Helga Hoffmann

Repetir a eleição para prefeito três meses depois não inverteu o resultado. Ao contrário, ampliou, e muito, a vantagem do candidato oposicionista. Ekrem Imamoglu, do Partido Republicano do Povo (CHP) já fora vitorioso em 31 de março, mas com margem estreita.  Chegou a tomar posse como prefeito de Istambul em 17 de abril, depois que as duas semanas de recontagem, afinal, confirmaram sua vitória por uma diferença de 0,25%, apenas 13.000 votos. Em março, nem o derrotado Binali Yildrim, nem o seu principal apoiador, o Presidente Erdogan, e menos ainda o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) aceitaram o resultado. Imamoglu só permaneceu no cargo 20 dias e foi retirado quando o Alto Comitê Eleitoral da Turquia aceitou pedido do AKP, anulou o resultado, e ordenou nova eleição.

Nesta reprise da eleição municipal de Istambul, que aconteceu este domingo 23 de junho, a vitória da oposição nas urnas foi tão contundente que os mesmos derrotados de março, dessa vez, se apressaram em reconhecer sua derrota eleitoral. Imamoglu (CHP) obteve 54% dos votos contra 45% de Yildrim (AKP). A taxa de comparecimento às urnas foi de 85% e milhares de famílias cancelaram suas férias de verão para permanecer em Istambul e votar. Forçar a reprise revelou-se erro de avaliação, que apenas reforçou o descontentamento dos eleitores e trouxe para o AKP a pior derrota em 17 anos no poder. A legendária habilidade política de Recep Tayyip Erdogan dessa vez falhou, pois há evidência de que mesmo fieis eleitores do AKP se rebelaram contra o que consideraram injustiça com Imamoglu.

Em sua primeira manifestação pública, dois dias depois, o Presidente Erdogan parecia conciliador, tratando de acalmar seus críticos dentro do próprio partido AKP: “Em nossa percepção de política, nunca ficamos com raiva ou culpamos o público” – disse o Presidente ao seu partido reunido. “Não podemos fechar nossos ouvidos e ignorar as mensagens enviadas pelo povo.” E prometeu revisões no sistema de governança.

Surpresas futuras não serão necessariamente benignas. Em princípio Erdogan não precisa enfrentar eleições nos próximos quatro anos. Por ora retém o controle do Parlamento. A Presidência na Turquia adquiriu imensos poderes e será preciso aguardar o quanto de autonomia terá o novo prefeito sobre o orçamento de quatro bilhões de dólares de Istambul, que sempre serviu à política de privilégios e à rede de clientelismo do AKP.

Os analistas ainda estão fazendo o balanço do que aconteceu, analisando tanto as manobras políticas de Erdogan quanto novidades de campanha do vitorioso mais jovem. A situação econômica na Turquia certamente influenciou as eleições de março, quando o AKP foi derrotado não só em Istambul, mas em várias outras cidades grandes e nas principais áreas metropolitanas. Com o resultado de Istambul (a área economicamente a mais importante) confirmado em junho a lira turca se valorizou ligeiramente, mas isso pode ter sido influenciado também pelos sinais de que o Federal Reserve e o Banco Central Europeu não pretendem elevar suas taxas de juros tão cedo.

A Turquia permaneceu em recessão em 2018, ainda enfrentando as sequelas da crise cambial do verão de 2018.[1]No primeiro trimestre de 2019 a economia cresceu 1,3% (comparado ao trimestre anterior), mas a taxa de crescimento voltou a cair e pode ter sido zero no segundo trimestre. Para 2019 em conjunto a previsão é de nova queda do PIB (de 2,5% segundo o FMI). Os analistas já haviam previsto que a recuperação do primeiro trimestre teria fôlego curto, pois foi em grande medida impelida por aumento do gasto público e enorme expansão de crédito pelos bancos públicos, do início do ano até as eleições municipais de março.

Depois das eleições o estímulo do governo teve que ser revertido, pois o setor bancário na Turquia já enfrenta inadimplência no setor corporativo altamente endividado. Apesar da inflação persistentemente alta (ainda superior a 18%) e da volatilidade cambial, o Banco Central da Turquia deixou a sua taxa básica inalterada em 24% antes da eleição de junho. Uma redução dos juros poderia desestabilizar o câmbio, que permanece vulnerável não só às mudanças políticas internas mas ao aumento das tensões com os Estados Unidos devido ao plano, reiterado estes dias por Erdogan, de comprar um sistema de defesa aérea S-400 da Rússia. Além da oferta de divisas ter sido afetada pela queda considerável da presença de turistas europeus, em particular os alemães. Uma elevação dos juros pressionaria ainda mais empresas e bancos endividados, que ainda sofrem as consequências da crise cambial que fez a lira turca se desvalorizar em 30% em 2018.

A difícil situação econômica, que fez a economia turca encolher quase 3% em relação ao pico anterior, foi o cenário. Mas observou-se, também, uma mudança de orientação na campanha de Imamoglu. O partido CHP tinha uma reputação de secularismo agressivo e nacionalismo arraigado que afastava os muçulmanos mais ortodoxos que constituem a base do AKP, assim como a importante população curda, que tem sua representação em partido político e é também hostilizado pelo AKP. Como observaram as jornalistas Laura Pitel e Ayla Jena Yackley, do Financial Times, Imamoglu atenuou essa imagem radical do CHP. Como Erdogan ele é oriundo da costa do Mar Negro, onde os habitantes são mais conservadores. Observou o jejum do Ramadan e é competente em citar o Corão. Buscou alianças com outros partidos inclusive o Partido Popular Republicano, pró-curdo. E deve ter apontado para a economia, pois em seu discurso de vitória não só descreveu a tarefa de governar Istambul como “dever sagrado”, mas prometeu que o foco será enfrentar a pobreza e o desemprego, e criar mais áreas verdes. Convidou o Presidente Erdogan “a trabalharmos em conjunto para servir Istambul”, apelando que cooperasse com ele em questões como o preparo para ocorrência de terremoto e a ajuda ao meio milhão de refugiados sírios que vivem em Istambul.

Não há como ignorar, além da economia e da estratégia política dos contendores, uma tomada de consciência cada vez mais ampla entre os turcos, dentro e fora da Turquia, de que a repressão política do governo na verdade não se limita a supostos gulenistas, partidários do clérigo muçulmano moderado Fethullah Gülen, acusados de terroristas e de serem os mentores do fracassado golpe militar de 15 de julho de 2015. Já reportamos aqui a razia ditatorial contra acadêmicos nas universidades, policiais, soldados e funcionários dos ministérios, magistrados, generais do exército turco, membros de partidos políticos e jornalistas empreendida pelo governo Erdogan sob o pretexto de estar punindo participantes do golpe, ignorando que o golpe não se completou porque houve na época a união das várias tendências e partidos contra o golpe.[2]

Este ano a perseguição a críticos promovida pelo governo Erdogan chegou inclusive ao Brasil. O empresário turco naturalizado brasileiro Ali Sipahi foi preso preventivamente no Brasil, quando voltava de uma viagem aos Estados Unidos, porque a Turquia pediu sua extradição. Ficou preso um mês, em abril, e ainda está em prisão domiciliar com tornozeleira. Sipahi, que vive no Brasil desde 2007, é mais um entre os milhares acusados pelo governo da Turquia de ser membro do movimento turco Hizmet, do clérigo muçulmano Fethullah Gülen. A acusação a Sipahi teria se baseado em uma transação em banco ligado ao Hizmet, a partir do que o governo turco afirma que a transação foi feita para financiar o terrorismo.

O caso, nitidamente uma perseguição política, está parado no STF, que terá que julgar o processo de extradição. Evidencia que a perseguição do governo autocrático de Ancara a turcos no exterior não atinge apenas jornalistas com dupla nacionalidade turco-alemã e turco-francesa que foram presos na Turquia e acusados de terrorismo simplesmente por suas reportagens. Foi noticiado (Estadão 25/06/2019) que o governo do Presidente Erdogan chegou a enviar representantes para contatar, por exemplo, a Fundação Fernando Henrique Cardoso, para pedir que não promovesse atividades em parceria com o Centro Cultural Brasil-Turquia, acusado de ser ligado ao Hizmet. A propósito, vale lembrar que as únicas atividades que a Fundação realiza são seminários, conferências e painéis com debates abertos sobre uma infinidade de temas. Assim, as interferências equivalem a uma tentativa de partidários de Erdogan ou militantes do partido do governo, AKP, de estender a censura e o controle das notícias que existe na Turquia até mesmo para além das fronteiras do território turco.

A vitória de Ekrem Imamoglu em Istambul no domingo é uma derrota para um Presidente que foi se tornando cada vez mais ditatorial, Recep Tayyip Erdogan. É torcer para que não seja um domingo de verão apenas e que não seja algo efêmero o que tanto se festejou às margens do Bósforo em 23 de junho de 2019.[3]

 

[1]Analisamos a crise econômica da Turquia e suas imbricações com a política e os atritos com os Estados Unidos em “Turquia: política econômica do grito sem eco”, revistasera.info 17/08/2018.

[2]Turquia: vitória democrática é pretexto para ditadura”, revistasera.info, 21/07/2017

[3]Não posso falar em Istambul sem lembrar um livro absolutamente maravilhoso: Orhan Pamuk “Uma sensação estranha” (Editora Companhia das Letras 2017). Acompanhando Mevlut, um vendedor ambulante, por suas 592 páginas você conhecerá tantos rincões de Istambul e tantos dos seus personagens, ao longo de 50 anos dos 1960s em diante, que se sentirá íntimo da cidade. Por Orhan Pamuk passamos a amar Istambul sem nunca lá ter estado. Mas lembrei do livro também porque vi ali como funciona o clientelismo político a partir das mesquitas.