Marcus Alban[1]
Respondendo a uma crítica do economista Sérgio C. Buarque, no artigo “Muito Além do Ajuste Fiscal”, recém publicado nessa Revista, busquei demonstrar porque o ajuste fiscal, hoje em curso sob o comando do Henrique Meirelles, não é necessário, nem desejável, para a superação da crise. Ao contrário, como espero ter demonstrado, ele tende a agravá-la ainda mais. Faltou porém, explicitar qual seria então a alternativa a esse tipo de ajuste, e por isso retorno ao tema no presente artigo.
Naturalmente, se o ajuste recessivo agrava a crise, para superá-la devemos fazer exatamente o contrário. Sei que quando tantos economistas, políticos e jornalistas repetem sistematicamente que para sairmos da crise temos que passar por duras medidas recessivas, dizer que devemos fazer justamente o contrário parece uma grande sandice. Mas é isso mesmo, simples assim. A saída é, com competência, fazermos exatamente o contrário.
E o que é fazermos exatamente o contrário? Para termos clareza sobre essa questão, precisamos analisar com mais vagar o que é mesmo o ajuste que se encontra em curso. Segundo Meirelles, bem como Ilan Goldfajn, seu fiel escudeiro do BC, o grande objetivo é voltarmos a apresentar superávits primários. Com estes, em tese, a relação Dívida Pública/PIB pararia de crescer, ao menos em termos explosivos, dando mais confiança aos agentes. Nesse sentido, é que se defende o corte das despesas e ampliação da receita, via novos impostos e ou venda de ativos.
Esse é um objetivo/estratégia bem curioso porque, se olhamos os dados com cuidado, vamos ver que o grande causador da explosão da nossa dívida pública não é o déficit primário, mas sim o gigantesco déficit nominal, onde são incorporadas as despesas com juros. De fato, tomando os dados de 2014, quando caldo começa de fato a entornar, vamos ver que enquanto o déficit primário foi de 0,6% do PIB, o déficit nominal foi de 6%, elevando a relação Dívida/PIB, de 52% para 57%. Ou seja, o grande culpado não são os ditos gastos excessivos, mas sim os juros absurdos – os maiores do mundo – com os quais rolamos a nossa dívida.
Os juros absurdos, por outro lado, são também os grandes responsáveis pelo próprio déficit primário, na medida em que deprimem a economia provocando a queda das receitas. E por que os juros são tão altos (e isso em um contexto onde vários sistemas financeiros encontram-se operando com juros muito baixos / negativos)? Bem, aí o argumento é o da inflação. Como nos dizem Meirelles e sua equipe: a inflação desarruma a economia, e prejudica sobretudo os mais pobres, e por isso mesmo é preciso mantê-la sobre controle, mesmo que a custas de juros muito elevados.[2]
Embora coerente com o mainstream econômico, esse é um argumento/estratégia também bastante curioso. Ocorre que, se pegarmos os dados, veremos que, enquanto entre outubro de 2012 e agosto de 2015, a taxa SELIC evoluiu de 7,25% para 14,25% (patamar em que se mantém até hoje), no mesmo período a inflação (medida pelo IPCA acumulado nos últimos 12 meses) saltou de 5,45% para 9,55%, atingindo a máxima de 10,71% em janeiro de 2016. Os economistas do mainstream dirão que isso ocorre pela natural defasagem de reação da economia, e referendando esse argumento, observarão que agora a inflação está enfim caindo. Mas faz sentido esse argumento? Faz sentido que a inflação demore tanto para cair, e que antes de cair siga subindo mesmo com a economia se contraindo, gerando milhões desempregados como ocorreu em 2015, e segue ocorrendo em 2016? Certamente que não.
Como qualquer economista menos dogmático reconhece, os processos inflacionários não são idênticos, ou seja, não possuem todos a mesma causa. E claramente a atual inflação brasileira não é uma inflação de demanda – se fosse já estaríamos, há tempos, em meio a uma forte deflação. Em linhas gerais, trata-se de uma inflação decorrente de: preços administrados – que tendem a se elevar quando a demanda cai –, de uma insustentável política de indexação e expansão do salário mínimo acima dos ganhos de produtividade da economia, e, sobretudo, da necessária importação de bens, precificados em Dólar, dada a desindustrialização vivenciada por nossa economia desde o Plano Real. Dessa maneira, admitindo que o objetivo não é baixar a inflação destruindo toda a economia – como está ocorrendo – o único impacto efetivo sobre a inflação da elevação da taxa de juros é a valorização do Real. Com a valorização, as importações se tornam mais baratas e as exportações menos viáveis, levando a uma redução de preços dos chamados bens tradables no mercado interno. Mas há sentido em fazer isso?
Tal política, sob o comando da dupla Palocci – Meirelles, foi possível nos anos Lula porque naquela época havia uma China que, crescendo a taxas superiores a 10% ao ano, era uma ávida importadora de commodities, o que viabilizava as importações de nossa desindustrialização. Hoje, com o mundo estagnado e a China desacelerando, isso não é mais possível. De fato, na atualidade, a única maneira de contermos a inflação com juros altos e Real valorizado – e o Real com o Dólar entorno de R$ 3,50 ainda está muito valorizado – é destruímos a nossa economia, provocando um enorme caos social, como ocorre no momento presente em que estamos quebrando inúmeras empresas, estados e municípios, e já contamos com mais de 11 milhões desempregados.
Como se observa, salvo para quem é banqueiro ou rentista do sistema financeiro, não faz mesmo nenhum sentido seguirmos adiante com a atual proposta de ajuste fiscal. É preciso, portanto, fazermos exatamente o inverso do que se encontra em curso. E, voltando ao início do artigo, o que é o inverso então? Em linhas muito gerais, fazer o inverso significa, num primeiro momento, abandonar o dogma da busca do superávit primário a qualquer custo – como já demonstrou Keynes, lá nos idos de 1930, buscar superávits em meio a depressão é uma completa insanidade.[3] Assim, é preciso sem dúvida racionalizar o gasto público, mas não cortá-lo e limitá-lo arbitrariamente como vem sendo buscado.[4]
Paralelamente, e por um tempo muito maior – alguns bons anos certamente –, é preciso reduzir os juros paulatinamente, viabilizando a desvalorização do Real, também paulatinamente, de modo que a competividade de nossa estrutura produtiva vá sendo retomada, tanto no mercado interno quanto externo, permitindo que a inflação possa ser combatida via investimentos, produtividade e níveis de concorrência crescentes. Note-se que o processo tem de ser de fato paulatino e constante, e não abrupto, para que a desvalorização do Real engendre efetivamente a expansão competitiva da base produtiva. Ou seja, engendre a reindustrialização, e não a mera inflação como ocorreu na transloucada redução de juros dos anos iniciais da presidente Dilma.[5] Naturalmente, todo esse processo terá de estar acompanhado de uma nova política, não indexada, para o reajuste do salário mínimo, bem como de uma reprofissionalização das agências reguladoras, responsáveis pela coordenação dos setores de preços administrados.[6]
Obviamente, com a adoção de medidas, como as acima propostas, retoma-se o crescimento, mas não garante-se a sustentabilidade do mesmo a médio e longo prazo. Assim, vencida a crise imediata, com um crescimento em curso, na nova eleição em 2018, com muito mais tranquilidade e legitimidade, torna-se possível, e necessário, discutirmos um efetivo e equilibrado ajuste fiscal, avançando com as amplas reformas estruturais – politica, trabalhista, fiscal e previdenciária – de que o país tanto precisa.[7]
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[1].Engenheiro, Doutor em Economia pela FEAUSP e Professor do PDGS/EAUFBA – [email protected]
[2].Interessante observar que, nunca é dito que tal medida, tomada para proteger os mais pobres, provoca, naturalmente, uma brutal concentração de renda em favor dos detentores do sistema financeiro e seus ativos.
[3].Para os que não se contentam com a análise keynesiana, vale observar o atual caso da Grécia, que em 2009 possuía uma dívida pública da ordem de 130% do PIB, e na atualidade, após sucessivos anos de ajustes ficais austeros, sofrendo uma queda de 20% do PIB, elevou essa relação para algo superior a 170%,
[4].E claro, embora algumas desonerações equivocadas possam e devam ser revistas, não é o momento de se criar novos impostos, e muito menos de se vender ativos públicos a preços naturalmente muito depreciados.
[5].Importante acrescentar que, o que se está propondo aqui não é muito distinto do que foi feito pelo Canadá, quando de sua crise nos anos 90, nem pelos EUA nos anos recentes, pós 2007, com o chamado quantitative easing.
[6].Deve-se notar que, a exceção da nova política do salário mínimo, todas as demais políticas podem ser implementadas por decisões exclusivas do poder Executivo.
[7].Infelizmente, é pouco provável que as presentes análises/propostas venham a gerar algum eco na atualidade de Brasília. Contudo, se o caos social e seus desdobramentos populistas não nos engolfarem antes, suas linhas gerais serão inevitavelmente adotadas. E o serão, por uma imposição da realidade por sobre a teoria dominante.
Caro Marcus
Seu artigo é muito estimulante e competente. Mas, a meu ver, suas propostas estão longe de ser o avesso da política macroeconômica de ajuste fiscal ou uma alternativa não recessiva de equilíbrio das finanças públicas. Não resisti e, como não da para traduzir tudo em um comentário, escrevi outro artigo discutindo suas teses e explicando porque acho que a sua divergência é mais de dosagem do ajuste que, propriamente, uma alternativa a ele. Bom discutir ideias com a competência e elegância que trata temas tão complexos e polêmicos.