), mas não é por isso que devem ser ajudados. Trata-se de compaixão com desesperados, de princípios básicos de humanidade. Trata-se da adesão a princípios de legalidade, de igualdade perante a lei, e de proteção do indivíduo contra ações arbitrárias, independente de grupo étnico ou religioso. “Willkommen” foi para refugiados, e não para o recrutamento de mão de obra estrangeira. Foi para os que fogem da guerra e do terror que Angela Merkel declarou fronteiras abertas e teve o apoio da maioria dos alemães. Também na França aumentou nas últimas semanas o apoio à recepção de refugiados, favorecida por cerca de metade da opinião pública, sob o impacto da foto do menino sírio que morreu afogado junto com a mãe e a irmã em mais um naufrágio de botes superlotados e dos 71 migrantes encontrados mortos em um caminhão frigorífico à beira de uma rodovia austríaca.
Mas como fazer a triagem para separar entre refugiados “verdadeiros” e “falsos”? Com um influxo de milhares e milhares em poucos dias houve um colapso dos centros de recepção e registro nos países de trânsito. Segundo a convenção da ONU, é o governo do país que recebe os pedidos de acolhida que deve julgar a concessão de asilo. Na União Europeia, o marco legal é o chamado sistema de Dublin III, segundo o qual o país que deve processar o pedido de asilo é o primeiro país na União Europeia em cujo solo o refugiado pisar. Acontece que alguns dos países em que os refugiados chegam na primeira parada estão sobrecarregados há tempos, como a Grécia e a Itália, e deixam que os migrantes prossigam sem registro. Assim, na prática, as regras de Dublin não estão sendo cumpridas. E no destino final às vezes é difícil saber qual foi a rota pela qual o migrante chegou. Com as multidões a caminho neste verão, os países de trânsito não tiveram condições de fazer o devido registro.
O Primeiro Ministro Zoran Milanovic, da Croácia, quando se viu sem estrutura para registrar os 15.000 refugiados que haviam chegado da Sérvia no espaço de algumas horas, com centenas de famílias a pé, assim resumiu sua preocupação: mostramos que temos coração, precisamos mostrar que temos cabeça. A Croácia, com seus 4,3 milhões de habitantes, normalmente lida bem com seu influxo de turistas, mas desistiu de registrar os migrantes, deixou que seguissem caminho como pudessem. Os migrantes receberam alimentos, e até conexão da internet para se comunicar com familiares deixados para trás, mas não havia ônibus para transportá-los de uma fronteira a outra. De todos os modos, refugiados da Síria, do Iraque, da Líbia, da Eritreia, não queriam permanecer na Croácia, iam rumo norte, e já vinham em sua maioria da Grécia, igualmente sem capacidade de registrá-los, e da Turquia, onde refugiados sírios se acumulam desde 2011.
Barrados de entrar na Hungria, que havia fechado suas fronteiras depois da invasão tumultuada dos trens que acabaram chegando a Munique e outras cidades alemãs, mandados embora da Sérvia, caminhavam rumo a Eslovênia, que ainda não havia decidido se deixava entrar os refugiados, de passagem, e tampouco conseguiria registrá-los. A poucas horas da fronteira, barracas militares de um centro de recepção croata com capacidade para 200 foram invadidas por 8.000. E a Croácia voltou a fechar sua fronteira com a Sérvia. O quadro não é tão diferente na Macedônia, que fechou com cercas de arame farpado sua fronteira com a Turquia. Como cumprir as regras do sistema de Dublin em tais condições? Os desafios são tamanhos que Martin Wolf, editor do Financial Times, sugere que sem enfrentá-los está ameaçada a própria existência da União Europeia enquanto projeto comunitário.
A Alemanha anunciou que receberá 800.000 refugiados, mas defende, junto com a França, uma distribuição mais equitativa entre os países da União Europeia, por um sistema de cotas segundo critérios de capacidade econômica, população e desemprego dos países receptores. Como, aliás, já é usado pelo governo alemão para distribuir os refugiados entre as diferentes províncias do país. Em 23 de setembro, os 28 países da União Europeia acordaram a distribuição de 120.000 refugiados, ainda uma pequena fração, que serão trazidos de países na “linha de frente” sobrecarregados, como Grécia, Itália, Hungria. A Repúbica Checa, a Hungria, a România e a Eslováquia votaram contra. É compreensível que os dirigentes de países ocidentais estejam ressentidos com essa diferença de atitude de países do antigo bloco soviético, tradicionalmente mais avessos a imigrantes.
Não há como ter uma União Europeia “a la carte”, em que cada país-membro escolhe do menu apenas o item que lhe apraz. Por outro lado, para além de algum prazo legal e de dependência maior, no longo prazo é difícil imaginar que um imigrante vá ficar em um país que originalmente não escolheu como destino, com língua mais difícil e instituições democráticas e de abrigo mais frágeis.
E os campos de refugiados? A ONU vai conseguir mantê-los? Serão o provisório tornado permanente? Passarão a ser o lugar da vida cotidiana de várias gerações? Só agora foi dada maior atenção às enormes proporções de refugiados nos países vizinhos à Síria. Segundo o Alto Comissariado para Refugiados da ONU (UNHCR), há 4 milhões de refugiados sírios. A Turquia tem campos de refugiados desde 2011, quando milhares de sírios cruzaram a fronteira perto de Yayladaqui, e atualmente abriga 1 milhão e 800 mil sírios. No Líbano, estão 1 milhão e 200 mil sírios. Na Jordânia, 630 mil. Há também refugiados sírios no Iraque, no Egito e norte da África. E também o Brasil, além do Chile, ofereceram receber asilados sírios. Se somamos 4 milhões de refugiados com os 7,6 milhões deslocados no interior do país, temos que quase metade da população foi afetada pelo conflito. E foram os mais pobres, sem dinheiro para a viagem, os que não conseguiram sair do país.
Na tentativa de lidar com o problema também na região de origem, os países da União Europeia, na cúpula de 24 de setembro, concordaram em mobilizar ao menos um bilhão de euros suplementares para as agências da ONU que ajudam refugiados nos países vizinhos da Síria: o Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (UNHCR) e o Programa Alimentar da ONU.
Possivelmente os fluxos para a Europa vão diminuir com a chegada do frio, e porque terá se difundido a notícia de que fronteiras foram fechadas. Mas a crise de refugiados está muito longe de resolvida. Os sírios, o foco do momento, nem são os únicos sendo afugentados de seus países por violência, guerra e terror. Segundo dados da ONU, em 2014, 14 milhões de pessoas tiveram que fugir do lugar em que nasceram. Al-Assad e o Estado Islâmico, além de outros grupos rebeldes, aterrorizam as populações na Síria e no Iraque; no Afeganistão, o Taliban continua amedrontando; a guerra civil na Somália dura décadas e tampouco se conseguiu a paz na Eritreia.
O grande aumento de refugiados sírios e iraquianos este verão tem motivos variados. Depois de anos de guerra civil, os sírios se sentiram cada vez mais sem perspectivas. Os bombardeios atingem áreas residenciais. São poucos os espaços protegidos que sobram. A situação nos campos de refugiados na Turquia, no Líbano, na Jordânia, tornou-se cada vez mais difícil, inclusive por causa de falta de dinheiro da ONU. Por certo a profissionalização dos transportadores e o medo de recrutamento forçado para os diferentes grupos armados também estão entre os motivos. Ainda não há perspectiva de algum acordo de paz na Síria: o regime de al-Assad é apoiado pela Rússia e Iran, e tropas sírias são inclusive equipadas e treinadas pela Rússia, que atualmente alega em seu favor que está impedindo ISIL (Islamic State of Iraq and the Levant)de tomar inteiramente a Síria, e pretende uma aliança com a coalizão liderada pelos Estados Unidos, contra os terroristas islamistas do ISIL. Mas os Estados Unidos e seus parceiros rejeitam, até agora, um “novo plano de paz” anti-ISIL se mantiver al-Assad no poder. Enquanto isso, continua o êxodo.
***
Professora Helga, seu curriculum e experiência vívida, pois que residiu por cerca de 20 anos nesse atual cenário de conflitos migratórios, nos faz olhar para o lado da miséria humana, dos já conflituosos embates de governos que mal se sustentam, mas que fazem parte de uma grande Comunidade Européia, onde os resultados econômicos financeiros ficaram com dois ou três países, e que têm que arcar com um ônus de um processo cuja origem não foi provocada por esses. A partir da segunda guerra mundial, a temática dominante era a de concentração de riquezas e poder, nem que para isso os países tivessem que desestabilizar outros. E isso foi feito segundo as boas regras da maldade. Dividiram-se mal e porcamente hutus de tutsis, puseram ao largo os curdos, enfraquecerem os poderes legalmente existentes, alteraram o mapa da indochina, mudaram as feições geográficas da India, interferiram na religiosidade dos povos, forneceram armas e munições para que bandos armados desestabilizassem governos, enfim, aprontaram muito. O resultado de hoje em dia, com hordas de migrantes, desestabilizando as economias e o modo de vida dos “nativos”. Enquanto não se atacar a raiz do problema essas migrações desenfreadas irão continuar. Agora começaram as vítimas reais. Daqui a pouco os sem-teto, mais adiante os sem emprego e por ai segue. Os bilhões de euros concedidos será que estarão sendo aplicados naquilo que precisa ser feito? Uma pessoa que teve sua cada destruída por um bombardeio será que terá interesse em reconstruí-la, sabedora que outros bombardeios mais ocorrerão? Na minha percepção o problema não está em acomodar tanta gente, desestabilizando as populações locais, mas sim, enfrentando o problema e dando a solução que seja necessária. O crime cometido na África foi imenso. A escravidão dão se deu porque os Europeus capturavam pessoas para vendê-las, mas sim esses eram aprisionados pela tribo vencedora nas batalhas, que, por não querer alimentá-los os vendiam. Nosso País foi espoliado e ainda o continua, em seus recursos minerais. Onde os Holandeses atuaram no Brasil, enquanto colônia, a exploração das terras foi grande e grande a fortuna que receberam dos portugueses para que não voltassem mais para cá. Realmente, as imagens nos tocam o coração. Mas a razão deve aflorar, porque senão teremos muito mais crianças mortas nessas travessias suicidas.
A era pós colonial acabou. Meu chefe querido na ONU, Göran Ohlin, com quem trabalhei sobre ´
África, já dizia isso nos 1980s. E ele passava tempos nos países, conhecia dirigentes em alguns deles, era consultado sobre política econômica, se debruçava sobre dados e fatos. É claro que existiu exploração, mas o discurso da “exploração colonial” já não faz sentido há muito tempo, ao menos para resolver os problemas de hoje. E no século XXI as análises precisam se tornar mais concretas, levando em conta as condições internas em cada país. Bradar contra as potências coloniais já caia no vazio quando eu estava na ONU, e isso foi em fins do século XXI. É claro que estudar em detalhes a situação interna de cada país, juntar os dados, discutir resultados de políticas já adotadas, dá trabalho. Aqui, aliás, é assim também: alguns acham que basta ficar se queixando da situação internacional.
correção: e isso foi em fins do século XX.