Fernando Dourado

Rainha Elizabeth II - Anos 60.

Rainha Elizabeth II – Anos 60.

Para Sua Majestade Rainha Elizabeth Alexandra Mary de Windsor II, com a Graça de Deus, da Grã-Bretanha, Irlanda do Norte e territórios de Além-Mar, Rainha da Comunidade Britânica e Defensora da Fé.
Palácio de Buckingham
Londres, Grã-Bretanha

 

De Dr. Percival S. Pollock, médico
Fazenda Balmoral
Gravatá, Pernambuco
Brasil
God save the Queen

Majestade,

Meus respeitos. Pouco familiarizado com o protocolo real, pois já esqueci os rudimentos aprendidos no passado, achei disparatado me dirigir à Rainha das rainhas com um coloquial hello, como sugeriu minha filha que, aqui a meu lado, me dá uma mão na redação desta carta em vosso idioma. Afinal, disse a ela, não estou com Sua Majestade num pub de Knightsbridge tomando o Tanqueray com água tônica de que ela tanto gosta. Não importa. Tendo eu começado certo ou não esta missiva, tudo o que sei é que nunca é tarde para dirigir-lhe uma calorosa saudação – que poderia ser um brasileiríssimo abraço, se a tanto me permitisse -, por ocasião de seus profícuos 90 anos de vida. Embora saiba que milhões de súditos pedem a Deus diariamente por sua segurança e saúde – oxalá venha a superar as marcas da saudosa Rainha-Mãe -, não custa acrescentar os votos de reforço de quem de há muito se orgulha de ser seu admirador agradecido, ademais de cristão devoto que, aqui do refúgio serrano do Agreste, também ora por Vossa Majestade e nunca a tirou de seus pensamentos. Ainda que mais não fosse, para que possa revê-la antes que me vá de vez aqui da Terra e me levem para o pequeno Cemitério dos Ingleses onde não poderei mais ouvir os sabiás e curiós das manhãs recifenses.

Foi graças à fé, aliás, que me atrevi a lhe enviar essa carta-surpresa que, do alto da clemência do trono, espero seja lida e relida por Vossa Majestade pessoalmente. Pelo próprio teor da missiva, como verá, sugiro que não a comente sequer com sua confidente mais próxima para que o assunto não vaze pelas cavalariças reais, e daí ganhe as altas rodas londrinas pela boca soez de criados e jornalistas, gente que se alimenta do gossip, palavra tão adorável quanto de significado repulsivo. Acompanho bastante a vida da corte para avaliar o quanto os tabloides podem transtornar o cotidiano do Palácio e, se minhas palavras valessem uma desdita a Vossa Majestade, fique certa de que ainda me sobrariam forças para eu mesmo reparar o mal nas redações de Fleet Street com a força declinante de meus punhos azulados. Não foi para ser ridicularizado – nem expô-la a chistes – que há meses escrevo esse documento, tendo já redigido muitas vezes cada parágrafo. Tudo isso com o bom intuito de restaurar nosso histórico sem distorções e, como verá, de agradecer a Vossa Majestade pelas dádivas que me trouxe. Em português, dizemos que recordar é viver. A essa altura de nossas vidas, portanto, poucos prazeres estão tão à nossa mão quanto o rememorar, embora outros ainda possam ser tentados.

Isso dito, espero que esteja sentada para acolher o impacto da boa nova. Boa nova esta que, só com a leitura atenta destas linhas, ganhará pleno sentido. Mas não a torturarei com delongas. Pois bem, tenho a satisfação de informar que eu, Percival Samuel Pollock, estarei em Londres a partir de 13 de junho desse ano de graça de 2016. Oportunamente, informarei o horário preciso do voo em que chegarei, mas adianto que viajarei com a British Airways, mais precisamente no avião que parte do Rio de Janeiro na véspera. Credite minha preferência pela bandeira mítica em parte a uma homenagem que presto a Vossa Majestade. Em outra, à experiência dos pilotos britânicos e, por fim, à oportunidade que me propiciará a longa travessia para me dirigir às comissárias no inglês que, na infância, aprendi com meu pai e de que, infelizmente, pouco me vali na vida de médico de província. Embora o saiba carente dos vernizes da realeza, ele bastará para que nos entendamos, se Vossa Majestade me der a honra de uma conversa privada, à altura do momento por que tanto anseio. Tenho certeza, aliás, de que o Sua Alteza o Príncipe Philip não se abespinhará com minha chegada. Quando muito, me brindará com uma tirada espirituosa e me perguntará como venho sobrevivendo sob o sol inclemente por todas essas décadas.

Isso dito, peço que mesmo quando informada do voo, e apesar de tudo o que Vossa Majestade lerá abaixo, não se abale para me recepcionar pessoalmente em Heathrow. Já será muito que instrua um motorista discreto e que honre a tradição de pontualidade das Ilhas. Como não quero meu nome garatujado em plaquinhas de saguão, mando uma foto atualizada para que ele me identifique com presteza, como nos convém. Nesse ponto, gostaria de contar com a compreensão de Vossa Majestade para um detalhe. Desculpe dizê-lo nesses termos, mas sei que todas as mulheres – mesmo as da mais pura Realeza – se assemelham deveras diante da frustração. Assim, embora fosse teoricamente possível chegar a Buckingham para o chá das cinco, peço que o adiemos para o dia seguinte, quando estarei descansado e de aspecto mais assentado. Não é todo dia que um homem de minha idade se submete a um voo tão longo. A bem da verdade, só o fiz uma única vez e foi precisamente para revê-la à distância por ocasião do Jubileu de Prata, lá se vão tantos anos. Chegaria a Buckingham, portanto, na tarde do dia 14. Estando hospedado no Park Lane, não tardarei sequer dez minutos e espero que os trâmites de acesso sejam sumários. Confirmo que posso ficar para o jantar, me antecipando à inevitável pergunta.

A esse respeito, minha filha diz que os repastos britânicos consistem de carneiro, pudim de rim ou linguado – espécie de trio real. Por ocasião de nosso reencontro, Majestade, comeria de bom grado até ovo frito com torrada, se isso não soasse vulgar. Logo, que não se preocupe, embora peixe não seja má ideia. Um cálice de Chablis pode ser também uma boa escolta. Na sequência, combinaríamos de ir juntos ao Royal Ascott no dia seguinte. Assim, acompanharíamos lado a lado as corridas de cavalo que sei que são de seu gosto. De qualquer sorte, deixemos que as coisas corram em seu devido tempo a aproveitemos esse momento para antecipar os tópicos preliminares que permearão o reencontro. É o que me dita a intuição, apesar de nunca ter sido muito afeito aos labirintos da alma feminina, pelo menos até conhecê-la e, de novo, já o explicarei.  Como você – me permita esse abrandamento protocolar já que, em inglês, o you prevalece – há de ter constatado pela fotografia, eu já não sou o homem que você saudou naquela tarde de 18 de novembro de 1968, quando nossos olhares se cruzaram na cidade do Recife. E quando, resplandecente, você saltou do carro descapotado ao lado do robusto Governador, me sorriu com todos os dentes e, estendendo a mão enluvada, disse “How do you do, Dr. Pollock?”

Como definir aquele momento, Elizabeth? Dizer que foi como se as portas do paraíso se abrissem depois de uma manhã dolorosa, seria incorrer em clichê imperdoável. Mas foi um pouco assim que me senti. E por que? É o que quero contar. O que sucedeu na minha modesta vida apenas horas antes de sua chegada, falará por todas as palavras do mundo. Pois preocupadas com a má impressão que podiam causar ao Casal Real as moças de vida fácil a mirar uma Majestade de carne e osso do alto dos sobrados lendários onde funcionavam os lupanares recifenses – numa região que chamávamos então de zona – se determinou que, na impossibilidade de desviar o trajeto que a traria ao Palácio, se fechassem todas as janelas e se batessem traves com prego em “X” sobre elas. Assim fazendo, ademais de reforçar a segurança contra um franco-atirador tresloucado, as rameiras não se apresentariam de qualquer jeito para vê-la passar, causando constrangimento ao cerimonial – quando não a você própria. Desde a véspera, portanto, eu acompanhava as operações em curso para impedir as messalinas de se debruçar de rolos no cabelo; toucas de meia e sutiãs puídos. Em nenhum momento as impediríamos de acompanhar a passagem da calçada, mas temíamos o despudor do alto de um casario, onde se sentiam deveras em casa.

Enquanto essa operação se desenrolava longe do olhar do público, eu integrava, como ginecologista-obstetra, o círculo próximo do então Governador e, embora constasse da comitiva real seu clinico particular, Nilo Coelho, também médico, houve por bem me convocar para que, em caso de urgência, eu pudesse mobilizar nossos principais hospitais, cujas emergências colocamos de prontidão. Nas ruas, seis mil policias militares montavam guarda, com uma dupla em cada esquina. Já ultimávamos os preparativos depois de nova verificação, quando chegou a meu conhecimento, pela chefia de gabinete, que uma jovem prostituta entrara em trabalho de parto durante a inspeção ao sobrado e que estava a perder sangue. Tinha eu então 45 anos. Era solteiro e me dividia entre o Country Club e o Caxangá Golfe. Naqueles anos, tínhamos remanescentes da velha colônia britânica no Recife e eu estava bem entre eles, pouco se me dando se o fato de ser solteiro alimentasse mexericos. Importante era que, até então, jamais perdera uma paciente. Ao chegar, contudo, ao sobrado malcheiroso da rua Vigário Tenório, vi que a mãe não sobreviveria. Empenhei-me, portanto, em lhe salvar a filha. Com meus dedos, descerrei as pálpebras da defunta. Com as mãos treinadas, aparei a menininha de olhar expressivo, quase sorridente e inocente de tamanha desdita.

Assinei a papelada para que a mãe fosse sepultada tão logo possível. Fui até minha casa, no bairro do Derby, e lá vesti um terno azul-marinho impecável com um lenço de linho no bolso do paletó. Penteei o bigode fino que copiara de David Niven e deixei os cabelos reluzentes de gomalina. No carro, ainda chorei algumas lágrimas pela má sorte daquela desventurada potiguar que se despedira da vida justo no dia em que o Recife se engalanava para receber de todas a mais elegante das mulheres. Mas então pensei na fleugma proverbial de meu velho pai, um inglês de Oldham que comandara a Anderson Clayton no Nordeste, e me contive. Com a credencial, cheguei a tempo de saudá-la. Foi então que, à porta do Palácio, você me sorriu. Minutos mais tarde, Elizabeth, no aconchego do grande salão embandeirado, depois de flagrá-la por algumas vezes a me olhar com uma ternura que nunca soube se era pessoal ou apenas parte de seu grande carisma, justo quando estávamos quase lado a lado, aconteceu o melhor de tudo: o black out providencial. Com o salão às escuras, diante do desespero bem humorado da Primeira-Dama do Estado que providenciava velas e castiçais, aconteceu a magia.

Tenho certeza de que você está bem lembrada desse momento pois, apesar de tantas pessoas e paisagens que já lhe desfilaram pela retina nesse intervalo, aquele instante também há de ter sido singular para você. Foi quando, sob o olhar preocupado de Nilo Coelho e a perplexidade estampada na expressão do Chefe do Cerimonial, Paulo Fernando Craveiro, você me apertou o antebraço com o fervor de quem sabia não dispor de muito tempo e sussurrou as palavras que transformaram minha vida: “You are a good man, Dr. Pollock” . De onde você tirara palavras tão singelas e oportunas? Como me chamar de bom homem se eu trazia na alma a dor de ver aquela menina se esvair em sangue sem nada poder fazer? Como lhe fiquei agradecido, Elizabeth. Sob a lanterna intrusa dos seguranças, logo nos recompomos e, com toda naturalidade, você disse que aquela cena de escuridão também era corriqueira em Londres. Especialmente no período da Guerra. E que só faltavam as sirenes em disparada por Charing Cross para a cena ficar fidedigna. Naquele momento, ao sentir o frescor de seu hálito, entendi que fizera bem em ter me resguardado de qualquer mulher. Ali também soube que jamais pertenceria a outra. Então, tomei uma decisão quando as luzes voltaram entre vivas e aplausos, decisão esta que conto a seguir: adotaria a garota nos dias seguintes.

Pouco depois do black out, a veria partir e creio ter flagrado o mesmo olhar quente e solidário que sentira havia tão pouco. Você parecia entender tudo. No mesmo entardecer, enquanto o iate Britannia sulcava o Atlântico rumo a Salvador, fui saber da menininha que sobrevivera ao parto e cumpri o trâmite simples e corriqueiro, próprio de numa época em que o bom senso era a lei. Batizei-a então de Elizabeth Alexandra Mary Pollock. Essa moça hoje tem 47 anos; estudou por anos em Oxford e lá se tornou boa médica. Certa ocasião, teve a honra de cumprimentá-la quando da inauguração de uma ala do hospital John Radcliffe, na cidade onde estudou. É ela, querida Rainha, que hoje me ajuda com a tradução da carta e todos os trâmites da derradeira viagem deste velho escriba que o tempo ainda não conseguiu vergar de todo. A partir daquele dia, pois, eu ganhei uma verdadeira razão de viver. Foi só então que passei a entender a alegria de meu amigo Boxwell, feliz com suas meninas graciosas. Tudo isso eu devo àquele dia, Elizabeth. Daí querer viver a magia desse reencontro a que, tenho certeza, você não se furtará. Para você, bem sei, esse quase meio-século transcorreu em palácios, cercada de cãezinhos serelepes. Quanto a mim, moro nessa fazenda ladeirosa há décadas e que batizei, em sua honra, de Balmoral, seu refúgio preferido.

Assim sendo, foi graças à sua infinita graça e discreta sensibilidade que ganhei minha Elizabeth, cuja desventurada mãe ficou no meio do caminho. Por certo que tencionava esperar 2018, quando se completará o cinquentenário de sua visita ao Recife, para fazer esse encaminhamento. Nesse dia, minha filha também estará às voltas com uma comemoração com meus dois netos. Mas temo que não estarei mais aqui para apresentá-las uma à outra e dizer o quanto sou grato a ambas. Fato é que quando o cortejo real cruzou o Recife antigo, a potiguar Avanir ainda jazia num catre entre duas velas, à espera que rabecão acessasse a área isolada. No pronto socorro, a menininha ganhava vida e desde então só desgrudamos quando ela foi morar fora. Daí, Elizabeth, querer tanto antecipar em um par de anos nossa celebração. Pois quem disse que não há conexão entre a monarquia e o povo? Daquele dia em diante, passei a ser um homem melhor. Se meu genitor foi súdito devotado de seu honrado pai, eu, um descendente direto, conquanto leal a essa terra de cores e gente de falar vivaz, mais do que nunca me persigno diante de ti, ó Rainha, e, humildemente, peço conceder essa audiência à sua xará e a mim. Mesmo que sem os bons serviços da cozinha e da adega. Quanto mais não seja, para que aquela pobre mulher do povo, cuja vida vi se esvair em minhas mãos, possa sorrir da sorte da filha de onde estiver e, a seu modo, entoar comigo “God save the Queen”.

Até mais ver, Majestade.