Fernando Dourado

Jean-François Raffaëlli (1850-1924)
La Place Monge à Paris.

Hoje vou testar um recurso tecnológico que há tempos me intriga. Trata-se do programa de computador que me permite falar ao microfone, e as palavras vão aparecendo na tela sem que eu tenha que digitar as letras. É uma das coisas mais fascinantes e desconcertantes que se pode ter ao alcance da boca. Dá vontade de ficar brincando irresponsavelmente de dizer uns troços desconexos pelo simples prazer de ver as palavras se formando na tela. Seja como for, mais tarde haverá uma cópia para edição em que você pode transformar em linguagem escrita as barbaridades que ditou. Mesmo que você ache que, no seu caso, não haverá muita coisa (na forma ou no conteúdo) a corrigir, a se provar verdadeiro o que alguns dizem, ou seja, que você fala como escreve – o que não chega a ser uma lisonja, mas que pode ter seu lado prático numa hora dessas, em que até para bater no teclado você se sente cansado e resfolegante. Opa, vamos esclarecer melhor isso para que ninguém se apavore, a começar por mim.

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Sou asmático. Isso nunca me pesou, mas essa condição agora me cai como um elefante sobre as costas. Pela boa razão que os transtornos respiratórios são, de longe, a principal causa de internação hospitalar na França nessas últimas semanas, e que elas estão na raiz de boa parte da morte dos obesos. Ora, nunca me preocupei nem com o peso nem com a asma. Da asma, aliás, só vim a saber na Finlândia, quando percebi um chiado quase divertido quando respirava. O que diabos era aquilo? Engolira um angorá? Pensei logo em câncer de pulmão e fui a um médico em Helsinque. Ele me falou que era asma brônquica devida a um betabloqueador chamado Atenolol que um cardiologista de velha escola me receitara quando, ainda jovem, tive um piripaque, que descobri um dia ter sido síndrome do pânico, e que julgava ter sido mal cardiovascular. O médico, afeito aos protocolos do menor esforço, conquanto realistas, me prescreveu uma droga que provocava asma (que eu julgava mal de adolescente, jamais contraído por adulto) e impotência. Sucumbi ao mal menos ruim, pensei. Com o pinto fagueiro e os pulmões preguiçosos, vivi desde então.

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Mas hoje, em pleno confinamento parisiense, eu juro que trocaria uma ereção por dez, vinte, trinta inalações de ar profundas, dessas que a gente sente quando o oxigênio toca o fundo dos pulmões. O que diabos vai se fazer com um pênis disposto por bulevares por onde não se pode caminhar, por pontes que nos proíbem de atravessar, e diante de uma legião de mulheres mascaradas cujo pavor diante de um gordo resfolegante é o mesmo que acomete uma ovelha solitária diante do lobo, numa noite fria do Luberon. Outra ironia da sorte é que não possa caminhar por essas ruas que se combinam tão bem. Poder até posso, mas não quero desafiar as potestades mais do que já faço. Ontem mesmo um desses galalaus de skate passou a dez centímetros de mim bem à hora de cair na calçada, na frente do Instituto do Mundo Árabe. Quase aparei-o com um pontapé, no melhor estilo zagueiro de usina, como se dizia nos meus tempos de infância, em que a bola passava, mas o sujeito ficava. Foi por um triz.

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Continuo com meu brinquedinho tecnológico e pouco tive o que editar até agora. Deixem-me que conte então uma história singela. Madame Pires trabalha num prédio imponente do VII ème parisiense, há 40 anos. “Eu sei que as concierges têm má reputação, monsieur. Até hoje ninguém me explicou por quê, mas isso me foi dito já à minha chegada na França pela minha tia Laura, que aqui virou Laure, nos tempos em que ainda falávamos português em casa – língua que quase se evaporou na família.” Ela é mais baixa do que alta, tem cabelos pretos e olhar duro. Pelo jeito, há bom tempo não se preocupa com a aparência porque está mal vestida, com o ar cansado de quem padece de algum mal secreto que ainda não quer que venha à baila. “Você vai ter que viver com isso, mas é importante exercer o ofício com dignidade, disse-me a tia”. Então foi à máquina e serviu as duas xícaras até a borda. “Pode ficar tranquilo, Monsieur, estamos a uma distância prudente. O senhor é comparativamente jovem. Quanto a mim, sabe-se lá. Sou de Salvaterra do Minho, era lá que queria terminar meus dias. Mas agora até netos tenho aqui.”

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Madame Pires quer falar, isso é visível. Foi por isso que não deixou a encomenda na caixinha de correio e quis entregá-las com as mãos enluvadas. “Sempre que íamos a Portugal, quando o Ramiro era vivo, ficávamos em Souto, lá por Braga, onde viviam as tias velhas, a quem nos sentíamos obrigados.” Assenti. “Gosto de Braga”. Ela me olhou. “Mas não era isso o que queria dizer.” Com o tempo vamos nos acostumando aos rostos mascarados, e toda a comunicação se dá pelo olhar, como se a voz viesse de um sintetizador. “Soube que é escritor, monsieur. E a tirar por um antigo morador daqui, escritores gostam de histórias porque vivem de contá-las. Veja bem, a discrição integra nosso métier, como dizia a tia Laure. Mas queria lhe contar que há 3 semanas o viúvo Mathieu Brun, de 86 anos, está fazendo confinamento com a também viúva Dozier, de 93. Ele mora no terceiro andar, ela no último; Liguei para ela para saber se tudo ia bem e foi ele quem atendeu, cheio de justificativas, como se eu já não soubesse. Seria muto feio confessar ao senhor que os invejo? Parecem tão felizes.”

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Hoje quando acordei fiquei na cama pensando nos benefícios de morrer nessa temporada. Se as desvantagens são incontáveis, algumas coisas ajudam. Poderia morrer gordo, sem ter que me submeter mais adiante a dietas. Ademais, ficaria livre de todas as cavilações que envolve o cuidado com a saúde, ocasião em que você olha para a juventude e sente que o melhor ficou mesmo lá atrás. Nunca mais ouviria falar de contador, imposto de renda, burocracia, documentação e seguro-saúde. Mas a imensa vantagem de embarcar agora seria ficar livre de uma vez só desse país esquizofrênico que é o Brasil. Como pesa o fardo. Que gente desqualificada. Enquanto o mundo dá provas de relativa coesão no combate a esse flagelo, o Brasil se engalfinha em torno de um remédio que ganhou ares de pílula sacramental. Os partidários do capitão estão siderados pelo novo Gral, pelo Daime curador. Veem na droga uma possibilidade de sobrevida eleitoral. Os que se opõem ao mentecapto, torcem veladamente para que morrem 10, 20, 30, 50, 100 mil desvalidos – para que possam adensar o prontuário do capitão, agora também como genocida.

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Ontem ainda escrevi à mão um apelo em francês que vou levar sempre no bolso, para a eventualidade de ser levado para uma unidade de reanimação. Ele diz:

“Carta ao médico da UTI de Paris – “Caro doutor, Eu sou Fernando. Estou em Paris há um quase mês, vivo em São Paulo, Brasil, e passei minha infância no Recife – uma bela cidade que o senhor deveria conhecer um dia. Desculpe chegar aqui para uma internação de urgência. Asseguro que fiz de tudo para evitar ser contaminado mas afinal, cá estou. Eu sei que o senhor vai olhar minha ficha médica com pessimismo: 62 anos, sobrepeso, hipertensão moderada, asmático…Hum, certamente um prognóstico ruim. Vale mais a pena, segundo os protocolos, dar meu lugar nos respiradores mecânicos aos mais jovens, àqueles que podem ainda fazer muito pela humanidade. Pois bem, caro doutor, não faça isso, eu suplico. Me dê uma chance. Me coloque na ventilação mecânica e eu prometo que vou me recuperar. Eu ainda tenho muita coisa a fazer. Minha vida não pode terminar sem que eu tenha a alegria de abraçar minha mãe, de fazer uma viagem ao Japão com o amigo Abu, de terminar um livro novo que será o mais belo que já tenha escrito, de perdoar duas pessoas e talvez de me fazer perdoar por outras. Eu vou surpreendê-lo, esteja seguro. Dentro de mais dez dias eu vou sair da UTI e vou ser um cidadão mais completo. Só vou beber à metade de minha sede e comer à metade de minha fome. Vou levar uma vida modesta na montanha e vou mandar plantar árvores. O senhor não vai se arrepender. Obrigado e a gente se vê em dez dias. Fernando”

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Lettre à M. le Docteur de l´hôpital  – “Bien cher Docteur, Je m´appelle Fernando. Je suis à Paris depuis bientôt un mois, je vis à São Paulo, Brésil, et j´ai passé mon enfance à Recife – une belle ville que vous devriez connaître un jour. Pardon d´arriver ici pour une internation d´urgence. Je vous assure que j´ai fait beaucoup d´attention pour éviter d´être contaminé mais en fin de compte, me voilà. Je sais que vous allez voir ma fiche médicale avec pessimisme: 62 ans, surpoids, hipertension moderée, asmatique…Hum, sûrement un prognostic mauvais. Il vaut mieux, selon les protocoles, donner ma place aux respirateurs mécaniques aux plus jeunes, à ceux qui peuvent encore faire beaucoup pour l´humanité. Eh bien, cher docteur, ne faites pas ça, je vous en supplie. Donnez moi une chance. Mettez moi dans la ventilation mécanique et je vous promets que je vais me récuperer. J´ai encore beaucoup de choses à faire. Ma vie ne peut pas encore finir sans que j´aie la joie d´embrasser ma maman, de faire un voyage au Japon avec Abu, de finir un nouveau livre qui sera le plus beau que j´aie déjà écrit, de pardonner deux personnes et peut-être même me faire pardonner par d´autres. Je vais vous surprendre, soyez-en certain. Dans une dizaine de jours je sortirai des soins intensifs et je serai un citoyen plus complet. Je vais boire à moitié de ma soif et manger à moitié de ma faim. Je vais vivre une vie modeste dans la montagne et je ferai planter des arbres. Je vous assure que vous ne le regretterez pas de m´épargner. Merci et on se reverra dans dix jours. Fernando”

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Hoje, sexta-feira 10 de abril, faz um dia lindo em Paris. É como se o verão já tivesse chegado. A temperatura vai chegar aos 23°, e espera-se que com isso o vírus bote o rabo entre as pernas e comece a perder sua inerente virulência. A propagação ainda é imensa, apesar do confinamento. Quando vejo televisão, quem mais causa inveja em almas em claustro como a minha, é quem está no campo, numa varanda ensolarada, vendo vaquinhas à distância e com o computador instalado sob uma imensa sombrinha, petiscando azeitonas e tomando vinho branco. Muitos desses estão curtindo o confinamento, e algumas famílias vão sair fortificadas, viciadas em convívio. A regra, contudo, não é bem essa. Tanto aqui quanto no mundo, vejo as pessoas se engalfinharem. O convívio forçado e compulsório, que poderia ser o prenuncio de uma grande cumplicidade, se esvaiu nas primeiras semanas e muita gente cruzou a cidade de mala e cuia para voltar, aliviada, para casa. As neurastenias têm ido a mil. Nada pode ser mais divertido do que a briga conjugal alheia, longe de nosso teto. Nas redes sociais, espoucam manifestações de desequilíbrio – evidenciadas seja pelo encurtamento do pavio ou pela pieguice melosa.

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Apesar de tudo, vou levar vida normal hoje. Logo mais vou à banca de jornais. Já conheço uns labirintos entre o Panthéon e a Place Monge em que carro da polícia algum vai circular. E depois, o que podem dizer, se estou com a papelada de saída em ordem? Caminho longe das pessoas, atento à confiança dos jovens que fazem questão de trotar como alazões, como se quisessem mostrar sua aptidão para o novo mundo, logo a inadequação dos que estão mais lentos. Crentes de que a seleção natural está em curso, e que o jogo lhes favorece, pensam nos seus empregos, nas suas pequenas vidas, no que podem fazer de melhor para lucrar com a nova ordem. E isso, diga-se de passagem, nada tem de condenável. No mais, é comprar revistas, abastecer a geladeira, dar suporte aos amigos que estão longe e torcer para que o dia amanhã comece mais ou menos como o de hoje. Com pequenas metas que estruturem o cotidiano e sem ter que apresentar a tal carta que tenho sobre a mesa – em que peço ao médico que me deixe descer sozinho às masmorras da morte, se precisar, para de lá voltar ressurrecto. Não é aspiração de toda descabida na Páscoa. Bonjour, Paris.