I
Cada vez que se deslocava de um ponto para outro no mundo, a receita mais eficaz para adormecer nos longos voos consistia em rememorar o Recife dos anos 1960. Muita coisa marcara a vida de Felipe na cidade costurada pelas pontes. Poucas, na verdade, se comparavam à imagem das enchentes caudalosas do rio Capibaribe, vistas da rua da Aurora. Grandes ilhas de baronesas traziam colchões, televisores, móveis e um ou outro animal vivo e desesperado. A água lambia as calçadas e os remadores do Barroso contemplavam a cena com desolação, acometidos de síndrome de abstinência. Como não sentir remorso por se regozijar com os piores dias de infortúnio alheio? Mas o que podia fazer para conter a alegria de feriados fora do calendário?
II
O jantar foi copioso. No Círculo Polar Ártico, a noite de réveillon começara com a invariável sauna, seguida de um banho de neve para os mais valentes. Uma vez à mesa, Salo apresentou o cardápio. Tinham ensopado de rena com batatas. Na sequência, filé de veado branco com espinafre e quatro peças bem passadas de carne de urso – iguaria da realeza. Não, não é carne que se coma ao ponto. À cabeceira, pontificava o caçador em pessoa. Era o taxista Jussin, detentor da incrível marca de sessenta e oito animais abatidos. A descrição das caçadas, contudo, traria adrenalina indesejável à mesa de Ano Novo. Sábio, ele sugeriu que primeiro se servissem com apetite. Depois, falariam dos bichos adoráveis. Isso porque Jussin ama os ursos pardos.
III
Outra ocasião que não lhe saía da cabeça era ambientada no colégio dos grandes gramados. Já escurecera fazia duas horas. Mas o tio ainda não chegara para pegá-lo. O que estava acontecendo? Foi Lima, um homem alto e ossudo, que sabia mesclar rigor com empatia, quem passou uns minutos lhe fazendo companhia. O corpo do Padre Henrique fora encontrado num matagal da Cidade Universitária. A comunidade Marista estava enlutada. Comentava-se de um seqüestro ali perto, num abrigo de Parnamirim. O Irmão estava sentencioso e amargurado. Instado pelo pequeno Felipe, lhe falou sobre a nobreza dos que morrem com sede de justiça. Por que, então, esperar a morte para ser saciados? Mas a pergunta calou. Afinal, era o ano da primeira comunhão.
IV
O que fazer se você dá de cara com um urso nas lonjuras da Finlândia ou da Rússia? Pois bem, acerte-o com uma única bala na junção da pata direita com o tronco portentoso. “Não há mais nada que se possa fazer, Jussin? Correr? Ignorá-lo?” Nada, disse ele. É luta desigual, pois ele vai atacá-lo. Nas caçadas, por uma única vez, ele teve que disparar dois tiros para dar cabo de um deles. Odiara-se. Foi quando o urso matou com uma patada certeira a cadela favorita, uma referência na linhagem. Com raiva no coração, errou o primeiro tiro. A foto valeu a primeira página no jornal de Tallinn – um urso furioso e acuado. O programa preferido de Jussin e Ella é acampar na taiga e, protegidos, filmar os filhotes em família. Ao apontá-los na tela, ele se enternece.
V
Que alegria grande lhe reservou a década de 1960? Talvez o orgulho que teve no dia em que a professora lhe reconheceu os esforços e registrou na caderneta escolar duas notas dez; um nove e um oito. Para quem não dava a mínima para a escola, apesar de amar a cultura, era um marco e tanto. Foi pouco depois desse período que assomou no horizonte o exame para o colégio novo. A mãe lhe dissera que se submetesse só para fazer um teste. Seria impossível cogitar da aprovação, pois dezenas de meninos passavam por preparação especial para as provas. Como querer que ele fosse aprovado a frio? O fato é que o destino conspirou para que passasse. Desde então, uma etapa da vida ficara para trás. Radicalmente, mas talvez para melhor.
VI
Na mesinha da sala de estar, Jussin colocou um palito que mais lembrava marfim. Tinha o tamanho de uma caneta e um engaste de ouro par que fosse pendurado numa corrente em volta do pescoço. Então, virou-se para o novo amigo e lhe deu de presente o objeto misterioso. Mas do que se trata? É um baculum. É o osso peniano dos ursos. Ele próprio caçara o desafortunado dono daquele. Não, não podia aceitar o presente. Jussin fez questão e insistiu que era por amizade. Dera um similar ao corredor de Fórmula 1, Kimi Räikkönen, que não sai às pistas sem ele. Emocionados, os dois se abraçaram. Quem olhasse de fora da paisagem branca, riscada por clarões da Aurora Boreal, diria que eles eram dois ursos que confraternizavam no centro do tapete.
VII
A década de 1970 começou sob a égide da renovação. Era um prazer enorme percorrer a pé o caminho que levava à parada de ônibus da rua Riachuelo. Naquele ano em que o Brasil se tornaria campeão do mundo no México, jogando com um time cuja exuberância jamais será batida, se veiculava pela televisão um filme em preto e branco cujo tema era a volta às aulas. Um menino de sua idade saía pelas ruas arborizadas do Rio de Janeiro a caminho da escola. Até ao atravessar o parque 13 de maio, ele parecia imitar o caminhar ritmado do rapaz. E foi então que se deu conta de que poderia se ver a partir do olho de uma câmara invisível que tudo filmasse. Inclusive e, sobretudo, sua pequena vida. Vez por outra, pegava um jambo maduro do chão.
VIII
A vida trepidou forte em outro confim da terra. No ponto extremo sul da Nova Zelândia, depois de dois dias ao volante desde Auckland, achou que era hora de ligar para a família. Acaso não percebera o pai ofegante ao telefone, apenas algumas horas antes do Ano Novo, lá do distante Recife? Por que a beleza extrema se entrelaça vez por outra com as notícias mais pungentes? Foi então que a mãe lhe contou que o pai falecera no alvorecer do novo milênio. A namorada olhou-o em pânico enquanto ele devolvia o telefone ao gancho. Trouxe-lhe um copo de água com açúcar e perguntou se queria companhia. Ele afagou a cabeça das crianças e pediu para dar uma caminhada em torno do lago de Queenstown. Sem hora para voltar. Relutante, ela aquiesceu.
IX
Outras reminiscências que lhe voltavam ao espírito nessas horas de evasão se misturavam num todo único, difícil de destrinchar. A partida do primo querido para um intercâmbio nos Estados Unidos. A paixão platônica pela menina moreninha que vez por outra aparecia de trança e meiões brancos. O dia em que o mundo balançou quando um italiano bêbado lhe deu uma tapa no playground do prédio. A partida para a França num voo cheio de gente simpática e cheirando a colônia cítrica. Os passeios de ônibus até Dois Irmãos e o aeroporto. O cheiro de tinta de impressão que impregnava a Livro 7, no centro do Recife. A lanchonete que lhe era quase vizinha onde um homem da pele sulcada vendia cachorro quente pernambucano e caldo de cana.
X
O restante da viagem foi incrivelmente suportável. O que o pai mais quisera na vida? Que ele jamais abortasse uma missão. Nem mesmo quando um homem foi assassinado no quarto vizinho ao seu, em Moscou, no começo dos anos 1990, o pai lhe perdoou que tivesse voltado mais cedo para casa por conta de episódio tão trivial. Custou-lhe convencê-lo de que deixara a Rússia porque a missão terminara. E não porque ficara impressionado com os grunhidos do supliciado. Não fora o pai que o repreendera por voltar de Lima para o Recife pelo simples fato de ele ter sido hospitalizado? Onde já se viu tamanha pieguice? Foi talvez por isso que a viagem tenha prosseguido. Até carne de canguru comeram na Austrália. As crianças adoraram vê-lo bem.
XI
De metade da década em diante, a relação com a cidade passaria por uma imensa transformação. Não somente porque viveu e se ancorou no exterior. Mas também porque quando voltou ao Recife, a vida familiar estava transformada. Tinham deixado o velho e bom apartamento onde até hoje seus sonhos são ambientados. O pai lhe presenteara com um automóvel novo em folha com que ia para as aulas modorrentas na Cidade Universitária. Por fim, ele começou a ver o Recife sob ângulo inédito. Ali deveria se entregar ao que a cidade tinha de melhor a oferecer: a sensualidade das mulatas; o sabor acidulado das batidas exóticas e a embriaguez desenfreada. Enfim, ele virara um gringo. “Maybe forever”. Deixaria um dia de sê-lo? “Nein, lo , non, niet, no”.
XII
Para onde mais viajara para conferir se a Terra terminava em algum lugar? De Rekyavík, na distante Islândia, saiu em missão inglória de país adentro. O agente local estava mais perdido do que ele próprio na paisagem lunar da longínqua ilha, e a toda hora propunha que tomassem mais um banho nas piscinas geotérmicas. O ar rescendia a ácido sulfúrico, como a fábrica onde trabalhara. A lava petrificada dava lugar a enseadas onde se salgavam peixes, e mulheres de ar austero acionavam comandos que alimentavam enormes aquários onde se criavam salmões. Gústavvson levou-o à casa onde Bobby Fisher e Boris Spassky viveram momento importante da Guerra Fria. Sem tabuleiro, Reagan e Gorbachev também se avistaram por lá, a meio-caminho de casa.
XIII
Depois viria o sul do Brasil. Por que não ter ido viver na Alemanha, onde fora tão feliz? Por que não ter feito todo e qualquer esforço de resistência para se manter ao abrigo do País ensolarado e calorento, onde a vida tinha que ser vivida por sobre um fosso de dicotomias? Ali, pois, se vivia a vida de duas formas: ou inserido entre os aburguesados. Ou se optava por renegar tudo e ir para o pólo oposto. Em que lugar ficava a gente normal que via na Europa? Aqueles que podiam até ter um carro na garagem, mas que se deslocavam no dia a dia de ônibus? Onde achar um lugar para si entre intelectuais e a gente enfatuada e acomodada – aquela que via em comunistas a personificação de Satã? Que mundo estranho era aquele? O que perdera no Brasil?
XIV
Na última noite, resolveu convidar o islandês amalucado a um bom restaurante na capital acanhadinha. Acaso não comiam sashimi de baleia por aquelas bandas? Não eram os ilhéus os mais empedernidos defensores da caça ao cetáceo, ao lado do Japão e da Noruega? Convidou-o, então, ao Prir Frakkar. Mas como refugar a entrada estapafúrdia que trouxeram? Carne de tubarão crua conservada sob a terra. Uma merda, sim, mas imperdível. À custa de bebida, arrematou com o Plokkfiskur. Quando chegasse a Londres, se desforraria com o melhor corte Angus do Reino. Era verão, o sol não se punha. A temperatura era de zero grau. Naquela noite branca, sonhou com a Cidade do Cabo. Norte e sul, sul e norte. Jamais pertenceria a um lugar nem a alguém.
***
Fernando, seus textos são tão bem escritos e tão ricos em vivências que inibem os comentários. Que dizer sobre eles? A mim, provocam admiração e deleite. Além de uma amistosa inveja.
Clemente,
Fico lisonjeado em tê-lo como leitor. Na falta de poder escrever sobre coronéis severos e praias risonhas, só me restou juntar algum repertório bem longe do olhar implacável dos conterrâneos. Nesses rincões, então, pensava no Recife. Por alguma razão, Cioran dizia que o patrimônio de um escritor são suas vergonhas. Muito obrigado, amigo.
FD
O sol não se põe no coração da lealdade às cidades. Belo texto.
Obrigado, Luiz Otávio.
Seu comentário é uma lisonja e um estímulo.
Abraço,
FD
Fernando, de novo seu jeito de narrar foi a armadilha que me apanhou. Atraído pelo quadro inicial e tão familiar da cheia do Capibaribe, segui com a leitura. E caí sob a hipnose de uma viagem pendular (a journey in the mind…), entre algum mundo estranho, sempre diferente, e um mesmo ponto de partida, onde você crescia. O terminal foi um jantar à meia-noite no restaurante gelado em Rekyavík, o sol teimosamente recusando se pôr: um Plokkfiskur (peixe frito?), talvez delicioso depois daquela horrenda carne de tubarão servida de entrada…. Da leitura, uma certeza e uma suspeita. A certeza é que você, pelos afetos, pertence, sim, a um lugar: Recife, Pernambuco. O codinome (FeliPe), aliás, denuncia. A suspeita vai em forma de pergunta: não haverá um livro de contos em sua gaveta? Abraço cordial. Apareça!
Obrigado, Luiz Alfredo. Você sempre me surpreende com “insights” que me escapam. O “FeliPe” do codinome foi um achado. O Plokkfiskur é uma gororoba de peixe com batata. Quanto ao livro de contos, who knows? Quando for aí, te aviso.
Abraço,
FD