Fernando Dourado.

Charuto e conhaque na Calle Lavalle.

Charuto e conhaque na Calle Lavalle.

Recife, Brasil, 1964 – Éramos crianças, eu tinha seis e meu irmão três anos, e estávamos sentados no banco traseiro de um carro alviverde, de marca Rural. Voltávamos para a rua da Aurora depois de um domingo costumeiro onde o programa fora cumprido à risca: uma visita ao aeroporto, a missa na igreja do Carmo e o lanche na Estoril – a casa do viveiro de passarinhos onde éramos atendidos por um garçom que chamávamos de Cantinflas. Papai estava com os nervos à flor da pele; além do costumeiro. Ao passarmos diante do Palácio do Governo – vigiado por tropa aparatosa -, ele desacelerou o carro e gritou pela janela de mamãe: Gorilas de merda. Ela se voltou para trás e afundou nossas cabeças o máximo que pode. A adrenalina nas alturas, ouvindo os vitupérios da mulher de que era irresponsável e louco, meu pai ainda rebateu: E ainda chamam essa bosta de Revolução. Não sabem nem atirar.

 

*

 

Tel-Aviv, Israel, 1976 – Cheguei ao aeroporto de Lod para uma temporada de quatro meses no kibutz Ayelet HaShahar. Menos de três anos antes, o país fora surpreendido pela guerra do Yom Kipur. No terminal, um judeu oriental – depois o saberia iraquiano -, de imensa barba preta, olhos amendoados e semi-cerrados, esperava para levar-nos madrugada adentro até a Alta Galileia, a bordo de uma caminhonete. Enquanto aguardávamos a liberação dos mantimentos, resolvi perambular pelo aeroporto caótico. Nas latas de lixo, se lia: Made in Uganda. Algumas cadeiras estavam quebradas e mais parecia que um tornado passara por ali. Mais tarde, soube que Israel resgatara em Entebbe, no coração da África, os reféns de um voo da Air France. O país entrara em festa com a chegada ao aeroporto. Tivera, contudo, uma baixa. No momento derradeiro, um ugandense alvejou o irmão de Netanyahu. Essa bala reverbera até hoje.

 

*

 

Londres, Reino Unido, 1980 – Caminhando por South Kensington, vi que a área próxima à embaixada iraniana estava isolada. Perguntei a jornalistas o que estava acontecendo e soube que um grupo terrorista tinha tomado reféns e já executara um deles. Comentava-se que tia Maggie Thatcher não deixaria barato e que poderia haver uma invasão a qualquer momento. Acompanhei a ação com interesse, sem saber que dentro de mim morava um repórter, encarcerado num armário. Num átimo, tudo ficou dramático: gritos, fumaça, tiros. Tive a sensação de ver um filme. Mais ainda, de vivê-lo, apesar da distância. No dia seguinte ao assalto das tropas de elite – com cinco terroristas mortos -, um homem do comando falou laconicamente à BBC sobre a ação. Sim, o treinamento fora perfeito. Mas o ponto de honra da corporação se resumia a não atirar com ódio no coração. Só por necessidade e defesa.

 

*

 

Buenos Aires, Argentina, 1982 – Saí do hotel Libertador para comer um bife de chorizo na Lavalle. No caminho, identifiquei o empresário Marcos Lázaro – húngaro de nacionalidade argentina, mas com trânsito amplo no Brasil e que tinha Elis Regina e Roberto Carlos entre seus clientes. Apresentei-me, ele foi gentil. Disse-lhe que ia jantar só e que ele era meu convidado. Declinou, mas me sugeriu aparecer mais tarde na Florida, para tomar um conhaque e fumar um charuto com ele. Foi o que fiz. Na segunda dose, um homem irrompeu feito alucinado no recinto. E em tom de quem tentava arrancar as vísceras pela boca, recitou “Los pibes de la guerra”, de sua autoria. Falava de jovens falecidos nas Malvinas, de águas frias que pinicavam como milhões de agulhas e de generais bêbados. Depois que saiu, o silêncio pesou, mas as pessoas pouco a pouco retomaram a conversa. Une drôle de guerre!

 

*

 

Montevidéu, Uruguai, 1983 – Dueña Griselda Colamarino estava preocupada. Fumando um cigarro atrás do outro, me confidenciou que Alejandro – o filho – deveria comparecer na segunda-feira ao comissariado de polícia para prestar depoimento. Teria havido alguma denúncia? Atividades suspeitas? Mais ou menos. É que a psicóloga do jardim da infância dos netos estranhou os temas de desenho livre das crianças. Como é que elas se davam ao desfrute de rabiscar grades, gente encapuzada e ações de sequestro? Não estariam ouvindo histórias inapropriadas em casa? A aristocrática Griselda – argentina de nascimento e radicada em Carrasco – , confessou: Alejandro era sua razão de viver. Mayte, a filha – sangue de seu sangue e luz de seus olhos -, sumira há dois anos. A esperança era que estivesse na Patagônia ou no Brasil. Mas era pouco provável. Então chorou, borrando a maquiagem pesada. Fiquei mudo.

 

*

 

Santiago, Chile, 1984 – Estava no hotel Carrera, diante do Palácio da Moneda. Lá se hospedavam também vários jogadores brasileiros, quase todos aposentados. Jairzinho era o mais falante. Meu representante, Don Helmut Schilling, dono de muitas óticas na capital, me perguntou se não queria ir ao Estádio Nacional ver a despedida de Don Elias Figueroa, o zagueiro perfeito. Segundo Nélson Rodrigues, ele era “elegante como um conde de smoking e perigoso como um tigre de Bengala”. No meio do jogo, os torcedores arremessaram garrafas ao gramado. Don Helmut pediu que fossemos embora, antes que o protesto piorasse. No carro, falou pelos cotovelos: aquilo foi uma palhaçada urdida pelo comunismo internacional. Pedi-lhe que evitássemos o assunto. Afinal, eu gostava dele e tínhamos negócios. Os argumentos foram esmorecendo e nos despedimos como amigos. Bons tempos.

 

*

 

Luanda, Angola, 1987 – “Todos os angolanos juntos fazem hoje uma contra-ofensiva aos fantoches inimigos, aos infiltrados do capitalismo imperialista pelas mãos do lacaio Jonas Savimbi”. Era uma desolação escutar em língua pátria os slogans de convocação contra a UNITA e seu carismático líder, inimigo do MPLA. Tinha ido visitar indústrias, fazer negócios. Mas as fábricas estavam sucateadas e o orçamento era todo destinado ao armamento. No hotel Presidente, tive insônia e desci para tomar a fresca no terraço onde um senhor de óculos matutava sobre a vida. Como não falava português, conversamos em francês e percebi o sotaque mediterrâneo marcado e os erres próprios dos levantinos. Era egípcio e ninguém menos que o Ministro das Relações Exteriores, Boutros Ghali, ali em missão. Mais tarde, viraria Secretário-Geral da ONU. Tive, aos 29 anos, uma aula magna com o mestre. Até o alvorecer.

 

*

 

Lima, Peru, 1989 – Convidei-a para jantar no Rosa Náutica, o restaurante de Miraflores que chegara para concorrer com o Costa Verde, soberano de muitos anos. Chamava-se Suzane. Divorciada, vivia só e era a engenheira responsável da fábrica local da Sherwin-Williams. Eu gostava dela, mas era animal arisco. Achei que um pisco sour na brisa do Pacífico faria bem à nossa química. A certa altura, ela se confessou incomodada com o local. Era muito luxuoso? Temia ser vista por amigos com um homem mais novo? Enfim, teria a ver com a agenda secreta de toda mulher? A certa altura, se assustou e pediu que fossemos embora, apontando o mar. Olhei para a água escura e vi fachos de luz sobre mergulhadores em neoprene, bem ao pé das estacas. Na véspera, o Sendero Luminoso ameaçara afundar o restaurante – símbolo do fausto burguês. Por que não falou antes? Concluí: não era para acontecer.

 

*

 

Saná, Iêmen, 1991 – Saí no começo da tarde de Karachi, Paquistão. Meu destino era Nairóbi, no Quênia e o 707 remendado da PIA estava coalhado de fiéis que voltavam da peregrinação a Meca, Arábia Saudita. Eu era o único passageiro de uma primeira classe indigente, mas que tinha o mérito de ficar isolada dos fiéis que levavam farnéis com pedaços de carneiro e semolina. Com ar contrito, tartamudeavam rezas e recitavam suras do Corão. Tínhamos uma escala técnica em Saná e alguns resolveram desembarcar para rezar sob as asas. O chão era uma pira. Guardas armados proibiam qualquer desembarque. Os cachorros rosnavam. O comandante não sabia o que fazer. Um fiel berrou: “Alahu Akhbar“. Todos se precipitaram para a escada. Alguém disparou um tiro de advertência, os cães ficaram ensandecidos e eu entrei na negociação. Decolar foi um alívio. Vi cáfilas de camelo na Etiópia e o filete longo do Nilo. A vida estivera por um triz.

 

*

 

Taipé, Taiwan, 1994 – Passava pouco do horário do almoço quando senti tontura. Os chineses disseram que não era nada. Mas era. Uma californiana da mesa ao lado confirmou a raiz do desconforto. Sim, tinha havido um terremoto leve. No fim da tarde, tive reunião no escritório da Baker and McKenzie. As paredes começaram a ranger e a terra sacudiu com vigor. Os advogados gritaram : para baixo da mesa, para baixo da mesa. Mas eu era – e sou – muito grande para caber ali. Fiquei sob o pórtico da porta. O monotrilho de concreto armado lá fora balançava feito um varal na ventania. Explosões, gente correndo. Uma namorada desbocada estava arrasada quando cheguei ao hotel. Em choque, tremia. Queria ir embora. Argumentei: vou ver o que faço. Suba e faça as malas enquanto providencio a logística. “Voltar ao quarto? Sozinha? Nem fodendo; nem amarrada”. Precisei embriagá-la para que subíssemos juntos. Foi bom.

 

***