Numa manhã ensolarada de domingo, raios luminosos refletiam na lâmina d’água do rio decorando de flocos dourados o terraço do casarão. O jardim estava repleto de mesas e cadeiras ocupadas por animada e barulhenta conversa, assuntos diversos e frequentes risadas e gritos estimulados pela pródiga distribuição de chope e uísque. Eu estava numa mesa lateral, afastado do tumulto pela timidez e pelo desgosto. Observava admirado a grande festa que Célia organizara para comemorar seu casamento. Não era o primeiro e, pior, não era comigo. O noivo não parecia existir, apagado e invisível diante da exuberância de Célia. Eu acompanhava com o olhar o movimento da anfitriã que circulava brilhando entre as mesas, trocando afagos e sorrisos, muito elegante num vestido longo verde escuro que desenhava os seus leves contornos. Carregava um colar negro no pescoço branco e completava com brincos longos de prata caindo das orelhas apenas cobertas pelo cabelo curto que emoldurava o seu rosto. Para os meus olhos contaminados, ela era a mais bela e sensual mulher do ambiente, cheio de senhoras plastificadas e jovens bonitas com suas roupas provocantes.
Soberba e absoluta do jardim, Célia escondia com habilidade uma indecifrável melancolia que eu conseguia desvendar graças aos nossos muitos anos de convivência. Para todos os convidados, parecia plena de felicidade, como convinha a uma mulher no dia do casamento. E, no entanto, alguma coisa apertava no mais íntimo dos seus sentimentos. Com frequência e mesmo sem perceber, enquanto caminhava pelo jardim, ela virava o olhar para os lados, para o portão e logo para o rio, como se buscasse algo ou alguém que faltava no auge da sua alegria. No meu lado, visivelmente entediada, minha pequena Bia brincava de encher o copo de guaraná com pedaços de pão e canapés, completava a mistura com resto de cerveja da minha caneca produzindo um líquido viscoso e escuro que não tinha a menor intenção de beber. Eu sorria em silêncio com a produção química de minha filha. Num certo momento da sua engenharia, quase sem olhar para mim, começou a falar: “Tem um homem voando pra cá”. Não me importei com suas fantasias até que ela começou a apontar para o céu.
Achei que estávamos delirando, eu e ela, quando vi um paraquedista deslizando no espaço com o sol batendo no rosto e brilhando um objeto nas mãos e em rápida aproximação do jardim. Tinha perdido o controle ou estava dirigindo o equipamento com intenção de pouso no ambiente cheio de pessoas e mesas? Ao contrário da fleuma infantil de Bia, eu levantei gritando e apontando para o paraquedista, advertindo assustado para o iminente aterramento do homem sobre nós. Em poucos segundos, mesas viradas, garrafas molhando a grama e os visitantes correndo e se aglomerando no terraço, procurando uma proteção para o impacto cada vez mais próximo.
O paraquedas caiu no meio de uma grande barulheira e confusão, mas ficou entalado entre as árvores, o homem pendurado a poucos metros do solo olhando de frente para o terraço. No meio da multidão, Célia levantava os braços e gritava numa mistura de surpresa, revolta com a destruição da sua festa e desespero com a situação inusitada de um paraquedista pendurado no seu jardim. O homem fez um movimento com o corpo para balançar no ar. Olhava diretamente para Célia e sorria orgulhoso com o tumulto que tinha provocado. Abriu o braço direito com um pequeno pacote e gritou: “Presente de casamento”. Neste momento Célia reconheceu Otávio. Depois de um grito de ódio e indignação, correu, levantou uma cadeira e começou a golpear o desastrado e irresponsável paraquedista que balançava fugindo da violência revoltada da anfitriã. Quanto mais ele fugia no seu balanço, maior a ira selvagem de Célia, correndo e gritando com uma cadeira metálica no ar. Os movimentos bruscos foram, aos poucos, rasgando o vestido longo na parte lateral, expondo uma faixa das suas pernas. Os convidados, agora agrupados no terraço, se dividiam entre o riso e a perplexidade diante da estranha cena.
Eduardo correu, abraçou Célia e puxou-a para dentro de casa tentando protegê-la do constrangimento. Ficaram abraçados no sofá. Célia chorava enquanto Otávio continuava pendurado no paraquedas com o pacote na mão. Eu não sabia o que fazer. Teria abraçado Célia e acariciado seus cabelos, mas estava totalmente paralisado com aquela situação inesperada e improvável. E seu noivo chegou antes. Afinal esse era o seu papel naquele momento. Mais uma vez foi Bia quem me tirou da posição de observador. “O homem-pássaro vai cair”, avisou. O galho central quebrou e Otávio desabou. Permaneceu deitado encoberto pelo tecido do paraquedas. Claro que não morreu numa queda de apenas dois metros. Levantei o paraquedas e vi seus olhos assustados e o rosto contraído de dor. Continuava abraçado ao pacote agora totalmente amassado sobre seu peito.
Procurei ajudá-lo, mesmo temendo que Célia me odiasse por isso. Mas, mesmo para um observador experimente da alma humana, ela me surpreendeu. Diante da queda de Otávio, ela se aproximou do fracassado paraquedista com um cuidado e preocupação opostos aos gritos recentes de indignação. Me ajudou a transportar o paraquedista para uma cadeira e procurou apoiar com indisfarçado carinho as duas pernas fraturadas de Otávio ouvindo os seus gemidos e, descuidada, mostrando as suas coxas pelo rasgão do vestido.
Bia olhou para mim interrogativa, não podia entender esta flutuação de humores. Logo, apontou para o pacote nos braços de Otávio. “O presente quebrou”, disse a pequena, penalizada com o desperdício. O paraquedista tinha caído agarrado ao presente. A maioria dos convidados observava em silêncio, alguns falavam em hospital, mas Célia e Otávio agora se olhavam e sorriam como se não existisse dor ou revolta. “Você é totalmente maluco Otávio, tinha que ser uma entrada tão incomum e drástica? Tinha que destruir minha festa?” Ele ria feliz apesar das dores, demonstrando que essa era exatamente a sua intenção, mas lamentava o pacote amarrotado sobre o peito indicando que o seu conteúdo teria virado pedaços. “Você sabe qual é a minha loucura, não sabe?”, falou suave olhando nos olhos de Célia. “Ocitocina?”, perguntou. “É, acho que é isso”. Com um sorriso torto, Otávio pegou o pacote e estendeu para Célia e Eduardo, de pé agora ao lado da sua noiva que tinha olhos apenas para o paraquedista ferido: “Presente de casamento”, sussurrou com indisfarçável amargura.
Fez-se um silêncio respeitoso e curioso no terraço enquanto Célia abria o presente com cuidado para não se ferir ou não desmantelar o precioso objeto. Temia mais uma loucura do paraquedista acidentado. O pacote estava cheio de pedaços de uma louça colorida assinada por Romero Brito. Bia pegou na minha mão e, baixinho, falou alguma coisa do meu lado. Desta vez, não entendi. Mas, antes que eu perguntasse, dezenas de borboletas de todas as cores começaram a voar saindo dos cacos do presente e enchendo o terraço de cores e movimentos. Célia se levantou comovida com a bela cena e os convidados sorriam e gritavam cercados pelo voo das borboletas que pareciam festejar o momento. Célia movia os braços entre as borboletas que flutuavam no terraço, pulava emocionada com o surpreendente presente que restaurava a antiga e teimosa paixão e admiração. Otávio acabou com a festa, não pela desastrada queda do paraquedas mas pelos sentimentos que reacendia na noiva.
Com algumas borboletas voando sobre sua cabeça, Bia repetia uma frase que, aos poucos, fui entendendo: “Ele tá morrendo”. No meio da festa de cores e luzes das borboletas, ninguém prestava mais qualquer atenção ao paraquedista sentado na cadeira com os braços caídos e a cabeça virada expondo um sorriso maroto. O peito vermelho de sangue completava o colorido dos cacos da louça quebrada de Romero Brito e das esvoaçantes borboletas. Bia apertou minha mão e chorou enquanto as borboletas se afastavam voando na direção do rio.
Arretado!!! Parabéns!!!
Mágico, solar, lírico…
Por alguma razão, me veio à mente aquele padre maluco do Paraná que anos atrás decolou acoplado a milhares de balões de gás e sumiu para nunca mais ser achado.
Tudo o que é sólido se desmancha no ar.