Terminei o relato passado falando do medo que senti ao ser intimado para prestar esclarecimentos à Polícia Federal. Continuo hoje relatando um evento que vivi sob o mesmo sentimento: medo – só que dessa vez experimentado não em dependências da polícia, mas nos corredores e salas da própria instituição onde estudava, a Universidade Federal de Sergipe. Digamos que foi um medo alcatifado. Mas foi.
Acho que era o ano de 1975, e os colegas queriam porque queriam que eu fosse o candidato “da esquerda” à presidência do diretório acadêmico. Terminei aceitando, obrigado por aquilo que um amigo, o ensaísta Fernando da Mota Lima, chama de “tirania dos afetos”. Mas aceitei a missão sem nenhum entusiasmo, porque nunca gostei – como continuo não gostando – da atividade política. Estou falando, obviamente, da política no sentido eleitoral do termo, um terreno viscoso em que qualquer um que ele adentre tem de deixar fora as veleidades de autenticidade – como Dante dizia a propósito da esperança que era preciso deixar do lado de fora quando se entrava no inferno. Enfim, passemos. Já com a campanha em curso, eis que sou um dia convocado a comparecer à Assessoria de Segurança e Informações da UFS, quando conheci uma figura chamada Hélio Leão.
Seu nome já me era conhecido. Tinha sido ele quem vetou um colega nosso a uma excursão ao sul do país por motivos políticos. Mas só conhecia de nome, e eis-me de repente diante do próprio. Nunca me esqueceu, como diria Machado de Assis, a sua figura insignificante. Em todo caso, desproporcional ao poder que detinha. Era um tipo baixinho, mirrado, um tanto macilento talvez por falta de sol, e, contrariando o sobrenome, gentil! Disse-me com delicadeza que as autoridades constituídas (ou algo assim) não viam com bons olhos a minha candidatura, e que eu devia renunciar. Uau! Nunca soube – e não me interessa saber – as razões do veto. Suponho que eram as consequências do inquérito a que tinha respondido na Polícia Federal.
Juro que neste momento em que escrevo não me lembro desses acontecimentos com espírito de revanche em relação a esses funcionários miúdos do regime. Antes, minha lembrança decola desse nível pedestre e sobrevoa aqueles anos valendo-se uma filósofa do quilate de Hannah Arendt sobre como o mal pode ser uma coisa banal. Terrível ensinamento. Parece-me, hoje, o caso. Não sei direito quem era Hélio Leão. A pessoa física, como diz um outro Leão, o do imposto de renda, não me interessa. Interessa-me pensar que era um funcionário cioso do seu emprego e das suas promoções, com o que garantiria uma boa pensão para a sua família. Quantos de nós teriam feito diferente? Não sei. Sei apenas que a questão me interpela. Outra vez, passemos.
Começou uma quebra de braço entre nós dois. Ele queria que eu renunciasse, e eu queria que ele assumisse o veto ao meu nome e me vetasse. Nada feito. Nenhum dos dois cedia. Se bem me lembro, estive uma ou duas vezes mais na Reitoria. E nada. Até que um belo dia comecei a ter medo. E, sem votos de “cordiais saudações” (pelo menos isso fiz!), enviei-lhe minha renúncia. Confesso, aqui entre nós, que me senti de certa forma liberado de uma carreira para a qual não tinha nenhuma vocação. Como dizia o finado Batalhinha (apresentador de um programa de rádio muito conhecido em Sergipe da minha infância) “Bença, Mãe Maria… desapareci!”.
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Luciano, excelentes essas reminiscências que contextualizam o que é viver sob uma ditadura no cotidiano. São comuns os relatos heróicos. Mas o medo, as vacilações, as pequenas resistências do indivíduo comum costumam não merecer os holofotes da grande História. Penso que você poderia dar uma contribuição refletindo a respeito. Sabemos dos relatos épicos dos que pegaram em armas, saíram para o exílio ou foram presos, torturados e mortos. E é justo que se registrem os fatos e se clame por justiça. Mas ao batalhão desses pequenos funcionários, Eichmanns suburbanos, correspondia quase simetricamente uma multidão silenciada submetida ao medo diário e difuso. Especulo até que essa “cultura da opressão e do medo” é o pior legado das ditaduras. Pois, como Nabuco percebeu em relação à escravidão, extinto formalmente o regime de exceção, seu fantasma continua nos assombrando por anos, décadas.
O texto acima do Luciano Oliveira me fez viajar por uma situação semelhante que vivi, que aqui relato.
Corria o ano de 1971, na época braba da repressão da ditadura Médici. Eu tinha voltado a militar em organização clandestina após 1 ano de desbunde total (1970), consciente de que não havia vida do lado de lá para mim. Era lutar ou lutar.
Eu coordenava um pequeno grupo clandestino, a Politica Operária, com 2 ou 3 militantes bem plantados, e tentava reorganizá-lo na região. Isso implicava um trabalho de logística perigoso, de trazer material político e doutrinário do Rio e/ou SP, para onde viajava com frequencia, de ônibus. Em uma dessas vezes, eu traria uma mala (literalmente uma mala, das grandes) recheadas de material para uso na regional. Como tinha algumas coisas a resolver, deixei-a no guarda volume na Rodoviária Novo Rio e passaria ainda uns 2 dias circulando no Rio.
Quando chegou o dia da minha viagem, fui ao guarda volume retirá-la, e para meu susto, não estava com o ticket da operação. E agora? Abandoná-la significaria me queimar para o resto da vida, pois estava no meu nome. A regra do guarda-volume, nestes casos, é você dizer o que tem dentro e eles abrem a mala para conferir. E aí?
O medo me tomou, e o futuro tenebroso me assustava. Não contava com esta loucura que acontecia naquele momento.
Com serenidade, uma característica que sempre me acompanhou na vida inteira, e confiante em uma solução positiva, passei a refletir. Onde eu teria deixado aquele ticket? Que argumento eu teria para o funcionário do guarda volume?
Voltei à casa onde eu tinha estado pela última vez, de um primo meu, e após uma busca intensa por várias horas, encontramos o danado do ticket embaixo de um vidro de bolacha. Voltei, retirei a mala e viajei apenas com o medo de transportar aquele volume de material subversivo, o que não era pouco.
Nos anos seguintes, passei por situações semelhantes, mas não tão agudas, e tenho a convicção que entrei e saí do inferno sem um arranhão por conta desta serenidade, um certo destemor – destemor por fora, e panico por dentro.