Elimar Pinheiro do Nascimento (*)

Boaventura de Sousa Santos é um dos cientistas sociais mais prestigiados no mundo, e provavelmente o mais reconhecido de língua portuguesa, depois que Fernando Henrique Cardoso resolveu trocar a carreira acadêmica pela política. Boaventura, porém, não é apenas um acadêmico, ele se insere sempre na política. E sempre com uma posição dita de esquerda, ou de defesa da esquerda. Não importa o que isso signifique hoje em dia, mas é a sua linguagem.

Recentemente, publicou um artigo em Espejos Extraños (janeiro/2016)¹, de título La izquierda del futuro: una sociología de las emergências. O título é ótimo, e lembra a sociologia das manifestações de Irlys Barreira, conceito usado pela autora para diferenciar da sociologia dos movimentos sociais. Mas, em meio a ideias interessantes e autocriticas alvissareiras, persistem velhas e incompreensíveis ideias políticas nem sempre democráticas, ou eficientemente democráticas. O artigo é exemplar de como as cabeças mais ilustres da dita esquerda não conseguem ver o conjunto da obra de seus erros, nem o conjunto das implicações perigosas da atual conjuntura internacional, mas também, nacional, no caso, brasileira.

O artigo de Souza e Santos é muito interessante, embora parta de uma constatação falsa, a de que se observa hoje uma novidade no campo da Esquerda: diferentes pactos de partidos de esquerda, o que apenas, segundo ele, ocorria sob regimes ditatoriais e nunca em regimes democráticos. Falsa, porque não tem respaldo empírico. Dois simples exemplos desmontam seu argumento, um estrangeiro e outro nacional: o primeiro é a frente de esquerda que levou Mitterrand ao poder na França realizada em plena democracia francesa em 1981 e, o segundo, é as imensas disputas entre as organizações de esquerda sob o regime militar no Brasil nos anos 1960/1970. Enfim, haveria muitíssimos outros exemplos em toda parte, mas não é o mais importante.

A razão desse suposto novo fenômeno seria a percepção, pela dita esquerda, de que está em jogo a democracia. O que é parcialmente falso. Parte da esquerda jamais aderiu ao ideal democrático. Mas, prossigamos, pois esta não é a parte interessante do texto. É uma simples afirmação ideológica². Há outra razão, aparentemente mais substantiva. Em suas palavras: “predominio absoluto del miedo sobre la esperanza”. Marca de nosso tempo de crises e desesperanças. Que lembra, de maneira incômoda, os anos 1930, aqueles que antecederam a Grande Guerra. E dos quais espera-se que o autor tire algumas lições preciosas.

Souza e Santos pergunta-se se esta (falsa) unidade será quebrada passado este período de risco. E que, para isso não suceda, sugere dois tipos de medidas. Aqui se inicia o interesse de seu escrito.

A primeira é denominada de Constitución, que significa o conjunto de reformas constitucionais ou infraconstitucionais que reestruturem o sistema político e as instituições com a finalidade de prepará-las contra as ameaças provindas das forças contrárias à democracia que, embora em suas palavras, sejam as forças de direita, percorre igualmente regimes de esquerda, ou que se dizem como tais, a semelhança da Venezuela. Cada país terá medidas particulares distintas, mas algo comum é ter um sistema eleitoral mais representativo e mais transparente. Pena que o autor não colocou aqui duas medidas particulares da mais alta significância do ponto de vista democrático: redução radical do custo financeiro eleitoral e cláusula de barreira aos partidos sem expressão eleitoral. A primeira democratizando de forma efetiva o processo e, a segunda, assegurando governabilidade e força aos partidos de base eleitoral, não importa de que matiz política.

Não se pode deixar de registrar aqui, ironicamente, que a defesa das instituições como condição necessária à democracia sempre foi uma tese dos liberais e institucionalistas, tidos erroneamente como de direita. Uma tese sempre negada por parte considerável da esquerda.  O que já coloca em questão esta falsa dicotomia entre esquerda e direita que ninguém mais sabe exatamente o que significa.

Um desdobramento dessa medida, proposta pelo autor, reside no fortalecimento da democracia representativa com o acréscimo da democracia participativa. Aqui, o terreno é mais complicado porque muitas vezes a dita esquerda interpreta este aspecto, essencial às democracias modernas, como forma de desvencilhar-se do processo eleitoral, criando instâncias sem voto e com poder. O que é democraticamente inaceitável. Há, no entanto, experiências muito interessantes de participação política que devem ser estimuladas e que podem mudar o jogo político, como a experiência conduzida atualmente pelo senador João Alberto Capiberibe (PSB/AP), de acompanhamento do orçamento e cobrança popular da justa aplicação do dinheiro público. Com as novas tecnologias há muitas formas novas de participação que as forças políticas, sobretudo as forças democráticas, têm o maior interesse e que podem modificar substancialmente o jogo democrático. No entanto, a esquerda tradicional insiste no velho formato de conselhos, de muito rito, pouco poder e eficiência discutível. Experiência que precisa ser analisada, discutida e, certamente, reformatada.

A segunda medida proposta pelo sociólogo português é denominada de hegemonia. Nome simultaneamente caro e perigoso.  Sua definição é, no entanto, justa e na trajetória de Gramsci:  “conjunto de ideas sobre la sociedad e interpretaciones del mundo y de la vida”. Na medida em que uma determina força política consegue fazer que suas ideias sejam compartilhadas e apropriadas pela maior parte da sociedade, ela passa a deter a hegemonia, ou seja, a capacidade de direção da sociedade em conformidade com estas ideias. Leia-se, as mudanças que conformam as forças democráticas no mundo, e não apenas a esquerda (aliás, esta pouco tem se aproximado de propostas de mudanças democráticas ultimamente). É preciso, contudo, ter presente, o que o autor não cita, que estas ideias têm que ser construídas no embate das lutas políticas como expressão dos interesses da maioria, e não o resultado de decisão de um pequeno grupo de esclarecidos, portadores da verdade, como certa esquerda se adora proclamar.

Formulado esses pilares, inicia-se a parte mais interessante do texto. Uma espécie de crítica cuidadosa, mas parcial, das experiências dos governos de esquerda na América Latina. Segundo o autor, elas não enfrentaram nem a questão da Constituição nem da Hegemonia. Em primeiro lugar porque desistiram da reforma política, em segundo porque não conseguiram estimular (e, assegurar) a presença no mundo da política os grupos sociais mais socialmente vulneráveis: as populações tradicionais, os sem-terra, as populações das periferias urbanas, os micro e pequenos agricultores, enfim, os mais desmunidos de recursos econômicos. As políticas públicas adotadas, quando no poder, não provocaram sua inserção política, e com isso não ampliou, nem robusteceu, a democracia. Assim, conforme o autor, as forças de esquerda da América Latina caíram nas “trampas de la vieja politica”.

Ademais, sempre segundo o autor, os partidos ditos de esquerda não conseguiram dar vida à democracia participativa no interior de seus próprios partidos, não conseguiram conduzir pactos consequentes com os movimentos sociais, pactos pragmáticos e não clientelistas.

Como não poderia deixar de ser, há propostas no mínimo inconsistentes. Em face de um aparato de mídia dominado pelo Capital, o autor, como outros, propõe a regulação da mídia. Regulação que, normalmente, aponta não para a ampliação da democracia, mas para o controle da mídia pelas forças governamentais. Arma boa para quem está no governo, mas não para quem está na oposição, e muito menos para a democracia. Aqui o autor se esquece do princípio democrático da alternância de poder.

O mais grave, porém, é a proposição de que não se faça alianças com forças de direita (nunca con fuerzas de derecha). Em face do crescimento, real e perigoso, das forças antidemocráticas, denominadas aqui de direita, mas na realidade fundamentalistas, propõe-se a velha estratégia, pregada erroneamente por Stalin, em face da ascensão do fascismo na Europa nos anos 1930, que resultou na vitória de Mussolini e Hitler. Um desastre político. E que se repetirá, caso os partidos defensores da democracia não consigam estabelecer uma ampla frente política contra a ascensão dos fundamentalistas reacionários. Frente que deve abarcar as forças democráticas, que compreendem não apenas uma parte dos partidos que se dizem de esquerda, mas defendem a democracia, como também partidos liberais e mesmo conservadores, mas democratas.

Só para concluir e a título de ilustração (ou gozação?). Não foi uma ampla frente democrática que venceu Cunha na eleição para presidente da Câmara realizada na madrugada desta quinta-feira, 14? Não foi a tal frente de esquerda (com esquerda) que levou a vitória deste mesmo Cunha nas eleições à mesma presidência no ano passado?

É difícil aprender lições com a prática quando se é dono da verdade, como uma certa esquerda. E, no entanto, como diz o verbo português, é preciso.

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¹ Disponible en http://blogs.publico.es/espejos-extranos/2016/01/01/laizquierda-del-futuro-una-sociologiade-las-emergencias/ Traducción: Antoni Aguiló y José Luis Exeni Rodríguez

² Ideologia no sentido Althusseriano do termo: algo que alude a realidade e a esconde simultaneamente.

(*) Sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação e Desenvolvimento Sustentável do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.