João Rego

Escrevo estas reflexões no momento em que a sociedade se divide, espezinhando a razão e a serenidade, por conta dos fatos políticos recentes. A Operação Lava Jato destampa o fétido esgoto da corrupção política e empresarial que, há séculos, vem forjando nossa cultura de poder. Diante de uma verdade que se revela, desconstruindo de forma dolorosa e abrupta mitos e crenças que davam suporte a existência de muitos, é natural o clamor de todos: uns, desesperados em segurar nos ombros o andor do santo de barro, que a cada dia se mostra mais vulnerável, virando pó; outros, também com seus valores e ídolos, ainda não investigados, como se estes fossem imunes, jogam pedras no adversário que, claudicante, usa todos os recursos que tem a mão, tudo valendo, inclusive a mentira – essa milenar aliada dos poderosos.

A paixão a todos cega. Como em um jogo de espelhos a realidade brinca com nossas percepções, pois um mesmo fato é visto de maneira invertida pelos dois lados – e ambos se colidem num perigoso jogo de força, desestabilizando a nação. Estamos à mercê dos fatos, os quais estão sendo julgados pelo STF e pelo Congresso – com suas falhas e imperfeições, com suas parcialidades e interesses, porém é o que temos de mais eficaz em uma democracia.

Fora da lei voltamos a barbárie.

Leio estarrecido, intelectuais com carreiras brilhantemente construídas ao longo da vida (doutorados no exterior com vacas sagradas da intelectualidade europeia, décadas de atuação na academia e na pesquisa social, outras dezenas de papers e seminários) serem capturados feitos moscas pelos traços significantes da trajetória de Lula, da sua prática política e seu discurso.

Vejo uma negação da realidade coletiva, alimentada por misteriosos mecanismos de defesa, estruturados por um delirante surto persecutório – que aliás, foi sempre este o mecanismo vivenciado pelos movimentos “revolucionários”. Na história antiga, temos os sacerdotes hebreus rasgando suas vestes numa demonstração de ódio contra Jesus, que os chamou de sepulcros caiados. Vencerem, com a crucificação daquele que ousara descortinar a falsa realidade que dava suporte a estrutura de poder de uma elite; na Alemanha, Hitler volta seu discurso histérico contra judeus e minorias étnicas, transformando-os em objeto fóbico, conduzindo uma enorme maioria da culta sociedade alemã a um ódio e violência irracional contra milhões de judeus; durante a ditadura militar de 1964 foi o conceito de “Segurança Nacional” que justificou a tortura e morte de vários que se opuseram ao Regime; o regime de Fidel em Cuba, após justificada defesa contra a tentativa de invasão americana, se nutriu, por décadas, usando este “surto persecutório” contra os Estados Unidos para sustentar seu regime.

É necessário tornar o outro absoluta e completamente culpado pelas adversidades e ameaças, daquilo que nossa ideologia tão impecavelmente forjou, para entender e dar conta da realidade política e social. Se a realidade histórica, com seus fatos impermeáveis aos nossos discursos, teorias e práticas políticas, insiste em se desviar, não é culpa nossa e sim do outro.

Este é um estranho comportamento que nasceu ainda em nossa pré-história, quando vivíamos em hordas, adorando o sol e a lua, erigindo totens para nos proteger das intempéries da natureza e tentar dar sentido a morte. O totem, com seus poderes imaginariamente projetados pelo homem, incorpora uma áurea sobrenatural fundamental para dar suporte a nossa frágil e efêmera existência.

Esta prática primitiva está na raiz das religiões, na formação do Estado Moderno e nas ideologias. Basta um desequilíbrio, como a crise que vivemos hoje, para voltarmos a nossa prática atávica.

O fenômeno Lula criou em torno dele uma esquerda totêmica, que de esquerda, no sentido histórico forjado desde o socialismo utópico ao marxismo e o pós-marxismo, tem muito pouco. O afeto se impôs ao intelecto, a razão foi pisoteada pela emoção, a crítica emudeceu transformando intelectuais, antes ilustres, em uma amorfa e alucinada horda em torno do seu sagrado mito. Com seus olhares fixos, suas cegas certezas, seus gritos ululantes dirigem seu ódio fácil contra tudo aquilo que ameaça sua percepção delirante de realidade. Uma realidade que se esvai diante de seus olhos – deixando apenas a angústia de um vazio.

Culpar a imprensa pela existência de fatos reais e graves, apoiar Lula em seu percurso, cada vez mais desesperado, pois esta é sua única estratégia que lhe resta, é totemizar nossa democracia. Podia esperar isto de militantes iletrados e desamparados, onde Lula – e outros também, FHC, o príncipe da sociologia, exerce seu fascínio sobre outras hordas –  se instala em seus espíritos como um pai onipotente. Nunca, jamais, de acadêmicos detentores de um saber que, em tese, deveriam investigar, com a necessária postura crítica que a ciência exige, nossa realidade, nossa história, nossa cultura, enfim preparar caminhos para o destino da nação.

Quantos livros lidos com paixão! Quanta energia intelectual voltada para interpretar nossa realidade social! Quanto desprendimento pessoal em favor do interesse maior da sociedade…posso continuar listando muito mais, pois conheço, um pouco, o árduo valor de uma prática de pesquisa acadêmica.

Tudo isto jogado fora, pois como em complexo e ardiloso jogo a realidade infantiliza intelectuais, esmigalha nossa intelligentsia num perverso e danoso processo de inutilidade intelectual.

Lula e seus pragmáticos parceiros – alguns já na cadeia – gozam, se utilizam, manipulam parte desses “sacerdotes da academia”, tão cheios de saber, porém obnubilados pelas chamas crepitantes da fogueira em seus rituais totêmicos – as ideologias.

Ao longe, vindo de um desses becos escuros da história, é possível ouvir a horda em genuflexão adorando seu totem numa desesperada e vã tentativa de conter a realidade que se desmancha vertiginosamente, repetindo seu mantra “Não vai ter golpe! Não vai ter golpe! Não vai ter golpe!”.

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(*) Frase encontrada no Manifesto Comunista, de Karl MarxFriedrich Engels – Tudo que é solido se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.